Foi uma surpresa agradável encontrar, em menos de dois anos, três longas-metragens tendo como tema central o amor entre mulheres numa época passada. O francês Retrato de uma Jovem em Chamas (2019), de Céline Sciamma, o britânico-australiano-norte-americano Amonite (2020), de Francis Lee, e o norte-americano Um Fascinante Novo Mundo (2020), de Mona Fastvold, foram exibidos nos maiores festivais de cinema do mundo – Cannes, Toronto e Veneza, respectivamente. Alguns veículos de imprensa anunciaram uma “onda de dramas históricos lésbicos”, um exagero diante de número ainda limitado de obras do tipo com destaque no circuito. A maioria destas produções costuma ficar restrita a nichos de distribuição e exibição, sendo lançada diretamente na Internet, por produtoras de pequeno porte. Ironicamente, o aceno a um “boom do cinema LGBTQIA+” sublinha a carência destas representações por atores de renome e grandes estúdios, razão pela qual se tornam evidentes quando finalmente surgem nas telas dos cinemas.
As semelhanças despertaram a atenção: trata-se de obras estreladas por atrizes famosas de seus respectivos países, e fugindo ao cenário urbano (preferindo o ambiente à beira-mar nos dois primeiros casos, e a paisagem interiorana no último), em tramas situadas há pelo menos 170 anos: Retrato de uma Jovem em Chamas se passa na Bretanha do século XVII; Amonite se situa em Dorset, na Inglaterra, no ano de 1840, e Um Fascinante Novo Mundo apresenta a Nova York campestre de 1850. O modus operandi se repete através do encontro inesperado entre duas mulheres de meios diferentes, e com experiências de vida distintas. Uma delas rechaça o flerte, mas a outra insiste. Aos poucos, cedem ao romance e descobrem que nunca foram tão felizes.
O filme francês traz a história de Marianne (Noémie Merlant), uma pintora encarregada de fazer o retrato de Héloïse (Adèle Haenel) para servir de presente ao futuro marido. Como esta última resiste ao casamento, o quadro deve ser feito em segredo. A artista chega à região, aproxima-se da jovem nobre e a observa atentamente, para pintá-la em seguida, escondida dos olhares de todos. Este universo é quase inteiramente feminino: não existem homens na casa onde as protagonistas iniciam um relacionamento, apenas a Condessa (Valeria Golino) e uma pobre serva (Luàna Bajrami).
Em Amonite, Mary Anning (Kate Winslet) é uma experiente arqueóloga e geóloga, cujo trabalho nunca foi devidamente reconhecido por ser mulher. Ela vive à beira-mar junto da mãe idosa, demonstrando um temperamento amargo. Quando é encarregada de entreter Charlotte (Saoirse Ronan) jovem em luto após perder o primeiro bebê, Mary recusa esta presença indesejada, imposta pelo marido da visitante. No entanto, entre escavações na lama e a convivência doméstica, as duas se apaixonam. Trata-se de uma “biografia imaginária”: Mary Anning de fato existiu e permaneceu solteira até a morte, porém nunca houve indícios de sua homossexualidade.
A premissa do luto pelo filho pequeno também motiva Um Fascinante Novo Mundo. Abigail (Katherine Waterston) se encontra em estado de depressão após a perda, sendo incompreendida pelo marido (Casey Affleck), que insiste numa segunda gravidez para compensar a tragédia familiar. A chegada de novos vizinhos promove o encontro com a extrovertida e ousada Tallie (Vanessa Kirby), esposa de Finney (Christopher Abbott). Relegadas aos cuidados da casa, elas passam as tardes juntas, quando desenvolvem um relacionamento às escondidas.
Nestes projetos, o romance lésbico constitui uma experiência nova para pelo menos uma das duas – Héloïse, Charlotte e Abigail – sendo visto como única possibilidade de mudança num cenário tedioso e inerte. As heroínas começam suas trajetórias infelizes, presas a convivências familiares opressoras e condições de trabalho insatisfatórias. Elas encontram no amor romântico a oportunidade de fugir à rotina de donas de casa, e escondem muito bem suas paixões – menosprezadas pelos homens e presas ao lar, podem desenvolver a aventura com notável discrição. Há leves rumores na sociedade a respeito da homossexualidade das protagonistas, mas nada que impeça a concretização dos desejos. Sendo invisíveis, estas mulheres se tornam, pelo menos, um pouco mais livres.
Ao contrário de tantos romances entre homens (Longe do Paraíso, 2002, Direito de Amar, 2009), o dilema não se encontra no escândalo social, no “o que dirão os outros?”, e sim na dificuldade de conciliar a vida familiar e a vida amorosa. Envolvidas pela primeira vez com alguém do mesmo sexo, as heroínas sequer cogitam recusar o casamento prometido, ou romper com o marido. Elas pensam apenas em sustentar o caso longe da vigilância alheia. O ato de assumir-se lésbica se revela incompatível com o período: as duplas manifestam profundo apego pela companheira, porém se encontram num passo anterior a perceberem e rotularem sua sexualidade. Ocorrendo em gerações distantes da nossa, estas histórias não carregam os termos lesbianismo, homossexualidade e afins. Sem categorias claras, expressam apenas um sentimento puro de amor recíproco.
A força do desejo se manifesta por caminhos metafóricos fundamentais à narrativa. O primeiro deles é a natureza, conforme atestado pelo fogo e as ondas do mar no filme francês, ou a lama e a sensualidade das pedras na trama envolvendo a arqueóloga. Para a dupla norte-americana, há fogo, chuva torrencial e tempestade de neve, ameaçando as protagonistas de morte quando se aventuram fora de casa. O segundo caminho reside na arte, no caso, a pintura, a música e a literatura, respectivamente. As heroínas são apaixonadas pela representação poética e transformadora da vida por meio dos retratos, dos textos de escritores famosos e das noites de ópera. A natureza e a expressão artística representam formas de alterar, literal ou simbolicamente, a realidade que ocupam.
Em paralelo, a sensibilidade dos diretores, posicionando-se junto às personagens sem julgá-las moralmente, impede que o amor se converta em escândalo. Paira a aparência de recato em cada beijo, graças ao pudor da época, à inocência destas mulheres em relação ao próprio corpo e ao medo de serem descobertas. Há cenas de sexo cruas e frontais (especialmente em Retrato de uma Jovem em Chamas e Amonite), porém distantes das acusações de exploração machista do corpo feminino em Azul É a Cor Mais Quente (2013). Pesa a favor das três obras recentes o fato de serem construídas por duas mulheres (Mona Fastvold e Céline Sciamma, esta última com ampla experiência na representação da homossexualidade) e por Francis Lee, cineasta assumidamente gay que já abordou questões de orientação sexual em O Reino de Deus (2017).
Por isso, ato sexual nas obras se mostra tão realista quanto distanciado, fugindo à idealização da nudez. Os artistas privilegiam a imagem da pele, os planos de detalhe das mãos, as trocas de olhares. Em paralelo, a sensibilidade nunca se contenta com mera carícia: há prazer e orgasmos nestes encontros intensos. Começa a desaparecer a percepção social (masculina e heterossexual, é claro) do sexo lésbico enquanto menos válido e prazeroso do que aquele envolvendo a penetração do pênis na vagina. Isso se justifica pelo fato de que as obras citadas se passam no passado, porém transmitem claramente um olhar do século XXI. Os cineastas utilizam a distância temporal para sustentar o discurso político: primeiro, relembram que a homossexualidade sempre existiu, não podendo ser considerada uma “moda” ou corrupção moderna de valores patriarcais.
Romances LGBT ocorrem desde que o mundo é mundo, mas talvez agora sejam menos escondidos e menos sofridos. Segundo, estes filmes abordam os romances como naturais e belos. Os autores jamais se chocam diante da aproximação entre as heroínas, evitando coincidir com o olhar preconceituoso da época. Terceiro, ressaltam a diferença entre aqueles tempos e os dias de hoje, quando o lesbianismo, ainda cercado de tabus, pode se assumir com orgulho, sem se submeter à moral religiosa. As histórias não possuem necessariamente um final feliz, pelo contrário, privilegiam uma conclusão amarga. Ao invés de insinuarem que casais LGBTQIA+ viviam satisfatoriamente nos séculos passados, preferem relembrar a extrema dificuldade em sustentar o relacionamento.
Os três dramas históricos receberam inúmeros prêmios, em especial para o roteiro e o elenco. Se de fato contam com atrizes excelentes, também foram alvo de preconceito e paternalismo das premiações conservadoras, que enxergam na interpretação de mulheres lésbicas uma “grande transformação” e um “imenso esforço” digno de recompensa. Por mais que as obras insistam na naturalidade desses amores, ainda se percebe o exotismo na interpretação do público e da indústria. Nenhum destes filmes – assim como O Segredo de Brokeback Mountain (2005), no caso da homossexualidade masculina – foi recompensado com o Oscar ou o prêmio principal dos festivais disputados. Amonite e Um Fascinante Novo Mundo foram prejudicados pela paralisação do circuito comercial durante a pandemia de Covid-19, tendo seu lançamento em salas cancelado. De qualquer maneira, abrem um caminho importante, apesar de incipiente, para a abordagem da sexualidade e o gênero dissociada da perspectiva escandalosa, moralista ou martirizante.
Por fim, estes projetos observam suas histórias enquanto paixões, simplesmente, sem fazerem da saída do armário ou da descoberta pela sociedade o motor narrativo. Começamos a nos afastar da ideia de que gays e lésbicas podem ser aceitos nas produções majoritárias, contanto que sofram copiosamente por sua orientação sexual. Esse discurso moralista serviu historicamente a apavorar espectadores LGBTQIA+ e demonstrar aos heterossexuais que, de fato, estão seguindo o caminho correto – vide os sacrificantes Os Rapazes da Banda (1970), Parceiros da Noite (1980), Filadélfia (1993) e Albert Nobbs (2011). Ora, Retrato de uma Jovem em Chamas, Amonite e Um Fascinante Novo Mundo se voltam a cenários antigos e isolados para estudarem comportamentos igualmente marginais, com ternura e atenção. Embora estas histórias carreguem inegável dor, esta não supera os instantes de felicidade entre as mulheres, nem lhes serve de lição para retomarem os relacionamentos com homens. Ser gay ou lésbica não precisa mais significar uma forma de condenação.