O cinema de gênero, especialmente o terror, traz a possibilidade de revelar imagens que as produções “polidas”, preocupadas com o alcance do público amplo, não mostrariam – incluindo vísceras, sangue, violência extrema, nudez. Em relação ao cinema de grandes festivais, o horror cumpre a missão de superar tabus sociais e confrontar de maneira frontal nossas fobias. Se a produção mainstream se limita pelo senso comum, o cinema B, o horror, a fantasia e linguagens semelhantes possuem liberdade maior para arriscar. Assim surgiram grandes monstros, fantasmas e psicopatas que representam metaforicamente a maternidade e a violação do corpo feminino (Alien, o Oitavo Passageiro, 1979), a pulsão de morte descontrolada (os assassinos dos slashers), o desejo punitivista (os rape and revenge films) e nossa dificuldade de aceitar a morte (os fantasmas, vultos e aparições). Mais do que provocar nossas emoções, as produções de horror desempenham um papel cultural, artístico e social.
No entanto, o gênero pode enveredar por outros caminhos igualmente interessantes – caso da representação pela ausência. É assustador se deparar com uma criatura sobre-humana, mas pode ser ainda mais amedrontador não vê-la, mesmo sabendo que está presente. Trata-se do dilema da barata: encontrar o inseto caminhando pelos cantos da casa pode despertar calafrios, porém a perturbação se torna ainda mais intensa quando você se distrai por um segundo e, ao virar o rosto, a barata não está mais lá. Isso significa, por extensão, que ela pode estar em todos os lugares, e qualquer coceira na perna será interpretada como uma aparição do inseto. O Homem Invisível (2020) representa muito bem este paradoxo: após instituir a presença de uma ameaça imperceptível a olho nu, a simples permanência num cômodo aparentemente vazio desperta receio à personagem de Elisabeth Moss. Nosso cérebro é condicionado a especular, a enxergar o fantasma no vazio, a imaginar seu destino. Nós completamos, inconscientemente, as lacunas deixadas pela direção.
Estes projetos solicitam ao espectador que recorra a seu acervo pessoal de imagens e experiências. A vítima de uma invasão doméstica será mais afetada pela sugestão de um sujeito invisível dentro de casa, assim como uma mulher tendo experimentado alguma forma de abuso se reconhecerá na protagonista dos filmes de estupro-e-vingança. Um vulto pode remeter a um sonho do passado, a uma sombra traumatizante na infância, à ausência de uma pessoa querida. Dentro dos filmes que exploram a sugestão, a ambiguidade e a ação fora de quadro (ou insinuada pelo som), o espectador é convidado a adotar uma posição ativa, projetando-se diretamente na trama. Quando o diretor materializa o medo na figura de um psicopata armado, ou de um monstro nojento, o público possui pouco a completar, pois tudo é dito e mostrado. No caso do perigo oculto, ainda que parcialmente, o espectador se torna co-autor da trama, seja na posição simbólica de vítima ou de criminoso. A relação de espectatoriedade se torna mais complexa e perversa.
No excelente Não Feche os Olhos (2020), o invasor aparece apenas nos pesadelos de Sarah (Julia Sarah Stone). Esta figura sem rosto, permanece estática, sem agredir a garota. No entanto, surge como uma presença inevitável – afinal, que controle podemos ter sobre nosso inconsciente? Ao vermos a personagem se chacoalhando durante o sono, conectada a eletrodos e cabos, deduzimos a potência do ser sobrenatural e a possibilidade iminente da morte. O adversário se encontra dentro da mente, razão pela qual jamais poderá ser expulso por completo, como num filme de exorcismo. Espertamente, o diretor Anthony Scott Burns sugere esta criatura a partir de um monitor (representando a própria tela do cinema), de qualidade baixa, pixelizada. Temos acesso a uma silhueta humana genérica, e por isso mesmo, capaz de corresponder aos traumas de qualquer um. Na história, os pesquisadores do sono deslizam os olhos com frequência entre a tela (onde o monstro aparece) e a sala real (onde não existe monstro algum). O público efetua a montagem em sua cabeça, introduzindo a figura imaginária no local concreto – somos nós que produzimos a violência contra a protagonista.
Algo semelhante ocorre em outra obra-prima dos últimos anos, Corrente do Mal (2014). Na trama, uma força maligna assola jovens, porém sem adotar uma imagem específica. A ameaça pode se materializar na forma de qualquer ser humano, conhecido ou anônimo, caminhando lentamente até a pessoa para matá-la. Uma vez instalada a premissa, todas as pessoas podem constituir o inimigo, razão pela qual compartilhamos a obsessão da protagonista (Maika Monroe). Como se proteger quando o simples caminhar de um anônimo representa o possível assassinato? No caso, a corrente do título diz respeito à capacidade de “transmitir” a força maligna a um terceiro através do sexo. Ao invés de representar uma metáfora óbvia para doenças sexualmente transmissíveis, como foi alardeado na época (afinal, você não deixa de carregar uma DST a partir do momento que a compartilha, ao contrário da premissa do filme), o conceito inusitado transforma o sexo num ato digno de críticas, simbolizando o conservadorismo norte-americano. O diretor David Robert Mitchell imaginou algo próximo das trajetórias de vingança, onde a entrega do perigo a outra pessoa implicaria na própria liberdade, gerando um impasse moral: estou disposto a matar um inocente pela minha sobrevivência? Como vou saber, depois do sexo, que a maldição realmente se esgotou, posto que é invisível? O roteiro representa de maneira excepcional o moralismo e a paranoia norte-americanos.
As tramas sobre medos invisíveis não surgiram com o terror contemporâneo, é claro. Suspiria (1977), um dos maiores clássicos da história do cinema, concebe um ataque sem rosto nem corpo. Em contraplano, o espectador observa bailarinas gritando diante de alguma aparição muito assustadora, antes de aparecerem mortas. O perigo deve ser imaginado pelo espectador, ou seríamos nós os monstros para quem elas olham? O voyeurismo do público ao espiar garotas jovens dentro de seus quartos pode ser interpretado como o verdadeiro motivo da morte das dançarinas. A famosa cena da banheira de Psicose (1960) surpreendeu na época por ocultar qualquer contato entre a faca do assassino e o corpo de Janet Leigh. Temos apenas uma mão erguida no ar, segurando a arma, e um corpo aterrorizado, gritando contra o azulejo do banheiro – cabe ao espectador juntar A + B e imaginar uma penetração proibida pelos censores da época. Espertamente, Alfred Hitchcock deixa ao público a tarefa de materializar a lâmina rasgando o corpo nu: o diretor nos oferece a faca para concluirmos a morte por nós mesmos.
Alguns espectadores valorizam o cinema pelo que ele tem a mostrar, e outros, pelo que tem a esconder. O terror permite que o espectador se confronte ao medo da morte, e também à vontade de experimentar a sensação de retirar a vida de alguém. Nenhum inimigo será tão potente quanto aquele imaginado pelo interlocutor, criado sob medida para as suas maiores fobias. Compreende-se que o tubarão demore tanto a aparecer na produção de Spielberg; o alienígena viva nas sombras durante a quase integralidade do filme de Scott, e Godzilla se esconda por trás de ruídos na bem-sucedida refilmagem americana. Cada espectador carrega seus próprios monstros, e ao invés de oferecer novos, os bons cineastas sabem utilizar a linguagem audiovisual enquanto ferramenta de projeção, expurgo ou retorno do recalcado. Por que frequentar uma sessão onde se descobre um único adversário, quando os sons, passos e símbolos podem sugerir inúmeros adversários diferentes? Ao invés de descobrirmos um fantasma, podemos nos virar para o corredor e perceber que ele não está mais ali.