O lançamento do suspense O Poço (2019) na Netflix tem provocado algumas reações curiosas por parte da crítica de cinema. Enquanto o público tem colocado o filme espanhol entre os mais vistos da plataforma (o que não significa necessariamente uma aprovação, apenas eficiente plano de marketing e boca a boca), parte considerável da imprensa especializada tem repudiado o trabalho do diretor Galder Gaztelu-Urrutia. Na trama, pessoas acordam dentro da estrutura mencionada no título, uma espécie de prisão vertical onde a comida é servida fartamente àqueles do andar de cima, enquanto se torna mais rara até chegar aos andares de baixo. Os miseráveis recorrem, portanto, ao canibalismo para sobreviverem. Quando os apelos para uma divisão igualitária de comida fracassam, os detentos/hóspedes concebem formas mais inteligentes de romper com o sistema. Ora, a imprensa (assim como os espectadores e qualquer outro interlocutor da obra) tem todo o direito de desaprovar o resultado. O que chama atenção, no entanto, são os argumentos utilizados para desqualificar O Poço.
Dois deles, em especial, se repetem nos textos: o primeiro, de que seria apenas uma “lição de moral”, ou seja, uma fábula didática sobre a necessidade de pensar no coletivo ao invés do individual. O segundo, decorrente do primeiro, diz respeito à superficialidade do discurso: esta seria apenas mais uma história sobre o “sistema malvado oprimindo o indivíduo”, o que implicaria numa obra maniqueísta. Um terceiro argumento transparece na maioria dos textos contrários a O Poço, ainda que não seja articulado enquanto tal, por constituir um preconceito velado e que não caberia, em tempos de inclusão, ser exteriorizado pelos autores: o fato de a obra estar repleta de restos de comida, sangue e vísceras. O “nojo” do sangue se converte no nojo pelo discurso como um todo – o estético se torna moral. Este pensamento sugere a impossibilidade de discutir política em profundidade através de pessoas se canibalizando. No entanto, cabe pensar nesses argumentos, um por um.
A lição de moral. Os textos sugerem que o filme nos diz exatamente o que pensar, e de que maneira fazê-lo. Aparentemente, o diretor e sua equipe apontam para a necessidade da fraternidade, da divisão de bens e do fim dos conflitos. Por isso, seria imediatamente moralista, ao invés de uma obra moral. No entanto, temos dois conceitos diferentes. O cinema moralista ensina ao espectador virtudes que gostaria de ver reproduzidas, enquanto repudia aquelas contrárias à sua linha de pensamento. Nestes filmes, não se trata de lançar uma reflexão ao espectador, e sim lhe ensinar algo que supõe ser desconhecido pelo outro. O cinema moralista seria, por definição, arrogante e professoral no pressuposto de que seu interlocutor é ignorante, numa mistura entre a criança precisando de ensinamento familiar, o aluno precisando de um professor e o indivíduo amoral (não confundir com imoral) precisando do ensinamento de um padre, juiz, pastor ou qualquer outra figura prescritiva.
O cinema moralista aparece em todas as suas formas e vertentes políticas. No cinema documentário de esquerda, há Michael Moore para dizer ao espectador que George W. Bush e Donald Trump são pessoas más, enquanto o correto seria votar no partido Democrata para retirar os Republicanos do poder. No documentário de direita, Dinesh D’Souza efetua o caminho oposto ao dizer que Hillary Clinton, Barack Obama e outros Democratas representam a morte da América, solicitando o voto em Republicanos para se restaurar o que ele entende por soberania nacional. Nas ficções brasileiras, alguns filmes de Sérgio Bianchi partem de simplificações perigosas da luta de classes, do lado da esquerda, enquanto Real: O Plano Por Trás da História (2017) e Polícia Federal: A Lei É para Todos (2017) restituíram a figura do juiz ou político de direita enquanto herói da nação. Filmes religiosos são moralistas por definição, e o cinema brasileiro recente tem dois belos exemplos deste ensinamento de virtudes por meio dos dois volumes de Nada a Perder (2018 e 2019). No díptico, o bispo Edir Macedo se torna uma figura puramente bondosa, enquanto padres católicos e desafetos evangélicos do mesmo se convertem em algo próximo de uma figura demoníaca na Terra.
No caso de O Poço, diversas maneiras são elencadas para se lutar contra o sistema, e nenhuma delas é vista como mais correta do que a outra. Imoguiri (Antonia San Juan), funcionária da instituição e participante voluntária da experiência, tenta conscientizar os demais pacificamente, através da fala. O protagonista, Goreng (Ivan Massagué), obriga os demais a aceitarem a divisão da comida por meio de ameaças de morte. Em certos momentos, mata alguns que não lhe obedecem. A violência do oprimido equivale à violência do opressor? Toda revolução social implica em mortes e sacrifícios? Em outras palavras, o gesto do personagem é legítimo? Miharu (Alexandra Masangkay) pensa apenas em sua própria família, sem se misturar às reivindicações de nenhum dos lados. Trimagasi (Zorion Eguileor), espécie de voz da consciência do protagonista, prega a anarquia consciente, letrada, de quem possui experiência do funcionamento do poço. Nenhum deles é visto como vencedor, nem herói – vide a ambígua conclusão. Pela disposição das peças, e pela abolição das hierarquias políticas (ao contrário da rígida hierarquia social), o sistema não possui nada de superficial ou “óbvio”, como muitos tentaram apontar, aproveitando a palavra preferida de Trimagasi.
O sistema malvado. O argumento do sistema malvado revela-se ainda mais frágil. O poço é visto como um novo modelo de prisão, em paralelo aos cárceres tradicionais. As pessoas podem escolher entre aquele lugar e a cadeia, ou ainda podem se inscrever voluntariamente, sem ordem judicial. O local não é ilegal nem secreto. Suas regras são claras e as promessas feitas aos “clientes” são cumpridas ao longo da estadia, o que inclui o preparo do prato preferido. A permanência tem prazo limitado. Ainda mais interessante é a ideia de autogestão vertical, ou seja, de um local sem a necessidade de diretores, guardas nem qualquer reforço da lei. Uma vez instituída a estrutura, ela se propaga de maneira autônoma. Esta ideia ultraliberal (o poço seria um modelo mais barato, com “menos Estado” envolvido) apresenta um formato ultracontemporâneo do panóptico de Foucault pela ideia de que as pessoas possam ser observadas a todo momento, sem saberem quando. Não existem câmeras nos andares do poço. Uma vez jogados ali dentro, as pessoas policiam umas às outras pelo princípio da manutenção dos privilégios.
Por um lado, o sistema reproduz mecanismos sociais evidentes (a hierarquia social e a existência de desigualdades), por outro, introduz um funcionamento fantástico: a cada mês as pessoas acordam num andar diferente, ou seja, numa classe social nova. Assim, podem passar do luxo extremo à miséria absoluta num piscar de olhos, e retornarem ao luxo se assim quiser o elevador do poço. Contra a ideia de que não existe um elevador social nas sociedades capitalistas – visto que “o rico cada vez fica mais rico, e o pobre cada vez fica mais pobre”, como diria a canção -, o roteiro faz do elevador o personagem principal. As subidas e descidas existem, diante de todos, diariamente. É possível acusar o sistema de ser perverso, manipulador, negligente, rentista, porém não “malvado”. Acusar um filme de superficialidade através de uma análise igualmente superficial constitui uma curiosa ironia. Por que o poço seria mais malvado do que uma prisão, ou do que qualquer outra estrutura social? A aleatoriedade dos andares não representaria uma chance de melhoria? Ou seria um aceno à ilusão de chances iguais a todos dentro de uma estrutura vertical, a famosa meritocracia?
Os andares de Parasita. Alguns textos críticos se detiveram sobre a própria estrutura do poço para desqualificar o filme, sem analisar o que acontece a partir do cenário – ou seja, pararam no ponto de partida do filme. Entretanto, a estrutura de andares representando classes sociais tem sido utilizada à exaustão no cinema político alegórico recente. Expresso do Amanhã (2013), de Bong Joon-ho, trazia classes sociais separadas pelos vagões de um trem. Em High-Rise (2015), Ben Wheatley colocava a sociedade num gigantesco arranha-céu onde os mais ricos vivam na cobertura, ao contrário dos pobres dos andares baixos, sofrendo com a falta de energia e acesso a produtos de base. Elysium (2013) e a série 3% (2016 – ) trabalharam a ideia de um planeta ou espaço privilegiado mais alto, em detrimento dos pobres deixados na Terra miserável.
Talvez o melhor exemplo provenha de Parasita (2019), do mesmo Bong Joon-ho de Expresso do Amanhã. O projeto, vencedor do Oscar de melhor filme e da Palma de Ouro no Festival de Cannes, se concentra numa família pobre, moradora de uma casa subterrânea, competindo com outra, moradora de um porão secreto, pela possibilidade de literalmente subirem de nível e ocuparem a casa espaçosa de uma família mais rica. O enfrentamento embute generosa dose de humor através dos quiproquós da família desprivilegiada. Percebe-se o tom de farsa nesta trama de apropriação e roubo. Apesar destas diferenças, os paralelos com O Poço são inúmeros: a ideia de segregação social por andares, a possibilidade de ascensão ou queda por meios ilegais e não previstos pelo regulamento, o olhar onisciente do espectador durante a travessia (em ambos os casos, somos os únicos a testemunhar as subidas e descidas dos protagonistas), a aparência de fábula e/ou fantasia, e sobretudo a noção de uma coabitação impossível, exigindo que a selvageria se instaure no encontro entre diferentes classes.
Apesar de igualmente claros em suas metáforas sociais, um diferencial importante se aplica a ambos: Parasita é muito mais palatável, divertido, polido. O filme sul-coreano não tem sangue jorrando, vísceras expostas nem resto de comida sendo pisoteado. Ora, por que o vencedor do Oscar não foi considerado como uma lição de moral, como uma prova do sistema opressor, enquanto o segundo foi repudiado com tamanha veemência? Talvez a resposta venha do aspecto presente em tantos textos, porém com certa discrição, com visível acanhamento, porque sobre isso não se fala, e isso não cabe num texto polido sobre filmes polidos: o nojo.
O nojo. O Poço constitui um exemplar de “cinema de gênero” na acepção ampla do termo. Ele não tem medo de abraçar o exagero, o grotesco, o selvagem. Há homens idosos nus, há pessoas sujas, corpos sendo decepados em plano próximo, fezes saindo do ânus de uma pessoa diretamente para o olhar da câmera – e do espectador. Em outras palavras, este não é um filme “bonito”, do tipo que normalmente concorre em festivais pela Palma de Ouro ou o Urso de Ouro. Como lembrado por alguns artigos, a obra foi selecionada na mostra Midnight Madness do Festival de Toronto, algo sublinhado em provável tentativa de diminuir o seu valor. Ora, este seria apenas um “prazer de meia-noite”, um destes filmes cheios de vísceras que serviriam para contentar adolescentes cheios de hormônios e nerds sonhando um mundo povoado por monstros.
O preconceito deste pressuposto está presente não apenas nos críticos que repudiaram a obra por este motivo específico, e sim nos próprios festivais de cinema que ainda teimam em aceitar obras “nojentas” como tão boas quanto qualquer outra obra “de bom gosto”, onde as pessoas se matam fora de quadro, ou pelo menos, onde as entranhas não estão expostas. Às vezes apenas reproduzimos o conservadorismo social ao sugerirmos que o corpo não deveria ser desnudado no cinema, ao passo que fluidos e secreções deveriam ser mantidos em segredo. Pensa rápido: quantos personagens você já viu fazendo cocô no cinema? Com o nariz escorrendo, fora de uma cena de choro extremamente dramática? Jorrando sangue, fora de um filme de terror? O cinema “de gênero” se tornou o refúgio para algumas coisas que não costumamos ver, que ainda não são consideradas apropriadas – nem comercialmente seguras – pelos produtores majoritários.
O Poço vai além, incluindo nos principais papéis atores negros, estrangeiros, deficientes. É uma pena que os analistas da “obviedade” tenham discorrido sobre estes aspectos tão interessantes do filme. Ainda há a questão dos objetos de afeto e de poder: cada personagem tem o direito de levar um único objeto para dentro do poço, e este item trata de representar seu dono. O que você levaria para uma prisão? A tolerância à presença de armas se traduz em convite à barbárie. O protagonista leva um livro – logo Dom Quixote, aquele cavaleiro utópico que lutava contra moinhos de vento – enquanto seu vizinho de “cela” traz uma faca ultra afiada. Outros levam cachorros. Existe o fato de que um certificado será emitido no final, como reconhecimento pelos esforços. Neste sentido, o poço se aproxima de um treinamento militar, uma experiência de formação para o mundo lá fora – que seria, supõe-se, ainda pior.
Na hora de discutir qual símbolo levar às classes privilegiadas, tentativa de despertar uma revolução, os protagonistas discordam entre o mais concreto e o abstrato. Mas a quem estariam levando o símbolo mesmo? Quem seria o real diretor deste lugar? Estamos diante do Castelo de Kafka, aquele espaço autogerido, que dificulta a iniciativa de destruir o poder simplesmente por não saber onde o poder se encontra. Há muito o que se debater a partir do filme espanhol. Seria uma pena descartá-lo rapidamente porque seus andares se assemelham demais a estratos sociais (então pronto, já entendi o filme, passemos a outra coisa), ou porque seu sangue nos perturba. O incômodo, às vezes, constitui uma poderosa ferramenta estética e discursiva.