Eis uma ideia que encontra certa resistência dentro dos grupos cinéfilos: nenhum filme é melhor do que o outro em função do tema. Um drama sobre o sofrimento de um povo não é necessariamente melhor do que uma história de amor. A cinebiografia sobre um artista adorado não seria obrigatoriamente mais importante, ou digna de atenção, do que uma comédia sobre cachorrinhos falantes. O conceito de valor extrínseco à obra (que não seria boa ou ruim em si, dependendo da interpretação alheia) possui trânsito livre dentro das ciências sociais aplicadas ao cinema – a sociologia da arte, a antropologia da imagem – porém emperra quando se aproxima da cinefilia ferrenha, autoral, do tipo que busca clássicos incontestáveis e talentos absolutos.
Um dos maiores professores de teoria de cinema que já tive, o francês Jacques Aumont, defende a ideia de que existem obras objetivamente boas, cabendo ao crítico detectá-las. (Por curiosidade, ele sugere que Cidade dos Sonhos, 2001, seria inegavelmente excelente. Quem discorda disso não teria compreendido a genialidade de David Lynch). Já Pierre Menger, outro professor e sociólogo da arte, acredita que a impressão de qualidade se constrói por um grupo, podendo sofrer mudanças de acordo com o tempo, o lugar e os costumes. Um clássico atual pode ser detestado amanhã, dependendo da percepção de um novo grupo. Vale lembrar que os projetos inovadores da Nouvelle Vague foram majoritariamente reprovados pela crítica de sua época. Em paralelo, o profundamente racista O Nascimento de uma Nação (1915) era considerado um filme excelente, até perceberem seu discurso escravagista (ou finalmente escutarem as vozes negras que alertavam para tal na época).
Nesta disputa de narrativas, prefiro a opinião de Menger. Desde as formas clássicas de arte, a tragédia é considerada superior à comédia, e grandes temas de sociedade são considerados superiores a histórias de amizade e afeto. Filmes de terror, com cérebros expostos, sangue e afins, costumam ser interpretados como inferiores a dramas de Shakespeare. Primeiro, existe o preconceito contra a cultura popular em detrimento do erudito. Segundo, valoriza-se o sentimento ao invés da sensação: é bom chorar diante de um personagem doente, mas não torcer pela morte da mocinha burra, nem ter medo quando o assassino aparece com um machado na mão. Considera-se que a piedade tenha um valor superior ao riso, ou então, a exposição a uma história sobre a superação de obstáculos faria de mim uma pessoa melhor, enquanto o prazer de uma história de zumbis implicaria em alienação, e talvez me tornasse um indivíduo perigoso. Trata-se de preconceitos infundados, é claro.
O pensamento utilitarista constitui uma forma perigosa de relação com a arte, além de ser fundamentalmente reacionário. Quando Jair Bolsonaro e seus ministros (ou então o atual presidente da Petrobrás) defendem o fim do financiamento público a obras de temática LGBT, para priorizar iniciativas sobre a pequena infância e histórias religiosas, eles partem de alguns pressupostos problemáticos: 1. Pessoas são diretamente influenciadas por um filme. Se virem algo, assimilarão e tentarão reproduzi-lo. 2. Discutir pobreza, LGBTfobia, racismo e afins constitui algo errado. Melhor seria ignorar o tema, fingir que não existe. 3. Abordar um tema equivale a defendê-lo. Se um projeto investiga a legalização das drogas, ele certamente defende a legalização das drogas, constituindo, de acordo com os itens 1 e 2, um perigo social.
Entretanto, embora estes indivíduos não sejam dotados de senso crítico, isso não significa que o resto do mundo também o seja. É possível estudar um tema do qual se discorda, ou suscitar o debate sobre um raciocínio sobre o qual se apresenta reservas. O documentário A Terra É Plana (2018) questiona o misticismo desprovido de fundamento científico, mas se interessa em investigar os motivos que levam pessoas sãs a acreditarem em algo tão absurdo. Taxi Driver (1976) não defende a violência e a vingança, embora apresente doses generosas de ambos. Já Bixa Travesty (2018) de fato defende a pluralidade de corpos e identidades, mas neste caso, o questionamento seria outro: por que existiria qualquer problema em defender maneiras distintas de existir em sociedade? Bom, vai explicar para Damares Alves que Mignonnes (2020) não defende o erotismo infantil, ainda que o aborde em imagens…
De fato, o cinema não é seu tema, ele não é seu gênero. Pensamentos progressistas podem dar origem a filmes reacionários (vide a filmografia de Dinesh D’Souza), enquanto pensamentos reacionários podem resultar em filmes progressistas (caso de Arquitetura da Destruição, 1989). O discurso, e por consequência o valor de um projeto, decorre diretamente de como o tema é abordado. Por qual ponto de vista aquele tema é representado? Sob qual perspectiva? Por quem, e para quem? Como o olhar da direção se posiciona diante do espectador: enquanto professor, mestre, amigo, fã? Ele busca te convencer de algo? Vende uma ideia pronta, ou convida a um debate mais amplo? Através de quais ferramentas de luz, som, montagem, trilha sonora as ideias são apresentadas? Estas questões são fundamentais diante de qualquer obra de arte, percebidas enquanto veículos de comunicação.
No caso de cinema, o diretor pode possuir intenções não concretizadas no resultado. Não há um significado único. Até hoje, Tropa de Elite (2007) é acusado de sustentar um discurso fascista, embora José Padilha e Wagner Moura jurem de pés juntos que o discurso se posiciona contra Capitão Nascimento e suas técnicas violentas. O que dizer então do público direitista que abraçou o justiceiro como um herói das causas brasileiras? A obra (e o criador) seria responsável pela interpretação feita a partir da mesma? Tais questionamentos nos levam a pensar o cinema enquanto elemento dinâmico: ele é composto por filmes, mas também por ideias, discursos e formas que mudam ao longo do tempo, tanto em feitura quanto em interpretação. Um travelling é questão de moral, dizia Godard. Uma linguagem em voga antigamente (os zooms dramáticos durante uma revelação bombástica, digamos) pareceria ridícula, mesmo cômica, nos dias de hoje.
Estes questionamentos se tornam particularmente importantes no caso da crítica de cinema. Os festivais É Tudo Verdade e In-Edit acabam de apresentar dezenas de documentários sobre personalidades amadas e temas sensíveis da atualidade: houve biografias sobre Dorival Caymmi, Porfírio do Amaral, Mateus Aleluia, enquanto o É Tudo Verdade trouxe denúncias potentes contra a ditadura militar, o genocídio indígena e os golpes de Estado financiados por potências europeias. Encontraram-se com frequência nos textos críticos, inclusive de profissionais experientes, frases do tipo: “O filme tem uma estrutura bastante acadêmica, mas fala de um tema importantíssimo”. A justificativa do júri para os prêmios do In-Edit tinha como principal argumentação a relevância artística do biografado. Nos círculos de conversa entre amigos críticos, às vezes alguém afirma: “Eu adorei o último Woody Allen, mas sou suspeito, né? Eu sempre adoro tudo o que ele faz!”, ou então “Não gostei de La La Land: Cantando Estações (2016), mas eu nunca gosto de musicais, então não tinha jeito mesmo”.
É esperado que o gosto pessoal influencie na apreciação de qualquer projeto. No entanto, ele não poderia ser usado como justificativa para a análise. A atitude se revela bastante problemática para um crítico de cinema. Um espectador “comum” poderia dizer estas mesmas frases sem riscos, visto que ele não precisa explicar suas impressões a ninguém. Para o crítico, no entanto, a argumentação constitui a base do ofício. Quando se atribui valor prévio a um filme, ou seja, quando se diz que um documentário é ótimo porque fala de Dorival Caymmi, o resultado é pré-aprovado antes mesmo de chegar à tela. Como Caymmi é bom, a biografia sobre ele também o seria. Mas qual a diferença entre este pensamento e o preconceito de Damares Alves, que não assistiu ao projeto que critica? Traduzindo em miúdos, o projeto valorizado previamente em função do tema já começa com duas estrelinhas de vantagem na nota.
Neste caso, o crítico nem precisaria entrar na sessão para escrever seu texto: se o documentário provém de um diretor apreciado, e aborda um tema apreciado, ele se torna um “filme urgente”, “indispensável”, “fundamental para os nossos tempos”. Entretanto, qual é a diferença entre a noção de que expor as pessoas a uma crítica contra o racismo faria delas menos racistas, e o raciocínio segundo o qual a imagem de Lynn da Quebrada transformaria todos os espectadores em indivíduos queer ao fim da sessão? Ambas formas de raciocínio ignoram a psicologia do cinema e as ferramentas cognitivas de relação com a arte. Já se esperava que um governo ignorante adotasse atitudes ignorantes (o que não equivale a aceitá-las), porém se surpreende quando uma classe intelectualizada adota uma atitude semelhante.
Por fim, um filme não equivale ao seu tema, nem à sua forma, nem ao seu autor. Ele se encontra na conjunção destes fatores com o discurso, com o período em que se encontra, com as condições de produção, finalização e exibição. A obra constitui uma criação dinâmica que não para de se reinterpretar, mesmo que as imagens gravadas na película (ou no formato digital, atualmente) permaneçam idênticas com o passar dos anos. (Ainda existe o fato de que uma sessão no cinema, com boa qualidade de som e imagem, terá outras condições de espectatorialidade em comparação com o mesmo título visto na tela do celular, mas esta seria outra conversa). A estratégia redutora de aplicar valor a um elemento apenas (o tema, o indivíduo biografado, a intenção do autor, etc.) constitui uma simplificação nociva ao processo de significação da arte. Cinema dá trabalho para fazer, e também dá trabalho para consumir quando se busca abraçar tudo o que ele tem a oferecer – sobretudo para quem possui, em sua profissão, o dever de fazê-lo.