É muito difícil seguir a carreira depois de ganhar um prêmio importante pelo primeiro filme. Marcélia Cartaxo confessou a alegria e angústia trazidas pelo Urso de Prata de melhor atriz recebido por A Hora da Estrela (1985), de Suzana Amaral. Aos 22 anos de idade, ainda era desconhecida dentro do cinema nacional. Mesmo assim, voltou da capital alemã com um dos troféus mais cobiçados dos festivais internacionais. Também, pudera: para interpretar Macabéa, mulher ingênua dotada de um coração puro, ela se entregou com simplicidade, em estado bruto. Desde então, apesar da experiência adquirida com o tempo, conserva o despojamento no trato e na interpretação. Durante a conversa nos bastidores do ainda inédito A Mãe (2021), em São Paulo, Cartaxo mencionou as dificuldades financeiras da família durante a juventude, a relação com as irmãs, a mudança da cidade natal, Cajazeiras (PB), para grandes capitais brasileiras na intenção de atuar. Confessou a pressão, tanto dos outros quanto de si própria, para repetir o sucesso do trabalho inicial. Quando se começa no topo, a única sequência possível seria a queda, certo? Quantas Macabéas estão disponíveis no cinema brasileiro, à espera de uma atriz?
Talvez nenhum outro filme da carreira tenha conquistado o mesmo sucesso de A Hora da Estrela, Cartaxo revelou. No entanto, jamais deixou de trabalhar com alguns dos melhores e mais exigentes autores brasileiros: Karim Aïnouz em Madame Satã (2002) e O Céu de Suely (2006), Cláudio Assis em Baixio das Bestas (2007) e Big Jato (2016), Camilo Cavalcante em A História da Eternidade (2015). Os diretores costumam chamá-la para novos trabalhos, o que normalmente indica uma profissional não apenas competente na atuação, mas também de convívio agradável durante o processo de criação. De fato, em A Mãe, enquanto aguardava a filmagem de uma cena importante, quando precisaria correr por um viaduto na noite paulistana, Cartaxo não ensaiava, nem se concentrava: sentada junto aos técnicos, garantia que uma criança correndo pelo local, filho de algum membro da equipe técnica, tivesse seu pedaço de bolo e copo de refrigerante. Em todos os filmes citados acima, a atriz transparece um corpo muito leve, uma entrega sem afetações, uma recusa tanto do melodrama quanto da vaidade. Qualquer jornalista ou crítico que tenha visitado sets de filmagem terá percebido aquele ator ou atriz aproveitando cada oportunidade para estufar o peito, erguer o queixo, alimentando-se da luz dos holofotes. Enquanto atriz (neo)realista, Cartaxo não é assim.
A temporada de 2019 e 2020 tem oferecido ao espectador uma quantidade impressionante de obras estreladas pela atriz. Apesar dos trabalhos frequentes no cinema e na televisão, nem sempre recebeu personagens grandes – afinal, quantos filmes brasileiros têm como protagonista uma mulher com mais de 50 anos de idade? No entanto, enquanto o cinema brasileiro sofre, enquanto a Ancine agoniza, a Cinemateca Brasileira se fecha, os editais se interrompem e as salas de cinema trancam as portas devido à pandemia de Covid-19, a atriz se sobressai, ironicamente, num segundo momento ímpar na carreira. Cartaxo conquistou todos os elogios possíveis em Pacarrete (2019), de Allan Deberton. Desta vez, o primeiro filme era dele, cineasta com carreira bem-sucedida em curtas-metragens, passando ao longa. O novato escolheu a experiente atriz para um papel difícil, baseado numa mulher real em Russas (CE). Pacarrete era uma senhora idosa, de fala estridentes, gestos bruscos, e inegável senso de superioridade em relação aos vizinhos. Tendo sido uma grande bailarina no passado, falava francês e tinha frequentado a alta sociedade e sua época. Quis o destino, no entanto, que terminasse seus dias na cidadezinha que não valoriza o balé, nem a música clássica.
Enquanto trabalho de composição, a personagem exigiu da atriz algo muito diferente do corpo de “mulher comum”, a mulher do povo. Ao contrário de Macabéa, Pacarrete é ambiciosa, preocupada com a aparência, com a opinião dos outros, mantendo uma autoestima invejável. A personagem também é considerada a louca do vilarejo, aquelas que muitos tentam evitar. Enquanto uma mulher é invisível, a outra ocupa espaço até demais. Marcélia Cartaxo criou então uma nova voz, um corpo ereto de bailarina profissional e um rosto erguido, traçando o limite fino entre o humor carinhoso e o humor autodepreciativo. Teria sido fácil despertar a rejeição do espectador em relação à personagem pouco amigável. No entanto, Deberton e sua atriz enxergaram a tristeza da mulher incompreendida que, por trás dos gritos, transbordava de afeto. Após a primeira exibição no Festival de Gramado, Cartaxo conseguiu o feito impossível: faturou o troféu de melhor atriz que todos consideravam garantidos a Andréa Beltrão, também excelente em sua composição de Hebe Camargo. Não havia outra escolha: Pacarrete faturou os principais prêmios da noite.
Com lançamento no circuito comercial agendado para o primeiro semestre de 2020, a tragicomédia foi adiada por tempo indeterminado devido ao fechamento das salas. Mesmo assim, o ano tem apresentado uma quantidade expressiva de projetos estrelados por Cartaxo. Como se sabe, o cinema brasileiro tem seu ritmo próprio, e alguns projetos demoram três, quatro, cinco, às vezes dez anos para chegarem de fato ao público. A levada de novos filmes pode representar uma dessas coincidências, quando vários curtas e longas-metragens são finalizados simultaneamente. Seja como for, nossa cinematografia redescobre a força de uma atriz versátil e comprometida, como se atesta igualmente em Helen (2020), dirigido por André Meirelles Collazzo – uma das mais belas surpresas do CineOP, exibida de maneira discreta em meio à edição virtual. Embora não interprete a personagem-título – Helen é uma pré-adolescente -, Cartaxo divide o protagonismo com a jovem Thalita Machado, no papel da avó da menina. Dona Graça, moradora do bairro do Bexiga, em São Paulo, cuida sozinha da neta, trabalha em diversos empregos e gerencia o cortiço onde mora.
Esta avó se mostra ao mesmo tempo forte (a mulher sai com uma arma na mão para apartar uma briga doméstica no quarto ao lado) e frágil (a personagem está doente, e tem desmaios frequentes por não cuidar do diabetes). Dona Graça lava pátios, esfrega roupas, corta carne, vende espetos. Há certa universalidade nesta mulher batalhadora, uma síntese das classes médias-baixas brasileiras, do tipo que sobrevive como pode, à base de esforço e criatividade, algo encarado com a naturalidade de quem jamais imaginou uma vida diferente dessa. Algumas atrizes se prestam a idealizações e romantizações da posição feminina na sociedade (Vera Fischer, digamos), devido ao estilo de atuação, à persona que criam para si mesmas e à imagem que projetam – voluntariamente ou não – de seus corpos. Cartaxo constitui uma atriz exemplar no processo de identificação do espectador, remetendo a tantas mães, tias, avós e vizinhas que já tivemos. Seja em modo excêntrico, em Pacarrete, seja com os cabelos mal pintados, em Helen, a atriz possui o corpo comum, além de uma naturalidade de quem pode montar e vender espetinhos de carne como se tivesse desempenhado esta tarefa a vida inteira. Poucas intérpretes soam ao mesmo tempo tão regionais (tipicamente brasileira e nordestina) e tão universais quanto ela. François Mitterrand, presidente francês, elegeu-se com o slogan “a força tranquila”. O paradoxo também valeria para a paraibana.
Há muitas outras oportunidades de descobrir o trabalho da atriz em 2020. Cartaxo tem um dos papéis principais em O Seu Amor de Volta (Mesmo que Ele Não Queira) (2019), de Bertrand Lira, uma brincadeira entre ficção e documentário, envolvendo misticismos e cartomantes – uma vez mais, Macabéa lê a sua sorte nas cartas. Em paralelo, interpreta uma empregada doméstica na cena mais barroca e tresloucada de Acqua Movie (2019), de Lírio Ferreira. Entre os curtas-metragens, enfrenta a briga de gangues adolescentes no potente Faixa de Gaza (2019), de Lúcio César Fernandes, vive um flerte homossexual em Ela que Mora no Andar de Cima (2020), de Amarildo Martins, envolve-se nas injustiças brasileiras em A Ética das Hienas (2019), de Rodolpho de Barros. A intérprete também foi tema de um curta-metragem documental, Cartaxo (2020), retratando o prêmio recebido num festival internacional. Em breve, sob direção de Cristiano Burlan, viverá uma mãe buscando pelo filho desaparecido no centro de São Paulo. A Mãe une a brutalidade policial contemporânea com a situação das pessoas torturadas e desaparecidas durante a ditadura militar. Cartaxo também voltará a trabalhar com Deberton no próximo projeto do cineasta.
É gratificante se deparar com casos em que o cinema redescobre seus grandes talentos, criando projetos sob medida para eles, valorizando narrativas fora do padrão considerado “vendável” e “popular”. Ironicamente, enquanto o fechamento dos cinemas impediu o lançamento dos blockbusters nacionais, ou seja, as comédias televisivas e as biografias de celebridades, ele também permitiu observar com maior atenção os trabalhos consistentes dentro de uma vertente autoral. Diz-se que Pacarrete seria um possível representante brasileiro na corrida ao próximo Oscar. Quem sabe? Ainda há muitos outros filmes com potencial pelo caminho. De qualquer modo, nem o filme, nem a atriz precisam do olhar norte-americano para se validar. Resta torcer para que, passada a pandemia num futuro próximo (assim se espera), o espectador tenha a oportunidade de reencontrar a mãe batalhadora, a dançarina frustrada, a avó comerciante, a vizinha amedrontada, a mulher sofrendo por um dilema amoroso. São mulheres diversas que representam muito bem o Brasil, todas encarnadas pelos olhos, pela voz e pelo corpo de Marcélia Cartaxo.
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Bela matéria. Grande atriz.