Quando comecei a lecionar cinema no Rio de Janeiro, na prestigiada Escola Darcy Ribeiro – em substituição esporádica a um colega que volta e meia não podia fazer-se presente em sala de aula –, foi na matéria teórica que agrupava alunos de todas as formações disponíveis na instituição. Em 13 encontros era necessário falar da História do Cinema. Ainda que a ênfase prevista no plano fosse a produção brasileira, recebi a orientação para que as dinâmicas enfocassem fenômenos vanguardistas mundiais, tais como Expressionismo Alemão, Neorrealismo Italiano e Nouvelle Vague francesa, mais até do que a arte feita por aqui desde a chegada da primeira câmera ao Rio de Janeiro. Adiante, ao assumir algumas turmas de maneira fixa, me preocupei em redirecionar as aulas ao cinema brasileiro. E qual foi meu espanto ao constatar que mesmo alguns alunos preparados, donos de uma bagagem invejável, desconheciam figuras como Humberto Mauro, Carmem Santos, Walter Hugo Khouri e Zózimo Bulbul. Todavia, a culpa não é inteiramente deles, pois também nossa, dos professores que não fomentam essa curiosidade.
À frente, ministrando aulas em outras instituições, percebi que até frequentadores de cursos superiores se ressentiam de uma lacuna imensa quando o assunto era cinema brasileiro. Estudamos à exaustão a chegada do som no âmbito da produção norte-americana, mas quantas vezes buscamos compreender o impacto dessa revolução tecnológica dentro de uma conjuntura histórica como a daqui nos anos 1930? Sabemos de cor e salteado os filmes desbravadores de gênios como F. W. Murnau e Charles Chaplin, mas qual o grau de intimidade que temos com os precursores da nossa pouco investigada fase muda? Por absoluta ignorância, tendemos a embarcar nessa narrativa de que o Brasil sempre foi atrasado, de que o som não sincronizava por conta do subdesenvolvimento que nos define como nação em constante busca de um lugar ao sol entre as potências mundiais. Sequer, na ânsia de opinar a partir de um espaço de pouco conteúdo, refletimos acerca das enormes diferenças entre as produções da Vera Cruz, cuja prerrogativa técnica era imperativa, e as do Cinema Novo, em que o precariedade, o ruído, virava linguagem.
E essa ignorância sobre a riqueza do cinema brasileiro, repito, é disseminada nos bancos escolares e universitários. Uma vez que temos um acervo farto relativo ao INCE, o falecido Instituto Nacional do Cinema, com filmes enormemente capazes de nos delinear melhor, porque não utilizá-lo como suporte de aprendizado nos ensinos fundamental e médio? Falta de visão política? Inclusive. Enquanto em países como os Estados Unidos o cinema é disposto como poderoso propagador de valores, entendido geopoliticamente enquanto imprescindível, por aqui vivemos uma senda, desde os primórdios, de mortes e ressurreições. E essa fragilidade que infelizmente caracteriza a produção nacional tem a ver com a propagação do obscurantismo. Com isso, inclusive, tem-se a falsa ideia de que os interessados pela nossa tradição são poucos, que a todos é mais válido falar de Jean-Luc Godard e François Truffaut do que fazer um tour delicioso pelas obras de Jean Garret, Rogério Sganzerla ou até do genial Leon Hirszman.
Você já deve ter ouvido por aí a máxima: “cinema brasileiro é só putaria”. Se trata de uma sentença ao mesmo tempo moralista, preconceituosa e fomentada por uma completa desinformação. Livros como Nova História do Cinema Brasileiro, organizado em duas edições fundamentais por Fernão Pessoa Ramos e Scheila Schvarzman, nos permitem essa ideal conexão (profunda) com nossa História. E o esforço de conhecer o cinema brasileiro desde suas raízes, entrelaçando seu desenvolvimento singular com as transformações socioeconômicas então vigentes, é de vital relevância para que, ao menos, não saiamos por aí falando bobagens a respeito dos nossos filmes. Para muitos, eu sei, apenas estaremos no topo quando europeus e norte-americanos reconhecerem os talentos tupiniquins, toda vez que um de nossos exemplares for indicado ao Oscar, ao Globo de Ouro ou ao Festival de Cannes. Somos, também, vítimas dessa carência, tópico que dá tanto pano para manga…Vou deixar o seu escrutínio a um artigo futuro.
Voltando ao caminho principal, nossa desinformação, ela igualmente é motivada por preconcepções tolas. Já ouvi responsáveis por escolas e afins dizer que o público pouco se interessa por cinema brasileiro, que certamente teremos menos alunos ao propor, por exemplo, o entendimento das tão atacadas Chanchadas ao invés de criarmos um programa para falar das vanguardas europeias. E, é bom deixar claro, que o estudo desse cinema mundialmente paradigmático é essencial. Porém, porque também assim não nos parece um mergulho vertiginoso nas obras de Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Ozualdo Candeias, Ana Carolina e Helena Solberg, para citar apenas alguns entre tantos? Será, mesmo, que uma vez apresentados a esses baluartes constantemente tornados invisíveis nos espaços de ensino e saber, quando muito apendiculares, os alunos não se cativarão? Recentemente dispus de quase 50 horas para falar sobre cinema brasileiro numa turma aberta pela ação louvável do SESC/RJ. E não tive qualquer surpresa ao perceber que os matriculados sentiam prazer enorme em descobrir essas nossas riquezas.
Então, proponho aos diletantes e autodidatas que, entre uma leitura e outra sobre a Nova Hollywood, as Nouvelle Vagues japonesas e tchecas, façamos uma pesquisa rápida sobre Adhemar Gonzaga, Carlos Manga, Norma Bengell, Glauce Rocha, Antonio Pitanga, Mário Peixoto, Dib Lutfi, Sérgio Ricardo, José Mojica Marins, Odete Lara, Lúcia Murat, Anibal Massaini Neto, Rosemberg Cariry, Silvino Santos, Lulu de Barros, Antônio Polo Galante, Watson Macedo, Grande Othelo, entre tantos outros. Que mergulhemos apaixonadamente no nossa produção muda, nas Chanchadas, no Cinema Novo, no Cinema Marginal, nas Pornochanchadas e no valor que sobreveio à Retomada. Que fiquemos atentos a qualquer possibilidade de perceber que cinema é esse que o crítico Paulo Emílio Salles Gomes postulava como capaz de nos representar como nenhum. Que nos dispamos de preconceitos e, ao menos, evitemos opiniões ou definições sobre algo pouco conhecido. E nós, professores, temos o dever de estudar para lançar mão de meios capazes de despertar essa ânsia de apropriar-se de nossos filmes, de épocas e vertente distintas, por prismas claros, menos condicionados por crendices sem embasamento que se proliferam como notícias falsas.
Meios para isso existem. Na própria internet há uma profusão enorme de artigos, livros em PDF, filmes completos, ou seja, o conhecimento está à disposição, embora a democratização seja uma utopia, uma daquelas pelas quais vale a pena lutar incessantemente, diga-se de passagem. Enquanto imprensa especializada, nós do Papo de Cinema sempre buscamos dar atenção especial aos filmes brasileiros que, com raras e bem-vindas exceções, chegam ao circuito dispondo de pouco tempo para convencer exibidores quanto à necessidade de sua permanência nas telonas. A briga sempre foi desigual. O jogo econômico é torpe e, ao longo dos tempos, boa parte responsável por criar essa bruma de ignorância pairando sobre a nossa fortuna cinematográfica. Enquanto crítico, me parece essencial que tratemos de equilibrar um pouco essa balança, conferindo terreno a conteúdos que nem sempre podem ser sucesso de audiência. Como professor, me parece semelhantemente urgente orientar os alunos, dar-lhes acesso a um mundo fascinante por si, com enorme capacidade de cativar aqueles que o enxergam sem tantas rejeições tolas e prévias.