Steven Spielberg declarou, há cerca de um ano, que “filmes lançados pela Netflix não deveriam concorrer ao Oscar, afinal, eles são televisão, e não cinema”. No mesmo 2019, no entanto, Martin Scorsese – que é da geração de Spielberg e um dos seus maiores colegas – lançou, pela citada plataforma, o épico O Irlandês (2019), que conquistou nada menos do que 10 indicações ao Oscar – inclusive a Melhor Filme. Um ano antes, o mexicano Alfonso Cuarón conquistou o Oscar de Melhor Direção – o seu segundo, aliás – pelo drama familiar Roma (2018), também produzido pela gigante do streaming. É pouco provável que o realizador de sucessos como Tubarão (1975) e A Lista de Schindler (1993), ao assistir a O Irlandês ou a Roma, tenha julgado tais obras como “isso não é cinema, é televisão”. O que está por trás, portanto, dessa briga? E quem pode dizer, afinal, o que é uma coisa e o que é outra?
Essa discussão, que não tem nada de nova, se intensificou em 2020 com a pandemia do covid-19 e a consequente quarentena que colocou todo mundo – quer dizer, quase todo mundo – trancado em casa. Um dos reflexos imediatos dessa nova postura foi o fechamento dos cinemas. Isso quis dizer que se parou de lançar filmes? Muito pelo contrário: é impressionante a quantidade de novos títulos que estreiam todas as semanas. A questão é que eles pararam de ganhar as telas grandes, e passaram a se acomodar nos mais diversos formatos de telinhas: desde a sua mega smart TV de 70 polegadas até o seu simpático – porém limitado – aparelho celular que está agora no seu bolso. Onde há um monitor, há também um dispositivo capaz de exibir vídeos – e, entre eles, é claro, filmes. Plataformas de streaming e de VoD (Video On Demand, ou seja, vídeos exibidos mediante solicitação prévia, como o pagamento de um ingresso) se multiplicam todas as semanas, cumprindo, com efeito, as tarefas que as salas dos multiplexes há muito não conseguiam mais dar conta.
Quando tudo isso passar e o “novo normal” for uma realidade, os cinemas permanecerão fechados? É pouco provável. O mais lógico, ao menos nesse momento, é imaginar que, assim como todas as demais atividades, eles também encontrarão um meio de sobrevivência – espera-se, ao menos. Mas será tal qual era antes? Aí é que está a grande dúvida. Cinemas, assim como teatros, anfiteatros, ginásios e todos os ambientes similares capazes de abranger multidões, deverão se direcionar justamente para atrações com potencial de cumprir esse pressuposto no seu máximo. Blockbusters, aqueles chamados “filmes-evento”, esses é que vão cada vez mais ganhar espaço. Os pequenos, alternativos e independentes, esses seguirão existindo, até como espaço de experimentação. Mas parecem destinados, de modo irreversível, ao espaço mais prático, seja em casa ou em qualquer outro lugar que o espectador julgar conveniente, uma vez que que o processo de assistir a essas obras se dá de modo individual, e não mais múltiplo.
Diante desse cenário, voltamos ao debate promovido lá no começo desse texto: quem pode dizer o que é cinema, e o que é televisão? Séries como Game of Thrones (2011-2019) há muito embaralharam essas fronteiras. Por outro lado, filmes como a animação Um Espião Animal (2019), o terror A Possessão de Mary (2019) ou o drama O Preço da Verdade (2019), todos lançados comercialmente nas salas de cinema no início desse 2020, será que não teriam tido melhores desempenhos se suas estreias houvessem ocorrido diretamente no streaming ou no VoD? Basta conferir a lista dos dez títulos original da Netflix mais assistidos de todos os tempos: não apenas O Irlandês, mas Resgate (2020), Bird Box (2019) e até mesmo O Poço (2019) se beneficiariam ainda mais em dimensões maiores, pelo poder de envolvimento coletivo que possuem. Agora, quem quer se deslocar até um shopping center, enfrentar fila e pagar por um ingresso caro para assistir a A Missy Errada (2020) ou a O Date Perfeito (2019)?
Premiações como Oscar e Globo de Ouro já anunciaram que, em 2021, suas até então rígidas regras serão alteradas para considerarem certos títulos exibidos apenas online e/ou na televisão. Ao mesmo tempo, lançaram alertas, apontando que se trata de uma situação extraordinária, e que em 2022 tudo deve voltar a como era antes – ou, ao menos, isso é o que acreditam. Porém, a mesma Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, há alguns anos, premiou como Melhor Documentário em Longa-metragem do ano O.J.: Made in America (2016), que nada mais é do que… uma minissérie de televisão! Com um total de inacreditáveis 7h47min de duração, antes da estreia na telinha seus produtores organizaram uma exibição especial em um cinema de Los Angeles – sim, ficaram o dia inteiro passando os oito episódios do programa, um atrás do outro – apenas para se qualificarem às normas da instituição que todo ano concede a cobiçada estatueta dourada. E não é que deu certo? O mais bizarro é que, além do Oscar, o filme dirigido por Ezra Edelman ganhou também o Emmy, prêmio que, nos Estados Unidos, é considerado… “o Oscar da televisão”!
O que deveria ser feito em casos como esse? Extinguir reconhecimentos distintos entre “cinema e televisão” – nada mais ultrapassado do que o termo “telefilme”, que é algo que praticamente inexiste atualmente – e instituir, se é que tais diferenciações ainda se fazem necessárias, separações entre filmes (sejam eles vistos como tais uma vez que suas tramas se encerram dentro de um formato usualmente compreendido entre um intervalo de duas horas, mais ou menos) e séries (as histórias contadas em capítulos, que possuem estrutura técnica e artísticas distintas). Não teria O Irlandês feito ainda mais sucesso se tivesse sido exibido em episódios? Difícil afirmar. Mas muita gente aproveitou as poucas oportunidades de se assistir a ao menos um episódio especial de Game of Thrones nos cinemas, certo? Uma vez que os méritos envolvidos se equiparam e não mais “gritam” aos sentidos de quem os assiste, tudo está no formato como são feitos e pensados, e não mais no modo, ou plataforma, como são exibidos. Essa, sim, é uma discussão válida a se ter daqui pra frente.
Em resumo, é tudo audiovisual: seja no cinema ou na televisão, seja com duas ou dez horas de duração. Um cineasta – ou um roteirista, ou um diretor de arte, ou um ator ou atriz – esse, sim, irá pensar diferente, ao começar um novo projeto, se esse será exibido todo de uma vez, ou no formato seriado. É compreensível, portanto, que se premie “o melhor filme” ou a “melhor série” em categorias distintas, ainda que, para o espectador, essas definições também estejam borradas – quantas não são as audiências de hoje que, no lançamento de um seriado, não mergulhem nas tais maratonas e procurem assistir a todos os capítulos de uma só vez? É preciso ter fôlego, é claro. O que não dá pra entender é quem reclame de assistir aos três longas da trilogia O Senhor dos Anéis em sequência, mas ache o máximo conferir a nova temporada de La Casa de Papel (2017-2019) sem nem ao menos uma parada para ir ao banheiro (risos), sendo que ambas as escolhas possuem a mesma duração. Mas essa talvez seja uma discussão para um outro momento. O fato é: essas diferenciações são, hoje em dia, muito mais teóricas do que práticas. E se adaptar não é mais uma escolha, e, sim, a diferença entre seguir na ativa ou cair no limbo.
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