O último filme que vi no cinema foi no mês de março, não lembro mais a data. Naquela época, costumava ir ao cinema quase todos os dias (ossos do ofício), para ver muitos filmes bons e outros muitos ruins (de novo, ossos do ofício). Adorava o som de certas salas, a poltrona de outras, a qualidade de projeção em algumas. Ficava incomodado com salas bem equipadas que deixavam caixas de som desligadas para economizar nos gastos, e porque muita gente não reclamava. Hoje, vejo filmes em casa, numa televisão razoável, com som fraquinho. Às vezes, vejo no computador, com tela ainda mais limitada, e som ainda mais fraco. Tudo bem, coloco o fone de ouvido, tento ver no escuro. Assistir aos filmes em casa tem suas vantagens, eu sei. Meu sofá é mais gostoso que as poltronas. A pipoca é mais barata. Mas não é a mesma coisa.
O último filme que vi no cinema tinha astronautas, viagem espacial, preparação para entrar na cápsula, gente se despedindo dos familiares caso nunca mais os visse, porque a nave poderia explodir. Era um drama lindo – sorte minha. Desde então, acredito que não tenha visto mais nenhuma história de astronautas, pelo menos não entre as estreias da Internet e da televisão. O streaming prefere narrativas intimistas, romances, suspenses sobre amantes obsessivas e comédias de gente que se mete em assaltos por engano. Não tem espetáculo, porque espetáculo custa caro, e também espera receber muito dinheiro em troca. Por isso, precisa da sala de cinema, onde o som é melhor, a projeção é melhor, o ingresso custa mais e a pipoca pode ultrapassar os vinte reais. As estreias das plataformas virtuais incluem aquelas obras autorais tão arriscadas que dificilmente chegariam nas salas de cinema, e as obras ruins e amadoras que também passam longe do cinema – não confundir com obras ruins e caras, que chegam ao cinema o tempo todo.
O último filme que vi no cinema não foi visto por quase ninguém, porque logo os cinemas fecharam e o título se perdeu nos arquivos das distribuidoras. Talvez esteja em alguma das dezenas de plataformas virtuais, onde fica difícil encontrar o que quer que seja. Queria poder comentar este drama com outras pessoas, descobrir se gostaram tanto quanto eu, se ficaram emocionadas no mesmo momento, se também se encantaram com a atuação da protagonista. A intenção não era postar a sessão nas redes sociais e ganhar likes com isso, mas fazer a obra reverberar por meio da experiência compartilhada com os colegas, resgatando o gostinho bom daquela cena, daquela luz, daquela trilha. Filme bom é como comida bem feita, deixa gosto de satisfação por muito tempo. Quando se lembra dele no futuro, o gosto volta. Guardei as imagens na memória, e caso ninguém mais as tenha, podem não ter passado de uma alucinação minha. O cinema, quando não se vive em conjunto, pode ser apenas um sonho.
O último filme que vi no cinema tinha uma sessão lotada – de críticos, no caso, dentro de uma sala reservada a projeções de imprensa, mas a experiência também conta. Ninguém ao meu lado usava máscara, porque não se usava máscaras naquela época. Se não me engano, existia uma lei proibindo pessoas de cobrirem seus rostos em lugares públicos. Tinha um monte de gente ao meu lado, e eu achava isso normal. Era comum ficar irritado com quem chutava a minha poltrona, com quem falava durante o filme ou comia pipoca alto demais – o que não acontecia com a minha pipoca, porque o barulho da nossa pipoca nunca atrapalha. Era gostoso ficar irritado com isso, porque reforçava o purismo de ouvir apenas o som do filme, olhar apenas para a tela. Hoje, a ideia de pessoas numa sala de cinema sem máscaras me dá calafrios. A ideia de pessoas sentadas lado a lado, encostando sem querer na perna do outro e pedindo desculpa, também. Em casa, não tem ninguém para falar alto e irritar a minha sessão. Seria estranho eu começar a falar sozinho, em voz alta. Não tenho outro sofá para chutar.
O último filme que vi no cinema se chama A Jornada (2019), com uma direção delicada de Alice Winocour, e atuação comprometida da Eva Green. Coisa linda, história de astronautas pelo ponto de vista feminino, mostrando a pressão suplementar aplicada às mulheres em relação aos astronautas homens. Filme de espaço mais preocupado com os problemas da Terra, como em todo bom filme de espaço. Parece que já se passaram anos desde a sessão. Talvez a gente envelheça mais rápido em momentos de crise, ou quando fica fechado em casa. A noção do tempo se perde, os dias da semana se embaralham. Além disso, os filmes em streaming não estreiam na quinta-feira, eles chegam a qualquer momento. Os cinemas vão voltar a abrir, eu sei. Mas não sei quando, em quais condições, com quais filmes. Títulos brasileiros incríveis vão competir com dez James Bond e mais dez Velozes & Furiosos, e já cogitam lançar diretamente em formato online. Triste, porém compreensível. Algum técnico de som muito bom passou um tempão desenvolvendo efeitos sonoros impressionantes que a minha televisão razoável, e meu som fraquinho, não vão poder captar.
Esse ano traça um marco, uma ruptura na nossa relação com o cinema. Vai existir um antes e um depois de 2020. Talvez tudo volte a ser como era antes, quem sabe? Duvido. Terá havido uma lacuna, uma cicatriz. Não acredito que a experiência em salas será a mesma, nem a experiência de ficar em casa e ver um filme na televisão. Antes, ver filme no cinema ou na televisão era questão de escolha – e também de condição financeira, de disponibilidade geográfica de salas e de filmes. Antes, quando batia o cansaço de ficar no pequeno apartamento onde moro, dava uma caminhada pelo bairro para esticar as pernas e ver gente de verdade, não aqueles personagens fascinantes que só existem no cinema. Eram outros tempos. O ano de 2020 vai mudar os espectadores, e talvez esta seja a principal narrativa do momento: uma história de suspense, repleta de tensão. O pequeno A Jornada, que pouca gente viu, vai adquirir um significado ainda mais importante para mim, por motivos que as criadoras jamais teriam imaginado. A gente nunca sabe quando está vendo um filme que vai nos marcar no futuro.