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Opinião :: Tempos de Streaming – Ansiedade pautando o consumo de filmes e séries

Publicado por
Marcelo Müller

Você, caro leitor, que viveu intensamente os tempos áureos das locadoras, deve sentir um bocado a diferença em relação à contemporaneidade ditada pela celeridade dos conteúdos disponibilizados digitalmente. Se antes havia certo protocolo – arrisco-me a dizer, uma liturgia – nessa “procissão” até o local que nos possibilitava contato com cinematografias diversas, agora até mesmo o processo de seleção ficou menos saboroso, potencialmente mais angustiante. Nas locadoras, era um deleite perder um par de horas investigando prateleiras, conversando com atendentes e clientes tão ávidos quanto nós por saber se aquele cineasta badalado, sobre o qual líamos nas revistas especializadas, era tão bom assim. Hoje, gastamos um tempo valioso zapeando no vasto catálogo dos streaming, a esmo, nesse meio tempo construindo pouco, senão uma indecisão do que priorizar entre tantas opções. Percebem a diferença? Todavia, este artigo não é exatamente sobre tais mudanças, mas acerca da ansiedade para consumir.

Foto: Ted Thai/The LIFE Picture Collection/Getty Images

Quando a Netflix entrou no mercado, modificando determinantemente a forma como acessamos filmes e séries cotidianamente, quebrando com autoridade a ideia, inclusive, de que precisamos ter hora e dia marcados para conferir esse ou aquele programa desejado, muitas coisas foram colocadas em xeque e o jogo se alterou drasticamente. Aliás, ele continua sendo transmutado na medida em que as concorrentes se fortalecem e lançam mão de estratagemas para vencer a nova briga por cliques e views. Basta conferir os polpudos números de arrecadação do streaming mundo afora, isso sem contar o desenho de novas forças titânicas no âmbito da produção, para compreender, ainda que timidamente, porque as grandes marcas estão desesperadas para garantir suas gordas fatias. Antes das digressões nos levarem por caminhos que merecem ser percorridos individualmente em outras circunstâncias, gostaria de chamar a atenção para um efeito colateral pouco debatido, concernente ao consumo audiovisual na era da publicidade agressiva e da oferta incessante. Como ter tempo para assistir a tudo oferecido?

 

SOCIEDADE DO CONSUMO
Um dos efeitos colaterais mais elementares de uma sociedade industrializada, sobremaneira baseada em modelos econômicos ancorados no frequente ato de consumir, é a noção incentivada da necessidade de ser intermitentemente produtivo e ativo, bem como a da precisão de aproveitar o máximo possível as ofertas, principalmente as pelas quais pagamos previamente. Então, para começo de conversa, uma das noções que contribuem para essa sombra de ansiedade instalada pela atualidade recheada de streamings robustos e diariamente inflados com mais conteúdo é a que, enquanto clientes, devemos gastar quantas horas forem possíveis para sentirmo-nos aproveitando satisfatoriamente o investimento do nosso suado dinheiro. O problema, na maioria dos casos, é que mesmo os empenhados não se sentirão plenamente satisfeitos, pois há forças conhecidas que se encarregam de distanciar o objetivo, de fazer com que ele se torne uma verdadeira utopia. É uma premissa da publicidade: criar no consumidor a impressão de que ele precisa fazer/ter algo. Com os streamings não é diferente, pois a roda gira bem assim.

Uma vez que o filão dos streamings se disseminou, as empresas começaram a travar uma verdadeira batalha para chamar a atenção do consumidor. Para elas é importante ter o famigerado “diferencial competitivo”, e este nada mais é do que a vastidão do catálogo. Vejam bem, não estou falando de qualidade, mas sim de quantidade. Pois, se alguns realmente tiram tempo para avaliar os produtos oferecidos antes de confirmar suas assinaturas e informarem seus cartões de crédito para cobrança mensal, arrisco a dizer que a maioria está interessada apenas no quão vasto é esse terreno de opções. E isso tem a ver exatamente com a noção de que é “preciso fazer valer meu dinheiro”, bastante atrelada à vastidão de alternativas, não à diversidade e à consistência das mesmas. Já virou brincadeira o fato de que boa parte dos filmes originais Netflix são ruins – com enormes exceções, claro –, e por quê? Porque ela sabe ser vital ter tantos títulos quantos forem possíveis, justamente a fim de alimentar a realidade de que nunca vamos dar conta.

 

A ANSIEDADE PARA MARATONAR
Caindo como patinhos na lógica mercadológica dos streamings, corremos ávidos para fazer as maratonas e, sem mais aquela, divulgamos em nossas redes os feitos orgulhosamente alcançados. Isso desperta em alguns de nossos contatos o desejo de fazer o mesmo, seja por afinidade com o elemento indicador ou simplesmente “para não ficar para trás”. E essa dinâmica vai, assim, ganhando novos vetores e se alastrando como um vírus. Diferentemente dos tempos em que, por exemplo, as séries eram exibidas semanalmente, com espaço entre os episódios para suas engrenagens decantarem e se tornar alvo de análises substanciadas pela espera, a Netflix chegou com tudo e, enquanto “diferencial de mercado”, estabeleceu quase como regra a maratona. Por que assistir compassadamente, se posso me alimentar compulsivamente de algo que está me cativando, esgotando aquela temporada, às vezes, num mesmo dia? E assim, respondendo com “basicamente porque posso”, vamos pulando de maratona em maratona.

Essa voracidade é nutrida pelo marketing, que criou as bases para tornar “padrão” o ato de maratonar audiovisualmente. Esta ação seria como um atestado de que somos verdadeiros amantes das séries – e, por algum motivo, tem gente que deseja provar-se mais amante das séries do que os outros, incorrendo numa competitividade estranha, pois sem frutos. Somos instados a nos esvair em narrativas diante das quais estamos mais preocupados em “terminar de uma vez”, seja por estar bom (ou ruim). A noção de que diariamente chegarão produtos novos ao catálogo, de que amigos e sites especializados conferirão o programa sobre o qual “todos falarão”, cria, em parte dos consumidores, a vontade de “se atualizar”. É mais ou menos o que sempre aconteceu com o cinema municiado de verba suficiente para instaurar-se num espaço (criado pela publicidade) de imprescindibilidade. Se você viu o novo filme da Marvel, está devidamente “em dia”. A lógica é igual, mas engordada pelo consumo caseiro em massa.

 

CONSUMO EM TEMPOS DE PANDEMIA
Enquanto este artigo foi escrito, boa parte do mundo está em quarentena por causa do novo coronavírus, o Covid-19 (vade retro, microscópico). Portanto, especialmente àqueles que não estão ainda mais atolados em trabalho pelo regime de home office, há espaço suficiente para colocar as séries em dia, curtir aquele filme sobre o qual temos interesse há algum tempo. E nós, sites especializados, estamos tendo de nos readequar a uma realidade sem lançamentos nas salas de cinema, com produções suspensas e toda a cadeia em banho-maria. E o que fazemos como opção, inclusive para ajudar as pessoas a curtirem com menos dificuldades o confinamento? Ofertamos diariamente dicas sobre o que assistir nos canais de streaming, de certa forma contribuindo para essa ansiedade que deriva de uma enormidade de ofertas. Menos mal, nesse sentido, que estamos focados em lançar luz sobre “pérolas escondidas” pelos algoritmos nebulosos das empresas, assim como ressaltando a enormidade de títulos que cineastas e produtores estão solidariamente disponibilizando à população enquanto a pandemia ainda não for erradicada.

Fica aqui a proposta para que, inclusive, usemos esse tempo livre não apenas a fim de consumir o que nos é vendido como imprescindível, mas para refletir acerca da urgência de retomar as rédeas de nossa curadoria pessoal. Por que desejo assistir a determinado filme? É, mesmo, necessário passar a tarde inteira embalado por uma temporada, basicamente somente para ter a possibilidade de fazer o mesmo com outro título amanhã? Até que ponto vai minha autonomia, como consumidor e espectador, na hora dessa escolha, uma ação que faz parte de um jogo maior, ditado por regras das quais somos muitas vezes alijados? Talvez seja realmente o momento de não ocuparmos um espaço apenas reativo nessa cadeia, quando somos levados por métricas ou pela ideia de que é maneiro “cair matando”, sem dó, piedade ou respiros para analisar o conteúdo. Isso sem contar que a vida não se restringe ao audiovisual.

Talvez seja a hora de, paulatinamente, quebrarmos a lógica da ansiedade, pois ela atende tão e somente aos interesses das empresas, produtoras e exibidoras, que nos querem justamente consumindo desenfreadamente e contaminando nosso meio com uma agonia por extinguir a temporada de nossa série favorita ou exterminar uma saga de filmes sem ao menos conferir terreno para respirar. A pausa é, muitas vezes, imprescindível, inclusive para termos clareza quanto ao papel que desempenhamos numa estrutura enorme. Nunca estaremos em dia, ao menos se mirarmos no horizonte a quantidade absurda de conteúdo que nos é colocada à disposição. Sempre nos escaparão séries incríveis e filmes memoráveis. Faz parte. O que não dá é para sofrer ou se conformar com sermos notas dez como consumidores, cinco no quesito critérios estabelecidos e dois quanto à genuinidade dos nossos renovados anseios por novidades. Não há nada de errado com maratonas ou tardes inteiras dedicadas a uma franquia, por exemplo. Aliás, tudo isso é uma delícia. O que esse artigo propõe é uma reflexão sobre a nossa autonomia.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.