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Opinião :: Sob os signos da quarentena

Publicado por
Francisco Russo

“Haverá comédias pandêmicas e algumas podem ser desagradáveis e grosseiras, mas outras serão perspicazes, verdadeiras e divertidas. Mas isto não será para mim. Tenho achado tudo horrível demais.”

Em recente e abrangente entrevista concedida ao The Financial Times, Woody Allen revelou como tem reagido às mudanças decorrentes deste mundo pós-pandemia. Sentindo-se inútil devido à quebra de uma rotina de trabalho que funcionou por décadas, ele se vê em desacordo com esta realidade ao ponto de descartá-la em seus futuros trabalhos – se é que um dia sairão do papel, ressalta, alertando uma possível aposentadoria precoce. Assim como Woody, muitos são aqueles que se sentem diante de uma distopia, tão popular não apenas no audiovisual mas também na literatura, tamanhas foram as mudanças em tão pouco tempo. Com o pé na porta para escancará-la por completo, o “novo normal” chegou sem aviso prévio mas já se tornou soberano. E, com ele, todo um planeta precisa se adaptar.

Sala de cinema em Praga, na República Tcheca: espectadores com máscara e distanciamento social

 

Com o audiovisual, é claro, não seria diferente. Sob os olhos atuais, é até curioso ver filmes lançados há poucos meses onde aglomerações eram permitidas e o convívio não dependia de máscaras protetoras e álcool em gel. São produções pré-pandemia, já datadas, assim como serão os filmes e séries cujas gravações foram concluídas antes do lockdown geral. Em um mundo que já não existe mais, eles se assemelham à época do cinema mudo ou ainda sem cores, antiquados por natureza, com a óbvia diferença que, nos casos citados, tratava-se de uma mera limitação técnica da época.

Com o mundo ultrapassando os 100 dias de pandemia e muitos países ainda em quarentena, ou quase, é possível notar no audiovisual algumas iniciativas que começam a refletir esta nova realidade que nos rodeia. Algumas por necessidade, na intenção de produzir conteúdo novo para ocupar a grade televisiva, da forma que for possível, outras como tentativa de oferecer algum conforto, ou nostalgia, a quem se angustia com os efeitos da quarentena e ainda gerar recursos extras para socorrer quem precisa. Assim nasceram os episódios especiais de Parks and Recreation (2009 – 2015) e 30 Rock (2006 – 2013), ainda inédito, ou mesmo o Saturday Night Live at Home, sempre dialogando com a necessidade do distanciamento social e a popularização da videoconferência como meio de comunicação. Mais que forma, ambos se tornaram elementos contemporâneos de narrativa, tão essenciais neste pós-pandemia.

Amy Poehler e Nick Offerman no episódio especial de “Parks and Recreation”

 

Na Espanha, a HBO local foi um passo além e, ainda durante o isolamento, encomendou a cinco cineastas que produzissem curtas-metragens de acordo com os signos da quarentena. Reunidos na antologia En Casa, o resultado traz pistas sobre como será este audiovisual que se avizinha. Ora refletindo fatos e momentos, quase em tom documental, por vezes assumindo as novas características para fazer rir e, nas mais ousadas, trazendo o fantástico para conversar com um mundo que soa distópico, mas não é. Assim também fez Grace Passô em seu novo curta, República, no qual imprime tons de brasilidade tão contundentes quanto necessários.

Por mais que tais casos apontem caminhos, ainda é cedo para dizer como será o audiovisual neste pós-pandemia. A arte, em seus momentos mais difíceis, encontra caminhos próprios em busca da sobrevivência e, muitas vezes, as mesmas dificuldades que limitam são também a mola propulsora para a criatividade. Como disse Woody Allen, surgirão comédias para nos fazer rir deste novo cotidiano e também dramas para nos fazer refletir e chorar, seja a partir da necessária análise acerca do momento atual ou devido a tantos que se foram e ainda irão, vitimados pelo vírus e governantes incompetentes. Serão, enfim, filhos do nosso tempo.

Cena de um dos episódios de “11 de Setembro”

 

Em 2002, o filme-coletivo 11 de Setembro apresentou 11 curtas-metragens em que diretores dos mais variados países apresentavam suas perspectivas acerca dos atentados ocorridos apenas um ano antes. Walter Salles foi convidado a integrar o projeto, mas o recusou. Em entrevista, disse o motivo: era necessário um distanciamento maior para que se pudesse avaliar o alcance do ocorrido, ainda mais diante de algo tão relevante ao ponto de estabelecer um antes e um depois. Foram apenas 100 dias desde o início da pandemia, não se pode exigir do audiovisual (e da humanidade) respostas a todas as perguntas, ainda mais em meio ao turbilhão. Mas, pelo pouco que já foi produzido e conhecendo a inquietação humana, trata-se apenas de uma questão de tempo, sabe-se lá quanto. O melhor desta nova realidade ainda está por vir, mesmo que esta não seja tão confortável quanto a anterior. O audiovisual, como sempre, reflete seu tempo. …E o Vento Levou (1939) que o diga.

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Jornalista e crítico de cinema. Fundador e editor-chefe do AdoroCinema por 19 anos, integrante da Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCRJ (Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro), autor de textos nos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros", "Documentário Brasileiro - 100 Filmes Essenciais", "Animação Brasileira - 100 Filmes Essenciais" e "Curta Brasileiro - 100 Filmes Essenciais". Situado em Lisboa, é editor em Portugal do Papo de Cinema.

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