Hoje, 17 de dezembro de 2020, chegou aos cinemas brasileiros – aos que estão abertos, ao menos – o longa Mulher-Maravilha 1984 (2020), de Patty Jenkins. Sequência de Mulher-Maravilha (2017), o longa estrelado por Gal Gadot era, desde o início da sua produção, uma das maiores apostas de público da DC Comics, responsável pelo lançamento. Isso, claro, até 2020 chegar… e estragar os planos de, literalmente, todo mundo. No entanto, enquanto a maioria dos grandes estúdios optaram por adiar seus maiores lançamentos – Velozes e Furiosos 9 e 007: Sem Tempo Para Morrer, ambos da Universal, foram empurrados para 2021 – ou encontraram formas alternativas de distribuição – a Disney jogou na plataforma de streaming Disney+ os igualmente aguardados Mulan e Soul – a Warner tem deixado claro sua falta de preocupação, seja com o público, ou com os profissionais envolvidos. Afinal, o que motiva a estreia em circuito limitado, no meio de uma pandemia que já matou milhares de pessoas, de uma produção de custo estimado acima dos US$ 200 milhões?
Ao contrário da Marvel, que desenhou – e executou – um bem desenvolvido e equilibrado Universo Cinematográfico, que até o momento já conta com mais de duas dezenas de títulos, sua concorrente DC tem sofrido para se estabelecer com a mesma força na tela grande. Nomes fortes, como Batman e Superman, atuaram praticamente sozinhos por muito tempo – ao menos, é claro, até a estreia de O Homem de Aço (2013), que seria o responsável para dar início a um cenário expandido para a editora nos cinemas. Na sequência, vieram Batman vs Superman: A Origem da Justiça (2016), Esquadrão Suicida (2016), o já citado Mulher-Maravilha, Liga da Justiça (2017), Aquaman (2018), Shazam! (2019) e Aves de Rapina (2020). Destes, talvez o longa da heroína amazona seja o único que tenha tido sucesso tanto de público, quanto de crítica – Esquadrão Suicida e Aquaman podem ter feito mais dinheiro, mas foram também mais criticados. Portanto, é meio lógico que Mulher-Maravilha 1984, a inevitável continuação, desempenhasse papel importante na consolidação desse painel compartilhado. Justamente por isso, causa espanto vê-lo sendo tratado com tamanho descaso.
Logo no começo da quarentena, a Universal optou por fazer um teste: um dos seus primeiros lançamentos a serem cancelados foi o da animação Trolls 2 (2020). Ao invés de jogá-lo no limbo, no entanto, decidiu disponibilizá-lo no streaming norte-americano, porém cobrando um ingresso específico e elevado, diferente dos demais em iguais condições – foram mais de US$ 100 milhões arrecadados em menos de um mês. Mesma estratégia, aliás, feita pela Disney com a estreia de Mulan (mais de US$ 150 milhões somados em todo o mundo só no final de semana de estreia). Como os números apontam, as decisões foram acertadas, e os lucros alcançados, mesmo sem terem passado pela tela grande, compensaram os investimentos. A Warner poderia ter feito o mesmo com Tenet, uma das suas maiores apostas de 2020. No entanto, preferiu adiá-lo uma, duas, tantas vezes quanto fossem necessárias, até que, cansada de esperar, o atirou nos cinemas de qualquer jeito. Resultado? Uma arrecadação abaixo do esperado – atualmente, se encontra na casa dos US$ 300 milhões, quando as estimativas apontavam para o dobro (ou até o triplo) desse montante.
Mesmo assim, a lição parece não ter sido aprendida. E agora nos vemos diante de Mulher-Maravilha 1984 repetindo a mesma sina – no Brasil, ao menos. Se por aqui não há nem sinal de vacina contra o covid-19 ao alcance de todos (as expectativas mais positivas apontam para que grupos de risco tenham acesso somente a parte de fevereiro do próximo ano, enquanto que a grande maioria só estará segura no segundo semestre), nos Estados Unidos, onde a vacinação em massa já começou, o lançamento se dará nos cinemas e em streaming, simultaneamente! A plataforma escolhida foi a HBO Max, ainda inédita por aqui. Mas outros lançamentos exclusivos da gigante, como as séries Lovecraft Country e The Undoing, já foram exibidas no Brasil pela nossa conhecida HBO (ou HBO GO). Ou seja, o mesmo poderia se repetir. Mas, pelo jeito, a Warner Brasil não quis assim, e decretou: quer assistir ao novo Mulher-Maravilha 1984? Vá ao cinema! E se você mora em uma das tantas cidades do país que estão com as salas fechadas devido à pandemia, ou se simplesmente não quer sair de casa e colocar sua saúde em risco graças a um vírus altamente contagioso, bom, fique sem ver, pois não existem alternativas.
O curioso é que a Warner tem dado a entender estar levando cada vez menos em consideração os ganhos das salas de cinema. Em declaração dada recentemente, foi confirmado que filmes como Duna, Matrix 4, Judas e o Messias Negro, Tom & Jerry: O Filme, Godzilla vs Kong, Mortal Kombat, Invocação do Mal 3, Space Jam 2 e o novo Esquadrão Suicida serão todos exibidos ao mesmo tempo nos cinemas e no streaming da HBO Max! Agora, basta se colocar no lugar da grande maioria do público. Se você está em casa, ainda não foi vacinado, teme pela própria vida e qualquer um dos títulos acima lhe despertar o mínimo de interesse, o que irá fazer: sair às ruas e ir até o cinema mais próximo da sua casa, ou ficar no conforto do próprio lar e acessar o longa pelo controle da televisão? Não precisa nem pensar duas vezes. Aliás, não precisa também levar em conta a questão sanitária: com home theaters e aparelhagens de imagem e som cada vez mais sofisticados ao alcance do consumidor, o cinema acabará se tornando um luxo, uma exceção, e não mais uma opção atraente e popular como tem sido há mais de um século. Um processo que pode ser dolorido, principalmente para os mais saudosistas, mas que acredito que possa trazer ganhos para todos: se assim se confirmar, as sessões cinematográficas podem recuperar um status há muito perdido, de representatividade e importância, da mesma forma que muito do que é produzido no audiovisual, através do alcance digital, se tornará, enfim, mais democrático.
Como pá de cal dessa história, a Warner entrou em contato com Patty Jenkins e Gal Gadot, as maiores responsáveis por Mulher-Maravilha 1984, e as consultou a respeito do que achavam dessa exibição direto em streaming. Talvez até tenham ficado em dúvida, mas o que foi divulgado é que o estúdio, ao oferecer um cheque extra de US$ 10 milhões para cada uma, obteve a concordância de ambas com a estratégia adotada. Ou seja, nem mesmo aquelas que tornaram o filme possível, na frente e atrás das câmeras, estavam tão preocupadas assim com o futuro dele – o bolso, enfim, sempre acaba falando mais alto. Com tudo isso em mente, fica mais compreensível essa decisão de exibir o filme no Brasil apenas nos cinemas – afinal, não é pra ninguém ver, mesmo. Fanboys e decenautas mais fanáticos irão se arriscar, no que lhes for possível, e era isso. A imensa maioria, porém, seguirá esperando até uma nova janela estar a seu alcance. E o Cinema – assim mesmo, com letra maiúscula – seguirá posando como um dos maiores vilões desse momento tão delicado que o mundo tem enfrentado neste ano. Poderia ser tema de uma aventura de mais de três décadas atrás, mas é o reflexo exato de um 2020 que parece não acabar nunca!
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