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A chegada de Pacarrete (2019) aos cinemas não apenas inaugura a carreira de Allan Deberton enquanto diretor de longas-metragens, mas também consolida escolhas de linguagem e narrativa muito autorais desde o primeiro curta-metragem do cineasta. Em Doce de Coco (2010), Diana (Débora Ingrid) é uma garota isolada na pequena comunidade onde vive, sonhando com a fuga para uma cidade maior. Em O Melhor Amigo (2013), é Lucas (Jesuíta Barbosa) quem se sente deslocado por não corresponder à imagem do conquistador das mulheres que o amigo espera dele durante uma viagem à praia. Em Os Olhos de Arthur (2016), o personagem-título (André Campos) torna-se foco da conversa alheia, por sua limitação intelectual, ficando literalmente à parte no espaço da piscina por onde transitam os demais personagens. Já Pacarrete (Marcélia Cartaxo) vive um imaginário de grandeza cênica que não corresponde à sua vida rotineira. Ela é a chacota da cidade, a mulher considerada louca.

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Doce de Coco

Uma adolescente grávida e solteira, um jovem gay, outro rapaz deficiente mental, e uma artista sem plateia. Este é um imaginário povoado por figuras marginais, excluídas da sociedade, ainda que transbordando de afeto. Diana, Lucas, Arthur e Pacarrete representam o oposto das sociedades retrógradas, da moral conservadora de pais castradores (em Doce de Coco), dos conhecidos que toleram com certo desprezo a deficiência (em Os Olhos de Arthur), do estímulo à sexualidade, contanto que heteronormativa (o disque-encontro dentro do bar, Felipe acatando com uma violação sexual para manter a postura de homem sexualmente ativo em O Melhor Amigo), e da máquina política negligente (os funcionários falsamente polidos de Pacarrete, a vizinhança invisível da ex-bailarina).

Trata-se de protagonistas que não apenas são colocados em situação de exclusão, mas também são privados das rédeas de seus destinos. Os acontecimentos dos três curtas-metragens e do longa-metragem dirigidos por Allan Deberton ocorrem apesar dos protagonistas, e não graças a deles. Ao invés de eleger os tradicionais heróis que determinam o meio ao seu redor, o cineasta prefere as figuras silenciosamente oprimidas pelas decisões alheias: Diana é obrigada a sair de casa, e acata a decisão da mãe; Arthur descobre pelo cochicho alheio que corre o risco de ser deixado pela babá; Pacarrete jamais conquista o direito institucional de se apresentar em praça pública (exibindo sua arte apenas metaforicamente, em seus próprios devaneios) e Lucas se vê incapaz de dizer ao amigo que não deseja ir ao bar, à praia, olhar as meninas. Os anti-heróis destes dramas não são revolucionários, empoderados, revoltando-se contra o sistema. Eles se calam, controlam os sentimentos (vide as quase-lágrimas de Diana e Arthur, a impossibilidade de Pacarrete em declarar seu amor a Miguel, ou de Lucas em se declarar ao amigo) e acatam tacitamente a opressão da maioria.

Estas figuras compõem uma ciranda do estoicismo e, mais especificamente, da frustração dos desejos, tanto sexuais quanto de afeto familiar. Curiosamente, o doce é um símbolo recorrente para exemplificar o afeto de que os personagens não dispõem. Doce de Coco seria o exemplo mais óbvio dos quatro filmes, por apresentar a iguaria do título, responsável não apenas pelo sustento da família, mas também pelo elo entre pai e filha no início da trama – justamente o laço que será rompido ao final. Depois de um ato sexual de Diana, um corte na montagem apresenta o coco sendo raspado entre as pernas da personagem, em óbvia conotação erótica, mas também frustrada: Diana possui uma gravidez avançada.

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O Melhor Amigo

Em O Melhor Amigo, um prato de brigadeiro efetua o papel do desejo reprimido: o doce é posto convenientemente entre as pernas de Felipe, fazendo com que Lucas precise raspar a colher sobre o sexo do amigo. Quando aquele se levanta e sai, o protagonista demonstra em cada lambida um prazer que ultrapassa a simples presença do brigadeiro. Para Arthur, uma festa de aniversário apresenta um grande bolo e doces colocados à disposição, para que coma à vontade. O jovem deficiente, que demonstra atração física tanto por garotas quanto por garotos, recebe o doce das mãos da bela nadadora de quem depois tenta roubar um beijo. Mesmo Pacarrete, a única protagonista de idade avançada entre os quatro, morre de ciúme quando um doce de coco – novamente ele – é entregue a Miguel.

O doce não apenas efetua a ponte para o desejo sexual, como precede a frustração do mesmo. Diana possui evidente interesse na presença de um belo rapaz no riacho, propondo pequenos jogos sexuais sob a água. No entanto, quando aparece grávida, o moço já não faz parte da narrativa, e a perda da virgindade fora do casamento se torna símbolo de fraqueza moral aos olhos do pai. Não há indício de que ela tenha tido contato com qualquer outro homem desde então. A paixão, caso se possa falar de um sentimento forte entre Diana e o rapaz do rio, foi extinta logo após a consumação do ato.

O Melhor Amigo é inteiramente construído a partir do desejo de Lucas pelo amigo. De certo modo, Lucas controla a narrativa: seu olhar está presente mesmo quando dorme, no início da trama, convergindo com o ponto de vista da câmera, que percorre o abdômen do colega, e inclusive corta os olhos deste na cozinha – retirando-lhe portanto a personalidade. Ele é visto inicialmente como um belo corpo, que se despe em frente a Lucas (com um detalhe das nádegas expostas, em plano de detalhe) e oferece uma possibilidade sexual que jamais se concretizará. Arthur é rechaçado pela bela nadadora, e Pacarrete precisa aceitar o fato de que o simpático Miguel a trata com carinho, porém sem amor romântico. “Também te abandonaram, foi?”, pergunta a bailarina a um cachorro na estrada. Esta poderia ser a pergunta que os personagens fazem uns aos outros neste círculo narrativo.

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Os Olhos de Arthur

Talvez o elemento mais homogêneo nas quatro narrativas seja a conclusão, próxima das ferramentas do conto literário. Deberton não acompanha seus personagens até o fim da jornada: a existência cinematográfica deles se interrompe quando o conflito ainda está latente, não resolvido. Deixamos Diana antes do parto, e sem saber se adaptará à casa do tio; perdemos Arthur de vista antes de descobrir como o casamento da babá afetará seu destino; dizemos adeus a Lucas instantes antes de um possível ato sexual, além da tão aguardada revelação de sua homossexualidade. A suspensão mais bela ainda cabe a Pacarrete que, confrontada aos bloqueios do mundo real, mergulha em sua apresentação imaginária, um balé épico e triste, silencioso, na qual ela é a diva solitária – e o fato de estar sozinha, no palco, faz dela uma estrela ainda maior, ao invés de uma personalidade rejeitada.

Derrotados pela maioria social, os protagonistas recorrem tanto à fuga (a viagem de Diana, a escapada na praia de Lucas) quanto ao complexo mundo íntimo (Pacarrete e Arthur). “A verdade vem da boca das crianças e dos loucos”, diria o ditado popular, e em certa medida, isso corresponde ao comportamento de Lucas e Pacarrete, respectivamente, que ousam enfrentar as normas e sofrem, portanto, com a retaliação. Lucas chega a ter um breve sonho erótico com o amigo, mas logo desperta. Diana, a personagem mais desprovida de ludicidade, é enviada para fora do próprio lar, como recompensa amarga da mãe que lhe quer bem.

Nenhuma destas vidas está resolvida, muito pelo contrário: as histórias se concluem com os heróis postos diante do abismo. Assemelham-se ao conto literário por funcionarem mais como evocações de estados de espírito do que histórias descritivas, conduzindo o espectador a uma recompensa emocional específica. Ao espectador cartesiano, restará a mesma frustração dos personagens, que terminam suas travessias diegéticas nem tristes, nem contentes, apenas suspensos. O diretor substitui cada um dos “finais felizes” esperados da narrativa convencional por um momento de poesia: a magistral apresentação de Pacarrete, a caminhada de mãos dadas com a babá para Arthur, a bela luz crepuscular indicando o desconhecido na vida de Diana, e as luzes apagadas como manutenção do segredo para Lucas (no escuro, ninguém o verá admirar o colega, e talvez se masturbar).

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Pacarrete

Deberton parte de narrativas lineares, apoiando-se nas convenções do drama – ou melodrama, pela presença da música e dos protagonistas sozinhos contra todos – apenas para suspender, na reta final, a promessa de reparação e recompensa. O cineasta prefere fazer perguntas a respondê-las, prefere lançar seus personagens em novas jornadas ao invés de acompanhar a chegada. A abertura à poesia é também uma abertura ao mundo, uma maneira delicada de transitar da dureza do mundo real à terna vida possível, da amarga exclusão à doce vida sonhada.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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