No cinema do diretor cearense Petrus Cariry, o tempo é um agente implacável, mencionado como algo ambivalente. Por um lado, se encarrega de renovar as coisas, de trazer outras e auspiciosas perspectivas, mas, por outro, provoca a obsolescência, direciona paulatinamente ao fim de tudo. Em O Barco (2018) não é preciso que alguém fale quantos anos se passaram desde que o casal gerador dos filhos-alfabeto se abancou por terras que adquirem características de fim de mundo. O tempo está impresso nas texturas, na madeira carcomida, na oxidação do metal cuja pretensa rigidez igualmente sucumbe, no pó acumulado que analogamente sinaliza uma despreocupação quanto aos protocolos da contemporaneidade. Nesse belíssimo filme feito na paradisíaca Praia das Fontes, em Fortaleza, repleta de grutas e falésias que dão ao lugar um aspecto quase de irrealidade, se repete essa relação de Petrus com a inexorabilidade do tempo, possível de ser vista em graus distintos nos seus demais longas-metragens. Em Mãe e Filha (2011) o clima era também lindamente construído, encarregado de burilar uma mitologia em torno da morte.
A Morte e o Luto
Petrus reflete muito sobre o fim. Tanto que tem a chamada Trilogia da Morte: O Grão (2011), Mãe e Filha e Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois (2015). Neles é possível identificar a finitude como central ao que o pesquisador Diego Benevides, em sua tese intitulada A trilogia da Morte de Petrus Cariry: Narrativas da dor, perda e luto familiar no cinema, menciona como “narrativas da dor”, histórias geralmente centradas em lutos. Assim como no cinema de Ingmar Berman, no de Petrus há uma espécie de fascínio pesaroso pela inevitabilidade da morte, diante da completa ignorância a respeito do que vem adiante dela – aliás, o barco encalhado seria referência a Através de um Espelho (1961), do cineasta sueco, no qual igualmente há uma embarcação inerte e pessoas vivenciando suas angústias ilhadas? Em O Barco essa sensação de perda é quase abstração. Não há o choro pela partida de um ente querido, mas vários fragmentos de ausências, pequenas mortes que se acumulam para construir a paisagem humana daquele lugar. Uns deixam de falar, outros são privados de olhar, há os despojados do desejo pela conveniência rotineira e aquele que é pego em angústia porque teme morrer antes mesmo de fazer algo que lhe faça sentir vivo.
Em O Barco, Esmerina (Veronica Cavalcanti) tem 26 filhos, um para cada letra do alfabeto. O primogênito, A (Rômulo Braga), é indisposto por conta do conformismo desse lugar paradisíaco regido pelas ofertas da parte rasa do mar. Sem uma embarcação robusta para poder desbravar as águas bravias que denotam a ambiguidade de uma natureza dadivosa e furiosa em semelhante medida, ele se pega diariamente num embate geracional com sua genitora. E o barco encalhado à beira-mar é uma imagem de morte que, ao mesmo tempo, se apresenta como possibilidade de vida. O rapaz A questiona os motivos de não haver esforços mais acelerados para que a armação de madeira e metal seja consertada, com o intuito deles poderem pegar peixes maiores que nadam apenas no fundo. A mãe prefere a constância e a paciência, chegando a dizer que os futuros alimentos que serpenteiam fundo, uma hora ou outra acabam procurando algo no raso. As metáforas são belissimamente construídas, não apenas do ponto de vista verbal, mas principalmente visual. Ferramentas para entendermos as relações são dispostas com elegância.
A força da Palavra
Há paradoxos bastante poderosos em O Barco. Um deles, contido na importância das palavras. Se trata de um filme bem mais visual do que falado. Talvez por isso mesmo consiga conferir quase uma sensação de reverência solene àquilo que é dito. Em dado momento, o mar traz ao lugar a presença de Ana (Samya De Lavor), um palíndromo, a mesma de trás para frente, misteriosa recém-chegada integrante daquele cotidiano. Ela enfeitiça os pescadores com suas histórias, mas também pela natureza hipnótica dos gestos e de seu rosto impenetrável. É uma espécie de sereia encantando perigosamente os pescadores, talvez levando-os simbolicamente a mundos que eles não conseguem acessar a partir das limitações do lugar que em alguma medida parece não ter limites. O Barco fomenta essas supostas contradições internas como sintomas de sua capacidade de apreender a realidade a partir do que a torna complexa e intrigante. Ana surge para A como a chave a uma realidade que ele almeja, repleta de narrativas de aventura, mesmo que sua mais recorrente trama diga respeito à violência com que homens tratam uma mulher.
O jovem A quer ser Simbad, um aventurado pelos sete mares, descontente com o de sempre, farto das paisagens repetidas, das palavras diárias. Ana é sua Xerazade, pois, ao passo em que atiça a curiosidade pelos cenários exteriores, diariamente o entretém com enredos que o prendem ao sentimento de mais querê-los. Não o vemos agindo para colocar o barco em funcionamento, trabalhando efetivamente a fim de concretizar sonhos de evasão. As palavras o prendem ao lugar, à sua natureza primogênita, ao nome que pode adquirir tons de interjeição. Ainda sobre a palavra, ela é voluntariamente calada pelo pai que se comunica com olhares e gestos, e perseguida, em sua manifestação escrita, pela mãe. Esta rabisca as possibilidades de entender a palavra “EU” como um radical, a partir dele construindo “Adeus”, “Deus”, “Deusa”, ou seja, brincando com somas e subtrações de letras que conferem significados distintos a uma que, por si só, é passível de carregar conceitos e interpretações tão diferentes.
Outras reflexões soltas
O Barco tem imagens de uma beleza eloquente. Isso se deve ao senso de composição de Petrus, também diretor de fotografia. A carga retórica de determinados vislumbres faz com que não sejam necessárias explicações e racionalizações, o que retiraria do longa a natureza contemplativa e sensorial que lhe torna intenso sob a aparente casca de pasmaceira (outro paradoxo). Petrus confia no espectador, não acha ser necessário que os personagens transformem tudo em dizer, convidando-o a sentir a melancolia de A diante da embarcação que se apresenta como escape, igualmente sinalizando que a volúpia de Ana está bem mais concentrada na forma como ela conta suas histórias de fundo atroz do que necessariamente em seu corpo desnudo diante da plateia enfeitiçada. Os olhos dos pescadores não perfazem as curvas da mulher jovem que está diante delas, mas permanecem nela vidrados.
A atmosfera de O Barco não é apenas visual, mas também sonora. A trilha e, principalmente, o desenho de som adensam as características desse mundo. A violência das ondas batendo contra as pedras é visível, mas somente ganha volume ao ouvimos o ato mais antigo que a própria existência da vida na Terra. O sibilar do vento, a ação humana, o martelar das tentativas de reerguer o barco, a ênfase de certas sílabas durante a declamação do texto, o retumbe da voz do narrador, tudo isso é evidente e milimetricamente calculado para oferecer ao espectador uma experiência vasta, intensa e sensorial. Num plano em que aparentemente nada está acontecendo, a imagem enquadra a natureza ora angustiante, ora enternecedora, enquanto o som se encarrega de ressaltar que há uma vida complexa, pulsante e múltipla se desenvolvendo sob a membrana da calmaria. O tempo, mesmo supostamente suspenso pelas repetições, tem o seu próprio jeito de continuar movendo a roda dessas tantas existências.
Para quem conhece o trabalho Petrus Cariry, repleto de uma fúria incontida, de reflexões profundas sobre querer e poder, a respeito da morte como companheira inevitável da nossa jornada, com filmes marcados por um apuro estético e narrativo impressionantes, O Barco surge como algo que faz todo sentido. Aos ainda não iniciados nessa obra tão coesa quanto intensa, se configura num chamamento presente e vibrante às suas etapas passadas e futuras.
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