Este artigo não é para defender ou atacar o tão badalado Snyder’s cut, a versão de Zack Snyder para o malfadado Liga da Justiça (2017), mas sim para compreendê-lo. Ou melhor, para entender o impacto que sua agora existência oficial tem para o cinema como um todo.
Casos em que diretores perderam o controle de seus filmes, finalizados à revelia de sua visão autoral, existem desde sempre. Cinema também é negócio e, se as letras miúdas não forem lidas com muita atenção, problemas podem acontecer – muitas vezes mesmo se forem lidas. Há poucos dias, o diretor Francis Lee foi às redes sociais bradar contra o Amazon Prime Video, que teria censurado cenas de sexo gay em seu filme, O Reino de Deus (2017). Descobriu que a empresa nada tinha a ver com a questão e que o corte fora feito pela própria distribuidora, ao enviar o filme para o streaming. Esclarecida a questão, o Prime Video retirou a versão editada de seu catálogo.
A pergunta que fica é: se não existissem as redes sociais, algo teria acontecido? Provavelmente, não. Guardadas as devidas proporções em relação à motivação e, obviamente, ao alcance, trata-se exatamente do que aconteceu com o Snyder’s cut. Milhares de pessoas pediram ao longo de dois anos, bancaram cartazes e até mesmo uma faixa em avião durante a San Diego Comic-Con. A Warner enfim atendeu. Por que?
Engana-se quem acha que tenha sido para atender aos fãs, trata-se de uma mera questão mercadológica que muito tem a ver com a joia dos tempos modernos na indústria cinematográfica: o streaming. Subitamente, estúdios descobriram que catálogo vale muito dinheiro, ainda mais se for algo popular. Na ânsia em seguir os passos da Netflix, novas plataformas pipocam aqui e ali buscando garantir o seu quinhão e, para tanto, precisam de conteúdo. Não foi por acaso que as renovações de Friends (1994 – 2004) com a Netflix ou a produção da série derivada de O Senhor dos Anéis no Amazon Prime Video custaram tanto: são conteúdos que atraem o espectador por si só, independente do que há ao redor. Também não por acaso, por anos as assinaturas aos canais HBO disparavam sempre que uma nova temporada de Game of Thrones (2011 – 2019) estava em exibição. Hype é tudo, diria um executivo.
O Snyder’s cut nada mais é que uma oportunidade de negócio, um meio de se obter hype sem ter que se preocupar em produzir algo realmente novo. Quem se importa se será melhor ou pior que a versão exibida nos cinemas? O fã, aquele que bradou por dois anos, quer vê-lo de qualquer jeito, é público ganho. Basta ser alimentado e, de quebra, o nascente HBO Max ganha um conteúdo exclusivo. Touché!, brindou outro executivo.
Tal iniciativa não é novidade em Hollywood, basta conferir a enxurrada de sequências, reboots, remakes e spin-offs produzidos ano sim e no outro também, muitos deles com o objetivo de serem meras cópias do original. O lucro como objetivo máximo tem feito com que diretores renomados se afastem de blockbusters e filmes-evento – Christopher Nolan é a exceção – e, também não por acaso, o lance é apostar em jovens diretores que sejam suscetíveis a serem moldados em troca da grande chance de suas carreiras. Uns aproveitam a oportunidade para singrar vida própria, vide Guillermo del Toro e Alfonso Cuarón, a imensa maioria ou fracassa ou aceita a indústria como ela é. Abrem mão da autoralidade em nome do emprego assegurado. O executivo sorri.
No mundo atual, o barulho feito na internet faz diferença. Basta lembrar da campanha pelo filme-solo de Deadpool (2016), após o teste com Ryan Reynolds ter “vazado”, ou de tantas séries salvas do cancelamento após campanhas e abaixo-assinados feitos pelos fãs. Nem sempre é garantia de sucesso, é verdade, mas é um caminho ouvido, como mais uma vez comprova o Snyder’s cut. Por que então não impulsionar aquela hashtag que está bombando tanto, ainda mais agora que sei que posso conseguir o que quero? É exatamente o que os executivos desejam, fica mais fácil reconhecer o caminho a ser seguido.
O Snyder’s cut é a vitória de uma fórmula, que visa faturar alto com mais do mesmo. Não importa se a nova versão será melhor ou pior que a já vista, este é o menor dos interesses. O que está em jogo é a guerra do streaming e a ânsia em ter artilharia pesada para as batalhas que virão. Mesmo que isto signifique jogar por terra uma reputação construída por décadas, como acontece com a HBO, ou ainda podar a criatividade dos realizadores em nome do que apontam os relatórios gerados por algoritmos. O risco deve ser minimizado ao máximo, custe o que custar.
Como diria Gordon Gekko, personagem de Michael Douglas em Wall Street: Poder e Cobiça (1987), “a mercadoria mais valiosa que conheço é a informação”. A internet a entrega, de graça, e o comitê executivo agradece. Não por acaso, Scorsese aponta que isto não é cinema.