Eu me lembro da primeira vez que assisti a O Cavalo de Turim (2011), de Béla Tarr. Minha impressão foi bastante negativa: os planos esticadíssimos, a ausência de conflitos e a repetição de cenas soaram como um exercício de vaidade, exemplo de um diretor que exagera nos maneirismos por poder fazê-lo. Tarr já possuía uma legião de cinéfilos, teóricos e outros defensores cativos, dispostos a adorar qualquer obra que produzisse. Trata-se de um “autor”, no sentido tradicional do termo, ou seja, um sujeito cujo talento foi detectado e pressuposto à repetição nas próximas obras – visto que o talento, enquanto valor atemporal, não se esgota nem envelhece. Observando em retrospecto, a impressão se encaixava no período em que eu estudava mais ativamente a política dos autores, aplicada de modo radical pela Cahiers du Cinéma. Em entrevistas, críticos da revista francesa durante os anos 2007-2012 afirmavam que três ou quatro críticos compareciam à projeção de qualquer filme cujo autor era adorado pela redação. Depois, escreveria a crítica aquele que tivesse gostado mais do resultado. A ideia me parecia absurda, mesmo ofensiva: uma obrigação prévia de amar. É provável que estas reflexões tenham influenciado a minha percepção sobre a obra de Béla Tarr.
Embora o questionamento sobre a origem do gosto pessoal seja importantíssimo ao crítico – temos que nos interrogar sempre sobre o motivo pelo qual gostamos daquilo que gostamos -, ela importa pouco ao leitor. O fato é que existe um único texto de minha autoria a respeito deste filme, no qual interpreto o estetismo do cineasta húngaro como fruto um cinema burguês, alienado – uma espécie de embelezamento da miséria dos personagens desprovidos de voz. Lembro ter sido muito xingado por leitores na época. Ossos do ofício. Defendi minha posição, respondi a algumas provocações, ignorei outras. Os anos se passaram e chegou a oportunidade de assistir ao filme novamente. Estava acompanhado de um colega que jamais tinha ouvido falar em Béla Tarr – não estando, portanto, influenciado pela noção da autoria -, e que tinha ficado bastante impressionado com o trailer. (Às vezes trailers conseguem sublinhar a beleza de uma obra de maneira a torná-la inesquecível. Mas este é tema para outro artigo). Assistimos a O Cavalo de Turim. Amargurado, precisei admitir a mim mesmo que gostei do filme. Mais do que isso, fiquei embasbacado com o resultado. Nada daquilo me parecia burguês, ou vazio – de repente, vi uma impecável adequação da forma ao conteúdo, com a extensão dos planos refletindo a dificuldade das pessoas, cuja vida também era repetitiva e dura. O aspecto político saltava aos olhos: ele se traduzia na própria forma.
Seria relevante escrever um segundo texto sobre estas impressões. No entanto, dentro da crítica profissional, as oportunidades de rever um filme para escrever o texto, ou então de produzir duas críticas sobre a mesma obra, são raras. Há outros imperativos práticos: novos filmes chegando, novas estreias no cinema, em streaming, novos curtas-metragens, festivais, entrevistas, vídeos, podcasts. Não se assiste apenas àquilo de que se gosta – pelo menos não dentro de uma dedicação diária e majoritária à crítica. Então as possibilidades de me debruçar novamente sobre O Cavalo de Turim em outro artigo são sabotadas pela necessidade de assistir a Milagre na Cela 7 (2019) e outras catástrofes do gênero. Quem sabe eu venha a mudar de ideia sobre o melodrama turco no futuro. É possível, ainda que improvável: este nível de ruindade dificilmente permite uma mudança de percepção tão radical quanto no caso da produção húngara. O próprio fato de este caso ter sido citado nominalmente reflete sua raridade: ainda mais comum do que mudar de ideia é manter a impressão inicial, ou apenas notar a posteriori uma cena específica, um aspecto notável que havia passado despercebido antes. Nada que mude sensivelmente o resultado de uma crítica. Em termos de documentação, o autor destas linhas detestou O Cavalo de Turim. Isso não é mais verdade, mas que provas tenho eu desta afirmação, se não escrevi mais nada a respeito? Há muitos casos de críticos que saem de uma sessão destilando ódio pelo filme, mas na hora de publicar seus textos, são cândidos e moderados. Nota 3/5. O crítico vale pelo que produz, enfim.
Exatamente vinte anos atrás, me lembro do choque provocado em mim pelo drama Malena (2000). Guardo forte lembrança da emoção experimentada durante este filme, ainda em fase de início de cinefilia, com poucos livros na bagagem, poucos filmes na memória, pouca experiência de vida. Isso não constitui um demérito: uma produção considerada boa duas décadas atrás pode vir a produzir impacto semelhante depois. No entanto, este não foi o caso: após sugerir Malena a diversos amigos e produzir um texto amador a respeito, assisti de novo ao filme. Desta vez, o resultado foi de profundo incômodo: o drama de Giuseppe Tornatore me pareceu machista, explorando o corpo de Monica Bellucci enquanto fornecia uma visão contestável da guerra. Não conseguia mais entender o encantamento de antes (seria uma identificação com a narrativa adolescente, a novidade que o coming of age representava para mim na época?), enquanto a plasticidade encantadora tinha se transformado numa filmagem kitsch, fetichista. Novamente, o único texto disponível sobre a obra de 2000 com minha assinatura, ainda que num blog amador, trata o drama como uma obra-prima.
Muita coisa mudou, desde então. Mudei eu, enquanto crítico e enquanto pessoa, mudou a forma de fazer cinema, de utilizar trilha sonora. Mudaram os questionamentos sociais, e a responsabilidade do olhar do homem sobre um corpo feminino, assim como dos europeus sobre as guerras mundiais. Felizmente, instaurou-se um olhar crítico que permite observar as mesmas imagens de antes de modo diferente. Olhares conservadores tendem a rechaçar qualquer transformação crítica: “antes tudo era mais divertido”, “agora eu não posso falar nada”, “agora todo mundo se ofende com tudo”, dizem. No entanto, este caminho é tão inevitável quanto saudável: as sociedades mudam, e as novas gerações trarão um olhar diferente às obras de antes. Filmes de antigamente considerados como obras-primas podem deixar de sê-lo devido a novos questionamentos, assim como projetos que tenham passado despercebidos, ou tenham disso depreciados em sua época, podem ser redescobertos. Vale lembrar que as produções da Nouvelle Vague foram rejeitadas pela maioria da crítica francesa durante os anos 1960, e que Alfred Hitchcock demorou muito ter seu talento reconhecido pela crítica. A cultura pós-moderna do cancelamento felizmente não operava de maneira tão estrita ao longo da cultura cinematográfica.
Outras mudanças operaram: Azul É a Cor Mais Quente (2013) me pareceu lindíssimo à primeira vista. No entanto, devido a apontamentos muito pertinentes de colegas – especialmente mulheres -, passei a ver o filme com outros olhos. Por mais prazeroso que seja ter uma opinião forte e defendê-la com unhas e dentes, especialmente em tempos de polarização política e de comunicação “anônima” via redes sociais, é fundamental se manter aberto a releituras. Discordar de si mesmo não constitui uma confissão de erro, e sim uma prova da capacidade de diálogo com opiniões divergentes. Recentemente, um leitor me criticou por ter dado nota altíssima a uma série de televisão, apesar de ter dado nota apenas mediana a um filme que lhe interessava. Nem me lembrava mais contexto em que havia dado a nota tão entusiasmada à série, que de fato não deixou uma marca profunda na memória. A nota, hoje, provavelmente seria outra. Já a comparação com o filme me parece absurda: ambos foram avaliados por critérios diferentes, dentro de formatos distintos, não podendo assim ser equiparados numa avaliação. Do que você gosta mais, de uma janela ou de uma bicicleta? Ora, segundo quais critérios? Para quê? Elaborada desta maneira, a pergunta não faz sentido.
Esta confusão, ou ainda esta permeabilidade e mutabilidade de avaliações pode se tornar incômoda num cenário de incertezas. No entanto, ela representa a beleza do cinema: apesar de ter produzidos obras perenes, o sentido delas se completa apenas nos olhos de quem vê – e os olhares, como se sabe, mudam de acordo com o tempo, o país, a idade, o gênero, a bagagem cultural. Não há um conceito único de qualidade: o que pode ser muito bom para uma pessoa será péssimo para outra, algo que ocorre inclusive nos círculos de críticos de cinema. Por consequência, tal mudança pode ocorrer na percepção de um mesmo crítico, felizmente. Seria muito triste se uma pessoa envelhecesse, conhecesse novas pessoas, atravessasse situações marcantes, lesse livros, visse filmes, conhecesse amores e sofresse perdas, e ainda enxergasse o mundo da mesma maneira. No entanto, para quem eventualmente cruzar com estes textos, descobrirá apenas um elogio entusiasmado a Malena e uma crítica colérica de O Cavalo de Turim. Não apago estes artigos, ambos mal fundamentados, porque representam parte de um processo que precisei vivenciar para chegar onde estou. Se não constituem motivo de orgulho, tampouco representam motivo de vergonha.
Devo discordar de outros textos meus no futuro. Ainda que incompatíveis com minha percepção atual, estas e outras críticas marcam a leitura dentro de uma época precisa, e conservam seu valor enquanto sintomas de um tempo que passou. No futuro, quem sabe, algum pesquisador do cinema, de sociologia ou de apenas um leitor curioso encontrará estes e outros tantos textos, de centenas de críticos, jornalistas e cinéfilos, e descobrirá como tal filme foi percebido em sua época. Afinal, a crítica diz menos sobre um filme do que sobre o autor do texto, ou ainda sobre a categoria social à qual o crítico pertence. Este é outro valor, etéreo e pouco lembrado, da produção textual apressada e voluminosa dos tempos de Internet: ela representa, apesar de seu autor, um recorte preciso no tempo. Tendemos a pensar que somos especiais, únicos – especialmente entre os críticos, a quem se supõe um olhar especializado. No entanto, formamos juntos uma fortuna crítica. Em 2020, considero um avanço rever Grease: Nos Tempos da Brilhantina (1978) pelo prisma dos cultural and gender studies, rever os filmes de Jean-Luc Godard e François Truffaut pela desconstrução do cinema autoral, assistir a filmes B, trash, nojentos e sangrentos retirando a ótica elitista da produção “de bom gosto”. Estes valores podem desaparecer daqui a décadas, cedendo espaço a outros. Entretanto, estabelece-se certa historiografia, uma análise comparada e riquíssima, quando duas décadas, duas gerações, duas percepções sobre a arte permitem olhar uma para a outra, em posições distintas, para descobrir mais sobre a outra e, por consequência, sobre si mesmas.
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