Em minha última passagem pelo Festival de Cinema de Gramado, após sessão do filme O Mar de Mário, de Reginaldo Gontijo e Luiz F. Suffiati – exemplar difícil de deglutir sobre o cineasta Mário Peixoto – iniciei conversa com alguns críticos sobre a omissão de questionamentos importantes que ocorre na obra, como, por exemplo, os que contestam a autenticidade de opiniões emitidas por cineastas de renome acerca de Limite, o mítico (e único) filme de Peixoto. Minha surpresa foi constatar que críticos renomados não sabiam de tais desconfianças, nem mesmo daquela que objeta a autoria do famoso texto atribuído ao russo Sergei Eisenstein, e que, ao mesmo tempo, sustenta tal resenha como peça marqueteira criada pelo próprio Peixoto. Sabia que tinha lido em algum lugar sobre a questão, mas não lembrava onde, para poder voltar à fonte. Fui à internet e descobri o deflagrador de tal reviravolta histórica.
Em 1991, o então jornalista da Folha de São Paulo, Leão Serva, ganhou capa do caderno Ilustrada com matéria alusiva aos 60 anos de Limite, ao mesmo tempo em que lançou estas dúvidas sobre as verdades e mentiras propaladas por seu criador. Fiz contato com Leão Serva, que gentilmente me enviou uma cópia digital da página jornalística da época (veja aqui). Apoiado em conversas com o próprio cineasta e, principalmente, com o restaurador de Limite e biógrafo de Mário, Saulo Pereira, o jornalista sustentou não haver qualquer indício de que Eisenstein tenha sequer visto o filme, quanto mais escrito sobre ele. Leão diz ter ouvido ainda de Saulo que a famigerada crítica foi composta de próprio punho por Mário, e entregue posteriormente datilografada (supostamente uma tradução) para o então crítico Cacá Diegues, que a encaminhou para publicação em 1964.
Entre outras lorotas disseminadas por Peixoto, e apuradas por Leão, estão sua idade – ele dizia ter dirigido Limite com 15 anos, o que se descobriu uma inverdade, e a euforia de Orson Welles ao ver seu filme – outra mentira, já que testemunhos da sessão, que ainda contou com Vinícius de Moraes, dão conta que Welles chegou a dormir durante a projeção sob efeito de álcool.
Não se trata aqui de colaborar para qualquer mácula à figura já falecida de Peixoto, longe disto, mas há de se por as coisas em sua devida ordem. Ele mesmo dizia não poder provar a existência de tal artigo, por conta da destruição dos arquivos da revista Tatler, suposto veículo em 1932 da primeira publicação do mesmo. Quem sabe os diretores de O Mar de Mário, cujo desenvolvimento é bastante permeado justamente pelo registro do diretor lendo orgulhosamente a suposta declaração de amor de Eisenstein a seu filme, preferiram tomar o partido do artista, jogando para baixo do tapete qualquer questionamento às suas verdades. Decisão canhestra e chapa-branca que, por si só, enfraquece ideologicamente o documentário.
Parece mesmo que, orgulhoso da suposta estesia de Welles e Eisenstein diante de uma obra-prima do cinema brasileiro (e ninguém aqui falou que Limite não o é), o nacional decurso histórico relegou ao limbo algumas evidências que negariam completamente tais reações. Afinal de contas, como dito em O Homem que Matou O Facínora, de John Ford, “Quando a lenda é maior que o fato, imprima a lenda”. No caso de Mário Peixoto, parece que a lenda foi impressa em tintas mais vívidas, e a cor da verdade foi se deteriorando com o tempo.
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Muito bom, Marcelo. Essas questões ambíguas sobre Mario Peixoto e seu Limite foram discutidas à exaustão em uma aula de cinema brasileiro da minha pós. Importante resgatar isso perante o cenário atual, em que verdade e realidade são conceitos também questionáveis...