20200702 clickbait papo de cinema

Uma discussão frequentemente instaurada no seio do cinema, sobretudo no brasileiro, é a dificuldade de se comunicar com o público. A despeito de ser falsa, ou reducionista, é recorrente a dicotomia entre arte e comércio pautando a observação acerca da nossa produção. O vanguardista Cinema Novo se opunha às Chanchadas que buscavam diálogo amplo em virtude de ambições financeiras; as Pornochanchadas seriam ruins porque pensavam apenas na bufunfa; as apelidadas de globochanchadas reproduzem no cinema apenas aquilo que a massa consome de modo supostamente gratuito na televisão (lembrando que não existe “almoço de graça”, isso sem contar as opções realmente pagas). Claro que todas essas sentenças são falhas, frutos mais de preconceitos do que necessariamente de uma realidade. Mas, verdade é que há um dilema diante do qual todo produtor de conteúdo, seja este de qual natureza for, vai se deparar. E ele se trata justamente da consciente utilização de mecanismos para simplesmente atrair consumidores, sem atenção a outros tantos aspectos da criação. Quanto ao trabalho que fazemos diariamente no Papo de Cinema isso também se aplica. Como atrair leitores suficientes para ser tido como relevante diante do mercado que provê o sustento financeiro das nossas iniciativas? E, mais: como fazê-lo sem trair-se cotidianamente?

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Nossa contemporaneidade não é dócil com aqueles que almejam profundidade, qualidade em detrimento da quantidade. A voracidade do consumidor é alimentada por diversas máquinas incessantes de lançamentos. Frente à quantidade numerosa de filmes e séries chegando diariamente a nossas casas via streaming, bem como às salas de cinema (saudade), aumenta o volume de produção necessária aos veículos ocupados profissionalmente disso. Nós, críticos, redatores e afins, precisamos nos adaptar intermitentemente aos vários ditames dessa realidade célere. Além de gradativamente concentrarmos funções antes pulverizadas em diversos profissionais – há uma cobrança para especializações e atuações multimídia –, precisamos nos adequar a um ritmo de produção crescentemente frenético. A gente acostuma, é verdade. Eu, por exemplo, instado a escrever críticas rapidamente nas coberturas de festivais, hoje tenho por prática exercer a principal das minhas funções tão logo acabe de assistir aos filmes. Eu gosto. Parafraseando o pessoal do humorístico Choque de Cultura: olhem os dinossauros, não se adaptaram e acabaram extintos. Brincadeiras à parte, o panorama tende a piorar com a naturalização das precarizações.

Diante desse mercado singular, ao qual mais valem os números de curtidores do que necessariamente a qualidade da interlocução dos consumidores com o produto que lhes é oferecido, é preciso também refletir continuamente sobre os limites nessa natural busca por audiência. Cada um sabe onde o calo (principalmente o financeiro) aperta. Todavia, será mesmo que vale tudo nesse jogo retroalimentado e voraz? A necessidade de “pagar as contas” é realmente um escudo irrefutável e, assim, capaz de conferir ao capitalismo (mais) esse lugar de mediação? É possível dormir tranquilo com a própria consciência ao medir as palavras diante de um patrocínio, de “aliviar” para uma produção com a qual seu veículo mantém relacionamentos comerciais? Claro que é possível. Basta circular por esse meio para se deparar com gente que, sem a mínima vergonha, fala na intimidade não ter gostado de determinada coisa e, ao manifestar-se publicamente, coloca-se entre elogiadores efusivos. Óbvio que tem caroço no angu. Contudo, noves fora a falta de ética, algo que merece um artigo apenas seu devido à complexidade, existe também uma série de técnicas para pura e simplesmente fisgar a audiência. O clickbait é uma dos mais recorrentes delas.

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O clickbait é uma tática sem vergonha para gerar tráfego online. Por meio de chamadas enganosas e sensacionalistas, o produtor de conteúdo garante seus tão desejados pageviews, pouco se importando com o fato de, para isso, ter engando o consumidor. Tenho certeza que você já se deparou com uma manchete do tipo: ”Bomba! Veja como fulano de tal foi flagrado nas ruas de alguma cidade”. Aí abre a matéria e aparece uma celebridade de bermuda. Apenas isso. E esse é um exemplo “ok”, no qual o redator apenas jogou com a retórica do verbo flagrar. Há casos bem mais acintosos. Basta dar uma procurada por aí para flagrar uns tantos exemplos disso. Profissionais de social media igualmente apelam com constância. Você lê com uma chamada retumbante, chamativa, clica para acessar a matéria e vai ver que ela não tem nada de espetacular. É muito diferente da fina arte de criar uma manchete instigante que inspire à leitura. Estamos falando aqui de gente que nem de longe nega o jogo de popularidade ao qual a crítica e/ou a reportagem de cinema estão cada vez mais reduzidos. E vários novos integrantes do tabuleiro são seduzidos por promessas de celebridade, vide críticos que colocam títulos deste tipo em seus textos: “Sim, esse é um filme que vai explodir sua cabeça” ou “Tal filme vai fazer você refletir sobre a vida e o universo”. Isso sem contar hipérboles da laia “um dos melhores da década” ou “genialidade em forma de cinema”.

Outro ponto importante nessa jogada é o conteúdo propriamente dito. Especialmente em momentos de exceção, como o nosso vivido em plena pandemia relativizada por irresponsáveis governantes, com uma redução drástica de investimento do mercado, é realmente preciso encontrar meios de evitar a debandada de leitores/ouvintes/espectadores. E, mais uma vez, cada gerador de conteúdo vai entender a partir de quais lógicas se reconfigura. Seria fácil encher o usuário de listas evidentemente populares, como um Top 10 Personagens Cancerianos, pegando carona no modismo astrológico. É batata, posso garantir que uma pauta dessa rende acessos, cliques e compartilhamentos. O que efetivamente a seleção contribuiria, tanto para o seu trabalho quanto para quem o lê? Os humanos e as empresas humanizadas tendem a se contradizer com frequência, isso é algo normal. Já devemos ter feito conteúdo caça-acesso em algum momento. Mas, é evoluindo que se percebe a necessidade de não encher o mercado com mais porcaria do que ele já está abarrotado. Não vale tudo em busca de audiência.

Talvez esse panorama imponha um cenário de imensa crise, sem precedentes, principalmente à crítica de cinema. Como manter-se economicamente relevante e não descuidar da qualidade do conteúdo, da reflexão tão necessária e basilar? Na era dos críticos-celebridade, como manter-se íntegro, fiel aos seus princípios e compromissado com a ética profissional, quando mimos, presentes, viagens, vantagens e afins são colocados, direta ou indiretamente, na mesa de negociação com os outros players desse mercado impessoal? Como não sucumbir à lógica do “o panorama é esse mesmo, foda-se, vou fazer, pois todo mundo está fazendo”? É claro que temos boletos a pagar. Um site como o Papo de Cinema não sobrevive de vento ou de luz. Temos contas fixas, equipe para remunerar, enfim, compromissos como qualquer empresa. Também temos ciência de nosso papel em algumas frentes, tais como a valorizar um cinema menos visível, dar voz a nomes que não necessariamente se encontram “na crista da onda”, manter nossa integridade enquanto críticos e redatores, e, principalmente, honrar um compromisso diário com o leitor. A perda de alguns pageviews é um preço relativamente baixo a se pagar por tudo isso. Posso lhes assegurar.

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Então, reafirmo: definitivamente, não vale tudo por audiência. Além do que foi citado neste pequeno artigo, constantemente “atalhos” são utilizados por quem não tem capacidade ou energia para enveredar por jornadas um pouco mais cansativas e demoradas, por certo, mas que culminam em destinos bem mais duradouros e respeitáveis. Então, caro leitor, fique atento para esse tipo de expediente que visa apenas capturar parte do seu tempo sem qualquer ímpeto de enriquecê-lo ou promover-lhe um entretenimento de qualidade. Há várias maneiras de formar público, de garantir que ele retorne com frequência para consumir. Uma delas é apelar desavergonhadamente para essa lógica imediatista do “foda-se, eu quero é like”. Outra é trabalhar diariamente, evitando o máximo possível esse canto da sereia proveniente do status quo e daqueles que eventualmente são peças importantes do nosso sustento. Onde fores tratado como peixe a ser fisgado, eviscerado e servido de mero alimento, não te demores.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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