O assassinato covarde de George Floyd, em Minneapolis, Estados Unidos, em 25 de maio, causou uma onda de protestos mundo afora. Suspeito de tentar comprar mantimentos com notas de dólar falsas, ele foi, para começo de conversa, desproporcionalmente tratado como um bandido de altíssima periculosidade. Logo em seguida, a imobilização durante quase 10 minutos com requintes de crueldade. O policial Derek Chauvin permaneceu com o joelho no pescoço do acusado, mesmo quando a vítima se contorcia em agonia pela dificuldade de respirar. Outros policiais participaram da imobilização desnecessária, sintomática do racismo incrustado na sociedade estadunidense. É chocante o registro audiovisual do homem sufocado até a morte, crime, repito, obviamente de cunho racial. George era negro, não oferecia perigo para ser tratado com tamanha força descomunal, esta incendiada pela canalhice da supremacia branca. Nesse sentido, o testemunho do ocorrido assevera a brutalidade e a sanha assassina dos agentes que deveriam zelar pela lei. Mas, o objeto deste artigo é o poder mobilizador das imagens em movimento. Ou alguém acredita que, uma vez não filmado, o homicídio seria relativizado pelo poder hegemônico?
Diariamente, dezenas de George Floyd são vilipendiados. Corpos violentados, direitos básicos violados, vidas marcadas pela impunidade instaurada nas frestas das sociedades construídas sobre abismos sociais. Mas, porque então a mobilização em torno do assassinato de Floyd é tão maior do que, por exemplo, a que sobreveio ao covarde homicídio do menino João Pedro, acontecido no Rio de Janeiro também em maio, durante uma ação policial, no mínimo, irresponsável? Talvez, mesmo em tempos de pandemia, a Cidade Maravilhosa igualmente ardesse em chamas se tivéssemos acesso a um registro audiovisual dessa ação do Estado que vitimou fatalmente mais uma criança cuja inocência chegou a ser contestada pelo simples fato de residir numa área dominada por narcotraficantes. Inocência minha diante dessa sociedade inerte ante a tanta selvageria? Pode até ser. Porém, nesse caso a diferença a ser considerada é a peça audiovisual, as imagens em movimento que apresentam detalhes de uma ação espúria. Diferentemente das narrativas orais, a imagética frequentemente assume contornos de verdade testemunhada, o que ao longo das décadas se mostrou essencial à mobilização das massas em torno das causas.
Numa cidade fraturada pela criminalidade como o Rio de Janeiro, relatos de brutalização estatal a corpos negros e periféricos infelizmente são cotidianos. Basta assistir a um documentário como Auto de Resistência (2018), de Natasha Neri e Lula Carvalho, para entender até onde a impunidade policial é utilizada como subterfúgio para perpetuar tantas práticas inomináveis. Mas, esses relatos comumente não são registrados em vídeo, acabam portanto arrolados numa disputa de versões. As vítimas discorrem acerca de atos absolutamente condenáveis. Os algozes colocam em xeque as próprias crueldades, recorrendo a lugares-comuns canhestros, tais como normalizar violência em áreas socialmente entendidas como nascedouros da mesma. Mas, novamente, e se toda e qualquer ação dos fardados fosse obrigatoriamente gravada em suporte audiovisual? As imagens em movimento têm esse poder de impulsionar paixões, de inflamar, de impor-se como fragmento de uma realidade a ser confrontada. Fotografias são poderosas, obviamente, mas talvez seu caráter estático lhes confira certa placidez, algo que o movimento, a priori, não permite. Se George Floyd fosse asfixiado longe das câmeras, provavelmente a resposta social seria restrita.
Outro caso famoso de depoimento audiovisual capaz de incitar a opinião pública rumo a respostas marcantes, precisamente de gerar ondas de protestos, foi o de Rodney King, trabalhador da construção civil que na noite de 03 de março de 1991 foi espancado pela polícia de Los Angeles. Registrada por George Holliday, então uma testemunha ocular, a cena correu o mundo causando indignação num tempo em que não era possibilitado a qualquer dispositivo móvel captar episódios em tempo real. A absolvição dos acusados, no julgamento ocorrido em 1992, causou outra torrente de protestos violentos, demarcados por saques, confrontos armados e outras demonstrações de insatisfação. Mas, foram aqueles minutos aterradores eternizados em vídeo que ocasionaram a resposta, mobilizando a população farta de ser brutalizada longe dos olhos do mundo. É enorme a potência desse vislumbre da covardia policial, com brancos socando e chutando o homem negro que padecia cada vez mais no chão. A imagem alude ao estruturalismo do racismo, a essa pressuposição lamentável de que algumas pessoas são menos gente por conta da cor da pele. E ela não deve ser espetacularizada, não pode servir para a transformação da morte negra num espetáculo macabro e vil.
Especialmente no que diz respeito a temas controversos, capazes de acender rixas entre grupos diametralmente opostos, esse poder mobilizador da imagem me parece vital, a ser apropriado. Peguemos como exemplo a Ditadura Civil-militar que regeu o Brasil a chumbo quente por 21 anos. Para alguns, é suficientemente aterrador ouvir os relatos de pessoas que foram vítimas dos militares, especialmente aquelas que sofreram torturas físicas/psicológicas por defender uma ideologia discordante do regime então vigente à força. Para outros, a insensibilidade é tamanha que não os permite apiedar-se de alguém que alude a choques em partes íntimas, ratos enfiados em vaginas, posições dolorosas durante horas, entre outras inumanidades. Mas, será que até os aparentemente empedernidos, diante da história trágica da nossa nação avessa à manutenção da democracia, não seriam afetados de modo diferente, quiçá mais profundamente, caso tais práticas tivessem registro audiovisual? Claro, tem gente capaz de ser indiferente até mesmo frente ao testemunho factual, mas aí isso é matéria para outra reflexão. Provavelmente, em vídeo esses depoimentos tenderiam a ser menos refutáveis, sobretudo pela (às vezes ingênua) preconcebida genuinidade.
No documentário Escolas em Luta (2017), os realizadores fizeram questão de mostrar os protocolos dos estudantes secundaristas diante das ações policiais. Duas pessoas registravam-nas com seus celulares. Se uma fosse anulada, restaria a outra. Especialmente à geração que cresceu embalada por audiovisual, íntima das imagens movimento, parece orgânico utilizá-las como prova, quiçá como escudo, a fim de permitir a possibilidade de existência de eventuais narrativas capazes de questionar a palavra hegemônica do Estado ali representado pela gana dos fardados. Essa leva que nasceu conectada, bombardeada desde muito cedo por conteúdo transmitido via imagens em movimento, já tem introjetado o entendimento da imprescindibilidade das mesmas. Talvez se tivéssemos uma gravação da família carioca que em 2019 foi alvejada com mais de 80 tiros numa ação policial, esse fato fosse menos passível de gradativamente cair no limbo das estatísticas. A máxima “uma imagem vale mais que mil palavras” pode até parecer ingênua, mas acaba encontrando sentido na inflamação da indignação perante o autoritarismo.
Assumir perspectivas na hora de registrar as imagens – se de perto, de longe, de determinado ângulo (às vezes o apenas possível) –, bem como intervenções de montagem e outras técnicas, é algo que precisa ser entendido dentro dessa capacidade sensibilizadora. A urgência da câmera na mão, o deslocamento determinado pela necessidade de afrontar as violências, o plano-sequência que captura tenso a morte, são componentes da linguagem capazes de traduzir involuntariamente o sintoma de realidade que torna tudo cruel de ser testemunhado. Mas, essa questão de estilo quanto às imagens mobilizadoras pode ser desdobrada num novo artigo. Por enquanto nos basta entender minimamente esse fenômeno e lamentar que alguns crimes praticados contra a humanidade, uma vez infelizmente concretizados, não tivessem sido devidamente lavrado por cinegrafistas. Ver certas coisas é brutal, mas bem menos do que vivenciá-las. Quem cala, consente, como diz o ditado. Quem prefere ignorar também o faz, de certa forma.
Alguns dos principais teóricos da imagem se debruçaram sobre o choque ocasionado pelo registro audiovisual da morte de John F. Kennedy, em Dallas no dia 22 de novembro de 1963. JFK não foi o primeiro presidente norte-americano baleado, mas aquele cujo assassinato foi chocantemente televisionado, depois reprisado à exaustão. Há poucas dúvidas quanto à transformação que essa cena causou, impactando a televisão e o cinema daquela época. Todavia, até essa capacidade mobilizadora das imagens em movimento tende a ser colocada em xeque nos nossos tempos loucos de negacionismo. Com o avanço da tecnologia, possível a qualquer usuário com uma boa máquina e o software adequado adulterar registros audiovisuais, trocando rostos, mudando falas, colocando gente na cena ou atribuindo a alguém as manifestações de outrem. Tem quem duvide que se as imagens aterradoras dos campos de concentração fossem tornadas públicas na atualidade, não haveria quem as contestasse? Então, podermos estar na iminência de uma crise da imagem em movimento, especialmente no que tange a esse fascinante poder mobilizador.
Então, apesar do cinema, especialmente o norte-americano, ter criado uma insensibilização diante de cenas violentas, muitas vezes as glorificando, não colocando dentro das suas equações narrativas o sofrimento invariavelmente decorrente, imagens em movimento ainda têm esse poder mobilizador. Claro, há aqueles que até se regozijam de compartilhar via aplicativos de mensagens episódios aterradores, como alguém sendo morto à queima-roupa ou ocorrências igualmente lamentáveis. É bom não ignorar a capacidade de sadismo de alguns diante de algo que deveria provocar óbvios choque e indignação. Mas, convém entender que o audiovisual, seja ele cinema, televisão, vídeo de internet ou o que o valha, ainda conserva essa capacidade de estimular-nos para além de uma inércia convenientemente fomentada por agentes de dominação. Nos apropriemos delas, como escudos do oprimido.
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