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Hollywood não seria a mesma sem os grandes nomes de fora dos Estados Unidos que ajudaram a construir a sua história. Não é preciso mais do que um sobrevoo ligeiro pelas páginas dessa trajetória iniciada na chamada Era de Ouro para identificar um contingente enorme de homens e mulheres que migraram à terra do Tio Sam e ajudaram a fortalecer as bases do que ganhou o apelido de Meca do cinema. O realizador holandês Paul Verhoeven foi um dos tantos estrangeiros cooptados a trabalhar nesse centro industrial da Sétima Arte. Mas, não foi um daqueles exemplos de talentos sufocados por produtores poderosos e pela aura mítica dos estúdios. Aliás, ele é insuficientemente valorizado por sua capacidade de contrabandear uma potência subversiva e chacoalhar os modelos hollywoodianos. Mas, antes mesmo de pensar em comandar numerosas equipes em projetos ambiciosos e não raro hiperviolentos, Verhoeven – nascido dois anos antes da Segunda Guerra Mundial – trilhou uma brilhante carreira acadêmica em Amsterdã como Matemático e Físico. Depois de ser aceito numa das instituições de maior prestígio da Holanda, a Universidade de Leiden, ele teve uma graduação repleta de excelentes notas e destaque. Nas etapas de pós-graduação, isso o levou ao título de Ph.D em Matemática e Física. O suficiente para ter uma carreira acadêmica.

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Mas, mesmo que a titulação fosse suficiente para garanti-lo na academia ou numa instituição de pesquisa, Paul Verhoeven começou a se interessar por cinema ainda nos anos 1960, algo que acabou exercitando quando teve de prestar o serviço militar (ainda algo obrigatório naquela época na Holanda). Alistado na Marinha Real Holandesa, ele foi designado à infantaria cinematográfica do seu batalhão, na qual realizou Het Korps Mariniers (1965), impressionante documentário de um pouco mais de 20 minutos sobre o corpo dos fuzileiros navais. O período ainda lhe rendeu outras oportunidades de praticar a sua paixão pela realização cinematográfica, o que, já na condição de civil, ampliou ao comandar a série de televisão Floris (1969). Nela, o conhecido aventureiro Ivanhoé era interpretado pelo então desconhecido ator Rutger Hauer (que igualmente teria extensa carreira em Hollywood). Essa experiência abriu as portas necessárias para que Verhoeven fizesse outros filmes na Holanda, alguns deles importantes sucessos de bilheterias. Até que ele lançou o que para muitos é o seu primeiro grande trabalho: O Soldado de Laranja (1977), particularmente popular entre os sobreviventes do nazismo e vencedor do Globo de Ouro. A este seguiram-se outros êxitos de sua fase holandesa, tais como Sem Controle (1980), O Quarto Homem (1983) e Conquista Sangrenta (1985). Filmes que fizeram um estrondo o suficiente para chegar aos ávidos ouvidos estadunidenses.

A Hollywood subvertida
Pode-se dizer que Paul Verhoeven teve um início de sonhos quando chegou aos Estados Unidos. Seu primeiro filme sob a bandeira de Hollywood foi RoboCop: O Policial do Futuro (1987), drama ultraviolento em que um homem da lei, que quase foi brutalmente assassinado, ganha uma segunda chance como máquina criada pelo Estado para garantir a segurança da população. Seu próximo sucesso de bilheteria foi O Vingador do Futuro (1990), estrelado por dois dos mais célebres astros da época (Arnold Schwarzenegger e Sharon Stone). É frequentemente citado como um primor no quesito efeitos digitais, mas há muito mais sob o visual possibilitado pelas maravilhas da tecnologia. Em seguida, outro sucesso: Instinto Selvagem (1992), mais conhecido pelas famosas cruzadas de pernas de Sharon Stone, o que acaba eclipsando as suas qualidades como um dos mais tensos thrillers eróticos daquela década. Percebem o que há em comum nesses três filmes? A vontade de Verhoeven de subverter modelos tradicionais no cinema norte-americano, oferendo a eles uma nova perspectiva que se equilibra entre o bom e o mau gosto, com doses de intensidade e vulgaridade (e isso é maravilhoso). Ele reaproveita o legado dentro desse itinerário rebelde: RoboCop utiliza o cânone do filme policial estadunidense; O Vingador do Futuro é uma renovação violenta do sci-fi e Instinto Selvagem guarda semelhanças com o hitchcockiano Um Corpo que Cai (1958), pois é igualmente ambientado em São Francisco e mostra a obsessão de um detetive de passado fraturado por uma loira misteriosa.

Três filmes que se tornaram sucesso de bilheteria, nos quais Paul Verhoeven recicla estruturas narrativas e signos consagrados para contrabandear ao grande público a sua visão perturbadora de Estados autoritários, do sexo inserido indiscriminadamente em jogos de poder e para expor a sua versão ácida da humanidade lutando contra as tentativas de homogeneização. Três realizações brilhantes que deram a Verhoeven a possibilidade de extrapolar ainda mais. Em Hollywood é assim: quem mais fatura, mais pode. Talvez por isso mesmo o cineasta holandês tenha se sentido autorizado a ir mais longe, a expandir essa sua investigação de um mundo postiço e das nações com seus discursos militaristas vazios. Porém, dessa vez o fracasso nas bilheterias deu um destino diferente à sua segunda trilogia hollywoodiana: os três foram muito mal recebidos e se tornaram cultuados anos depois, sendo resgatados por uma parte da cinefilia seduzida justamente por essa falta de pudores de ser kitsch, de testar os limites do bom gosto consolidado nas experiências do público. Na sequência, fez Showgirls (1995), Tropas Estelares (1997) e O Homem sem Sombra (2000). O primeiro, que lhe rendeu a Framboesa de Ouro de Pior Direção, é uma releitura muito particular e controversa de A Malvada (1950), mas ambientada no mundo das strippers de Las Vegas e na qual o sexo é a força motriz. Foi tido como péssimo por muitos, mas sobreviveu ao tempo como obra de referência.

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RoboCop: O Policial do Futuro

Tropas Estelares é uma brilhante sátira militarista que, ao mesmo tempo, discute as ações de um Estado construído em torno do discurso bélico (alô, alô EUA), questiona os valores do protagonista que entra no exército por motivos imbecis e celebra a liderança feminina. Mas, muitos preferiram tachar a violência extrema de “gratuita” e com isso enterrar o filme. Em seguida, O Homem sem Sombra, outro empreendimento em que a ganância do ser humano era exteriorizada em rompantes de agressividade e violência desmedida. Mesmo que não tenha alcançado o êxito da primeira nas bilheterias, a segunda trilogia hollywoodiana de Paul Verhoeven segue as intenções de retrabalhar modelos. O primeiro de seus exemplares desloca um dos grandes filmes da Era de Ouro para uma lógica vulgar que, naturalmente, se contrapõem ao mundo erudito do teatro na obra-prima de Joseph L. Mankiewicz; o segundo, utiliza a tradição dos filmes de guerra para criticar quiçá a nação mais bélica de todas, sem amenizar os efeitos da violência – nele você não vai ver combates e matanças sem sangue, pelo contrário; e no terceiro a releitura de um ícone como O Homem Invisível (1933), citado frequentemente como um dos pilares do cinema de horror da Era de Ouro. Goste-se ou não dessa operação de Verhoeven, ela tem procedimentos e alvos bastante definidos.

De volta à Europa
O fracasso comercial de seus três últimos filmes hollywoodianos fez com que Paul Verhoeven retornasse à sua Holanda natal para rodar A Espiã (2006), assim retomando uma ideia que ele teve enquanto realizava O Soldado de Laranja nos anos 1970. Depois de uma série de problemas com os financiadores, o filme estreou trazendo o primeiro nu frontal masculino numa obra de Paul Verhoeven, em 23 anos. Mesmo que não tenha chegado ao rol dos cinco finalistas ao Oscar, foi a escolha da Holanda para representar o país na festa hollywoodiana daquele ano. Depois, o cineasta dirigiu o pouco conhecido Traição (2012), filme com um pouco menos de uma hora de duração que, por isso, não chegou a ser exibido nos cinemas holandeses. Seu lançamento foi num esquema sob demanda e Verhoeven já disse em várias ocasiões que não se sentiu plenamente satisfeito com o resultado. O retorno triunfal dele se daria quatro anos mais tarde, com a obra-prima Elle (2016), thriller falado em francês sobre a perversidade humana, baseado num livro de Philippe Djian. Nele, Isabelle Huppert vive uma executiva inescrupulosa que é violentada e após isso continua recebendo mensagens ameaçadoras. Tendo em vista a natureza controversa de Verhoeven, claro que ele foi alvo de reprimendas, especialmente dos grupos que consideraram exagerada a sua exploração dramática do estupro. No entanto, o filme fez um sucesso danado no Festival de Cannes (há quem diga que ele deveria vencer da Palma de Ouro) e foi indicado ao BAFTA (o Oscar Britânico) na categoria Melhor Filme Estrangeiro.

Essa carreira de mais de 60 anos deixou claras algumas recorrências no cinema de Paul Verhoeven: a violência extremada (gráfica e sem concessões); muitos de seus filmes mostram amplas e predatórias coberturas midiáticas; a utilização de símbolos religiosos como forma de discutir a força opressora do cristianismo; o aspecto erótico como predominante nos jogos de poder (pulsão de vida e morte entrando em choque); geralmente antagonistas muito marcados e que alimentam uma hostilidade mortal; a releitura de simbologias atreladas ao nazismo, especialmente ao abordar temas controversos (estupros, fanatismo, saúde mental, controle social, etc.). O cinema de Verhoeven esgota pelo excesso (de sexo, violência, crença, poder ou qualquer outro elemento considerado motivador), e nega o bom-mocismo atrelado à parte significativa de Hollywood. Por isso é tão importante entender o movimento que ele fez com as suas duas trilogias norte-americanas. Além de corromper visceralmente esquemas e colocar valores em xeque, ele se situou voluntariamente numa posição de defensor da vulgaridade como o principal atributo formal para afrontar os pilares norte-americanos. E, saindo dos Estados Unidos, deslocou esse ímpeto transgressor a circunstâncias e definições quase intocáveis, nunca abdicando do sexo como potência e assim se distanciando de uma lógica castrada na qual, por exemplo, os protagonistas de blockbusters raramente transam ou gozam.

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Showgirls

Chegando a Benedetta
É certo que muita coisa mudou no mundo desde que Paul Verhoeven começou a fazer cinema. No entanto, para quem conhece um pouco sua carreira, não foi tão insólito saber que ele estava realizando um filme sobre freiras lésbicas do século 17. Símbolos cristãos + sexo como instrumento de poder + instituições seculares corrompidas + violência gráfica + uma narrativa abertamente vulgar + a subversão dos cânones. Tudo o que vemos em Benedetta está presente em outras realizações do holandês. Então, para começo de conversa, a sua nova empreitada é apenas um objeto-cinematográfico-não-identificado se a restringirmos às discussões/demandas predominantes na atualidade, porém coerente com uma trajetória iconoclasta desde o princípio. Baseada no livro Immodest Acts: The Life of a Lesbian Nun in Renaissance Italy, de Judith C. Brown, que, por sua vez, é inspirado em uma história real, Benedetta mostra uma jovem consagrada à vida religiosa desde a infância por pais que acreditam nela como alguém capaz de conversar com Jesus. Anos depois, a protagonista está consolidada no convento quando o local acolhe uma jovem que sofre maus tratos do pai. Rapidamente, as duas começam um relacionamento amoroso/sexual, isso enquanto Benedetta reivindica a condição de interlocutora direta entre os planos terreno e o da divindade. Sagrado e profano passam a conviver num filme que evidentemente suscita controvérsias, como em boa parte das obras de Verhoeven, mas que pode ser lida como uma espécie de síntese dessa carreira brilhantemente dedicada ao cinema que se recusa a comportar-se segundo as normas e os padrões. O filme chacoalhou o Festival de Cannes 2021 e venceu a edição daquele ano do Mix Brasil. No cinema exploitation de  Verhoeven, esses corpos transantes e inquietos são instrumentos de questionamento, armas que colocam à prova as estruturas moralistas do todo.

E um dos indícios evidentes da crítica de Benedetta ao exercício de um poder essencialmente masculino na Igreja Católica é a trajetória da personagem de Charlotte Rampling. Ela nos é apresentada como uma agente dessa força política, negociando o dote da menina prestes a ser admitida no convento com a praticidade de um comerciante. Aos poucos, vai perdendo espaço para alguém que tem uma capacidade “midiática” maior do que a dela, no caso a protagonista que pode render àquele convento a fama de abrigar uma milagreira que conversa com Jesus. A novata ascendendo e a veterana decaindo: exatamente como em Showgirls. E, em determinado momento, a madre superiora é literalmente destituída do seu cargo (perdendo assim os poderes) pelo homem interpretado por Lambert Wilson. Ou seja, a líder das religiosas esbarra na limitação imposta ao seu gênero pela estrutura da Igreja: mesmo sendo observada como uma pastora incontestável por freiras e noviças, sempre há um homem acima dela exercendo um poder ainda mais legitimado pela instituição. Nesse sentido, as enclausuradas de Benedetta não seriam tão diferentes (quanto ao que representam) às strippers de Showgirls, pois neste o show que sacia o desejo masculino nas boates de Las Vegas também é comandado por homens. Já a protagonista obstinada de Virginie Efira poderia ser alinhada tranquilamente à pragmática personagem vivida por Isabelle Huppert em Elle, já que ambas encontram meios para subtrair um pouco desse poder masculino, embora nesse ínterim sacrifiquem um pouco da própria humanidade. Eis a tragédia. Para saber mais sobre Benedetta, confira o episódio do nosso podcast logo abaixo.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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