Desde que ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1962, O Pagador de Promessas se tornou objeto de inúmeras discussões. Há quem o defenda como um dos principais filmes brasileiros daquela década marcada pela consolidação da corrente chamada Cinema Novo. Mas, também existem aqueles (e não são poucos) que apontam a produção dirigida por Anselmo Duarte como representante de um cinema menos relevante, pois não engajado, desalinhado das histórias caracterizadas por agentes da revolução. Um dos próceres cinemanovistas, Glauber Rocha define em seu manifesto Eztétyka da Fome que os personagens nesse contexto histórico precisavam de postura política, senão por consciência, mas por instinto de sobrevivência. Não poderiam ser alvos de compaixão, pois combustíveis da revolução. Além disso, persiste a discussão se O Pagador de Promessas pode ser lido como cinemanovista. Essa é uma das várias questões que ficarão para depois. Até porque o valor da obra independe de ela se filiar com mais ou menos propriedade às correntes de sua época. Ademais, ainda que os próprios cinemanovistas o tenham renegado à época, podemos reposiciona-lo historicamente. Porém, essa controvérsia fica realmente para outro momento, no qual ela poderá ser melhor esmiuçada e contemplada. Neste texto vamos pensa-lo a partir de questões que diferenciam os personagens cinemanovistas e os das chanchadas que precederam uma mudança.
Nas chanchadas, predominava o humor ingênuo e não eram raras as histórias que colocavam em relevo problemas cotidianos, tais como a falta de água, os desmandos dos poderosos, a demagogia eleitoreira, a corrupção política e os vícios da burocracia. Portanto, não tem fundamento dizer que esses filmes embalados por marchinhas carnavalescas eram completamente alienados da realidade. Eles tinham uma abordagem menos combativa, isso sim. Todavia, antes que a discussão fique ampla demais, vamos nos focar nos tipos de personagens que protagonizavam essas chanchadas. Sim, pois ainda que o desfecho de suas tramas tendesse à conformidade correspondente ao final feliz, por não desestabilizar as perspectivas socio-convencionais, nas chanchadas existia espaço de resistência para homens e mulheres marginalizados. Com frequência, os chanchadeiros são humildes, às vezes explorados, quando não despejados/alijados da ordem capitalista ou simplesmente empurrados às franjas do mundo produtivo. São reiteradamente pessoas oprimidas de diversos modos, mas que não existem cinematograficamente como agentes da revolução. Não lutam contra o sistema, mas sobrevivem apesar de seu funcionamento escuso. Há quem considere isso uma forma de resistir. É algo adiante repetido nos igualmente populares filmes da famosa trupe Os Trapalhões.
Cheguemos a O Pagador de Promessas. Dirigido por Anselmo Duarte, astro popular que fez fama como um dos principais galãs dos despojados filmes da chanchada carioca e também das refinadas produções paulistas do estúdio Ver Cruz. Apesar de ter dirigido o único filme brasileiro vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, Anselmo morreu amargurado pelas implicâncias que regularmente recaíram sobre ele. Seus detratores perguntavam ou insinuavam preconceituosamente: como pode um galã vencer um dos principais prêmios do cinema mundial? Anselmo foi vítima das armadilhas da dicotomia “arte vs indústria”. Homem talhado no popular, era visto com desdém por intelectuais. Mas, o presente artigo não deseja agora tomar parte dessa discussão (fica para um futuro próximo). Aliás, são tantas as perspectivas em jogo nesse assunto que é inevitável postergar por ora o aprofundamento delas. Fato é que entre comédias populares e filmes cinemanovistas houve uma alteração drástica no tipo de protagonista. Grosso modo, saíram os sobreviventes e chegaram os convocados à revolução. A mudança foi tão disruptiva que no começo os cinemanovistas viam as formas populares de expressão (religiosidade, carnaval, futebol, etc.) como alienantes e o povo era relegado à massa desinformada, o que teóricos chamam de “outro popular”. É no entremeio que está Zé do Burro, o personagem de Leonardo Villar no filme de Anselmo Duarte.
No começo de O Pagador de Promessas, Zé do Burro é mais semelhante aos chanchadeiros: sem consciência política, sobrevive apesar do entorno opressor. Totalmente orientado por sua fé (condição frequentemente tratada como alienante no Cinema Novo), ele não deseja se tornar um emblema político ao dividir as poucas terras com os camponeses mais pobres e tampouco defender posicionamentos ideológicos com isso. Homem simples e de pouca instrução formal, ele não aplica em seus atos um verniz conceitual, se restringindo ao que sua consciência assente. Zé do Burro é pego de surpresa com a pergunta “você é a favor da reforma agrária?”, respondendo positivamente à novidade que para ele é sinônimo de justiça e compaixão. Zé apenas confronta as autoridades (padre, polícia, imprensa) ao ser ofendido em suas crenças pessoais. Ele pratica o sincretismo que equivale a Iansã do candomblé e a Santa Bárbara do cristianismo, bem como seu direito de prometer sacrifício à santa em função do afeto sentido por um animal. Zé se torna combativo apenas quando o conjunto de suas crenças é brutalmente colocado em xeque, quando as autoridades lhe impõem a forma de vivenciar aquilo que ele cultua. É como se a consciência política atrelada à liberdade estivesse na essência dos valores desse homem desprovido de instrumentos para transformar aquilo que acha certo em conceitos e bravatas. Não é o padre que vai dizer como ele deve ser cristão, tampouco a polícia delimitará a legalidade de sua atuação, muito menos o sensacionalismo do jornalismo determinará as maneiras de ele lidar com os efeitos de suas atitudes. Assim, podemos considerar Zé do Burro um signo de transição.
Zé do Burro é inicialmente similar às típicas figuras da chanchada que sobrevivem apesar do sistema. Um homem simples que não tem instrumentos para ponderar e ter clareza. Porém, mesmo sem consciência de classe (predicado vital no Cinema Novo), ele revida contra injustiças. Nisso, se aproxima do paradigma glauberiano do “combustível da revolução”, pois seu drama incendeia a revolta. Mesmo que em sua via crucis esteja previsto ser alvo de compaixão, algo vetado na Eztétyka da Fome. Embora, contradizendo Glauber Rocha, a revolução em O Pagador de Promessas (a entrada do crucificado carregado pelos capoeiristas) surge da compaixão por um homem definido pelo comprometimento ético. Há quem prefira situar Zé do Burro distante dos ideais revolucionários por seu individualismo. Afinal de contas, ele chega às últimas consequências para cumprir a promessa feita à santa, no meio do caminho fechando os olhos às demandas da esposa e sequer ponderando rapidamente como suas escolhas afetam as outras pessoas ao redor. Desse modo, Zé do Burro pode ser compreendido como um ponto de inflexão, pois tem características dos chanchadeiros singelos que superam as adversidades sem cortar suas raízes, mas assume gradativamente a atitude transformadora (inspiradora dos demais) própria das figuras cinemanovistas – ainda que sua noção de justiça social seja empírica. Nessa obra-prima que completou recentemente 60 anos, o protagonista liga dois momentos distintos do nosso cinema, ou seja, é um personagem historicamente essencial como elo transitório. Um persistente, apesar da ignorância e da alienação. Um corpo que inspira o entorno ao levante e à revolta popular.
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