Em 28 de agosto se encerrou o VI Cine Jardim: Festival Latino-Americano de Cinema de Belo Jardim. Baseado originalmente em Pernambuco, adquiriu em 2021 o formato online e chegou aos espectadores do Brasil inteiro. Ao longo de três semanas – duração excepcional para um evento independente -, foram exibidos seis longas-metragens e mais de setenta curtas-metragens brasileiros e internacionais. Embora os tempos de pandemia tenham habituado o cinéfilo a grandes festivais organizados em plataformas virtuais, o público mais atento encontrou uma proposta singular no Cine Jardim.
O recorte curatorial despertou a atenção. A seleção de longas-metragens incluindo Sertânia (2020), de Geraldo Sarno; Vermelha (2019), de Getúlio Ribeiro; Casa (2019) de Letícia Simões; As Órbitas da Água (2020), de Frederico Machado; A Mulher da Luz Própria (2019), de Sinai Sganzerla e Vil, Má (2020) de Gustavo Vinagre constitui um recorte de cinema autoral sem concessões, atento às novas linguagens e aos discursos políticos da atualidade. Trata-se de uma lista de filmes do nível da Mostra de Tiradentes (onde foram exibidos os dois primeiros filmes) ou do Ecrã, Olhar de Cinema, Semana de Cinema. Embora houvesse restrição de datas para as sessões de longas – cada título permaneceu disponível por 48 horas -, os títulos não tinham contagem limitada de visualizações e ficaram disponíveis gratuitamente.
Já os curtas-metragens estiveram ao alcance dos espectadores durante a integralidade do evento. É comum se deparar com festivais onde são selecionados filmes considerados bons pelos curadores de modo amplo, sem um conceito prévio capaz de unificar as sessões. Neste caso, em contrapartida, havia olhar específico de curadoria no sentido de defender uma forma de cinema e apontar os caminhos valorizados pelo diretor artístico Léo Tabosa (também cineasta) e sua equipe. A divisão em mostras dedicadas à imagem das mulheres, das crianças e de pessoas LGBTQIA+ jamais transformou estes grupos em meros objetos de estudo: foram privilegiadas obras nas quais estes indivíduos ocuparam o protagonismo, detiveram o ponto de vista e representaram os artistas por trás das câmeras.
É raro encontrar uma seleção que combine obras do nível de Receita de Caranguejo (2019), 23 Minutos (2020), Atordoado, Eu Permaneço Atento (2020), Baile (2019), Carne (2019) e Cinema Contemporâneo (2019). Não se trata de filmes fáceis, nem consensuais. No entanto, promoveram um diálogo fértil uns com os outros: a luta de classes adquire ares espetaculares em Cadeia Alimentar (2019), mas se reveste de cinismo em Êles (2019), e ludicidade em Interrogação (ou Psicopata Legalizado) (2019). A infância é romantizada em Memórias de Quintal (2019), porém se torna amarga em Receita de Caranguejo, e otimista em Baile. A homossexualidade pode adquirir o retrato despojado de Cabeça de Rua (2019), o teor soturno de Aquele Casal (2019), ou se converter numa fantasia, um terreno de sonhos em Mansão do Amor (2020). A fricção provocada dentro de cada mostra ofereceu um panorama rico das compreensões distintas do cinema e da sociedade por parte de novos diretores.
Além disso, a escolha da homenagem fugiu aos caminhos óbvios, aos autores mais midiáticos ou às obras mais populares na televisão: Corisco e Dadá (1996), de Rosemberg Cariry, questiona a luta e a brutalidade do cangaço, indagando de que maneira aqueles ideais revolucionários ecoam na sociedade governada em pleno 2021 por uma junta militar-evangélica. Além disso, conversa com Sertânia acerca da concepção estética e histórica deste movimento que ocupa o imaginário popular. Nas entrelinhas, estas obras provocam o espectador: de que maneiras ainda podemos lutar contra o autoritarismo que se anuncia, sem muito disfarce, no horizonte?
O Cine Jardim promoveu debate com os artistas, além de oficinas remotas e presenciais – algo pertinente para um festival cujo tema era “Cinema e educação”. Os criadores assumiram a responsabilidade fundamental e árdua de popularizar um cinema autoral, retirá-lo de uma condição de hermetismo e colocá-lo junto a qualquer espectador. Em tempos de multiplicação incontrolável de conteúdos virtuais, os filmes politizados e arriscados certamente enfrentam a concorrência de outras formas populares de arte e entretenimento. No entanto, puderam se somar a elas, oferecendo formas diferentes – complementares – de audiovisual de qualidade.
É sempre um prazer se deparar com iniciativas que, diante de um público local com pouco acesso ao cinema ousado, não nivelam a qualidade por baixo para se tornarem mais acessíveis. Em paralelo, dialogam com o público habituado aos festivais sem apelar a recursos da moda e celebridades para garantir a viralização nas redes. O festival ofereceu uma resistência a diversos preconceitos e formas estagnadas de pensamento e concepção da arte. Neste sentido, consolida um espaço fundamental no calendário cultural brasileiro.