O Brasil viveu durante 21 anos sob o jugo da Ditadura Civil-Militar. Nesse período nefasto de nossa História, muitos perderam a vida, outros tantos sofreram torturas e humilhações nas mãos dos agentes da lei e vários seguem sem paradeiro definido. Essas mais de duas décadas deixaram marcas indeléveis no tecido social brasileiro, mas há quem defenda até hoje aquela Era de chumbo como um momento próspero, impróprio à corrupção e essencialmente ordeiro. Mesmo que esses resultados sociais tivessem sido alcançados (e nem de longe foram), nada justifica uma política oficial calcada em agressividades e assassinatos sistemáticos. É bastante sintomático da nossa atualidade maluca que uma opositora revolucionária do regime militar, anos depois eleita presidenta da república democraticamente e escorraçada do cargo por conta de um golpe constitucional, tenha sido substituída adiante por um cultor de covardes fardados. Jair Messias Bolsonaro nunca deixou sequer dúvidas quanto à sua crueldade, algo levado às raias do imponderável ao homenagear um homem perverso exatamente antes de votar a favor da deposição de Dilma Rousseff. O que nem sempre dimensionamos é a parcela feminina dessa luta constante pela democracia.
O cinema brasileiro ofereceu diversos exemplos de mulheres que lutaram contra a Ditadura. Um dos principais filmes com esse norte é Que Bom te Ver Viva (1989), da cineasta Lúcia Murat, ela própria encarcerada durante os anos de chumbo e, portanto, com singular propriedade para abordar seus estilhaços. Valendo-se da personagem interpretada por Irene Ravache, ela interliga histórias de várias mulheres que pegaram em armas, participaram de organizações, em suma, que colocaram em risco a própria integridade física e psicológica em função do ideal correspondente à antítese do governo. A personagem central não é estritamente fictícia, podendo ser considerada um amalgama das diversas companheiras que comeram o pão que o diabo amassou na luta por liberdade. O resgate dos episódios é importante, inclusive e principalmente por conta do prisma feminino. A batalha então em curso não era apenas por um bem coletivo, já que todas as depoentes tinham dificuldades adicionais pura e simplesmente pelo fato de não serem homens. As torturas com naturezas sexuais, as tantas violações do corpo, tudo é exposto com coragem. Como todo grande filme debruçado sobre algo historicamente vital, incita a desejar que aquilo não se repita.
Um pouco antes, mas ainda nos anos 1980, Eduardo Coutinho lançara o clássico Cabra Marcado para Morrer (1984). O projeto inicial de uma ficção sobre o assassinato de um líder camponês paraibano teve de ser interrompido exatamente por conta da repressão militar. O local das filmagens foi cercado em 1964, com parte da equipe presa sob a alegação de comunismo e a outra dispersa. Cerca de 17 anos depois, o renomado diretor resolveu retomar aquelas reminiscências gravadas em película, mas para criar um documentário, ao mesmo tempo, sobre a produção anteriormente inviabilizada e os efeitos da ditadura em diversas pessoas. A principal aqui é Elizabeth Altino Teixeira, viúva do ativista morto, obrigada a viver na clandestinidade (separada dos filhos) desde a ocasião. Trata-se de uma pessoa cuja tragédia é conectada a tantas provocadas pelo regime que conduziu o país com discursos ufanistas de bem estar social, industrialização e progresso, mas incitando a brutalidade de dirigentes com o sangue vertido nos porões de suas instituições. Elizabeth Altino Teixeira ajuda a remontar àqueles anos, igualmente deslocando nossa atenção da resistência nas metrópoles à equivalente campesina, acontecida inúmeras vezes ao largo de quase todos.
Mais recentemente, outro exemplo importante de valorização da mulher como elemento de determinação para garantir a democracia, mesmo quando a ditadura parecia profunda ao ponto de não mais poder se desenraizar, é Torre das Donzelas (2019), de Susanna Lira. A cineasta estreita o foco num local, num determinado pavilhão do presídio de Tiradentes, em São Paulo, ao qual foram levadas mulheres consideradas subversivas. Além dos depoimentos sobre os tempos de cárcere, Susanna promove uma reconexão com o espaço da cadeia reconstruída em estúdio, algo que permite às personagens a reentrância singular nas próprias memórias. A penitenciária, as celas apertadas, os protocolos de agressividade policial, tudo é devidamente dito, mas também (re)encenado para a câmera. O resultado é ora inspirador, ora emocionante. O filme consegue operar simultaneamente no sentido do resgate dos brios dessas mulheres, revelar procedimentos escusos e desnudar a lógica machista por trás de vários procedimentos de tortura. Certamente, daria uma sessão dupla e tanto com o excelente Que Bom Te Ver Viva.
A grande profusão de mulheres nas linhas de frente da resistência não pode ser dissociada dos inúmeros movimentos por direitos civis que vicejavam não apenas no Brasil, mas mundo afora nos anos 1960. Quando o Brasil sofreu o golpe militar dado em 31 de março de 1964, efervescia um clamor pela liberdade das individualidades femininas, a reivindicação pela plena autonomia dos próprios corpos e um suporte a isso, dados pelos setores mais progressistas da sociedade. No entanto, mesmo que várias militantes da época deponham dizendo-se portadoras da sensação de estarem praticamente em pé de igualdade com os jovens homens que iam às ruas com ideias e às vezes armas em riste, ainda lhe pesavam sobre os ombros algumas obrigações socialmente imputadas. A maternidade é uma delas, como algumas das depoentes e ex-militantes falam para a câmera da igualmente revolucionária Lúcia Murat. Por isso é tão importante ver e rever os três filmes citados, entre tantos empenhados em expor chagas que preferíamos não carregar, mas que não devemos esquecer, pois nos foram criadas pela selvageria alheia em vias de voltar. A ameaça é real. E as mulheres, não tão frequentemente mencionadas como linhas de frente da resistência, foram essenciais para garantirmos direitos novamente ameaçados pela onda de retrocessos e tentativas de calar.
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