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O diretor é a mente criativa de um filme. É ele o responsável por tudo o que se vê na tela. Do enquadramento aos movimentos da câmera, do tipo de performance exigida dos atores ao aspecto dos ambientes no qual eles transitam, tudo é escolhido e orientado pelo diretor. Este, por sua vez, é assessorado por diretores de fotografia, de arte, preparadores de elenco, músicos e outros profissionais que procuram traduzir suas ideias por meio da técnica na qual são especialistas e, como resultado final, o filme ganha vida sustentado por essas escolhas. Porém, no caso de Os Miseráveis (2012), dirigido por Tom Hooper, pode-se ter a impressão de que as escolhas foram feitas para boicotar o longa.

O filme é uma adaptação do belíssimo musical composto por Schönberg e com letras originais (em francês) de Boublil e Natel. Sucesso retumbante em teatros de todo mundo, este é, por sua vez, adaptado do romance homônimo de Victor Hugo. A trama acompanha o périplo de Jean Valjean (no filme, um transfigurado e inspiradíssimo Hugh Jackman) em busca de redenção. Prisioneiro forçado a prestar trabalho escravo por 19 anos (por ter roubado um pão), o herói foge da condicional para se redimir e reconstruir uma vida honesta e próspera. Mas será eternamente perseguido por Javert (Russell Crowe), ex-guarda de sua prisão, com um senso de justiça tão estrito quanto impiedoso.

Dada a tradição do musical nos palcos e o talento de todos os envolvidos, o elenco apresenta um desempenho excepcional. Completamente entregues aos seus personagens – sem, no entanto, perder o controle sobre eles – cada ator e atriz parece ser a pessoa perfeita para viver o papel que representa. Hugh Jackman, por exemplo, começou sua carreira em musicais. E mostra muito bem porquê. Anne Hathaway, que já tinha inclusive cantado com ele na cerimônia do Oscar de 2009, explode na melhor performance de sua carreira até agora, impecável. Até o pequeno (e estreante) Daniel Huttlestone rouba a cena fazendo Gavroche, um garotinho criado entre os revolucionários.

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Contra tudo isso, está um diretor que, conscientemente ou não, parece querer aparecer mais que o seu elenco brilhante. Afinal, as escolhas de direção aqui não parecem fazer nenhum sentido para a sustentação do filme. A tradicional câmera “bêbada” de Hooper está lá, oblíqua, vesga, desfocando pontos aleatórios e balançando repentinamente, ainda que num tripé. Os enquadramentos obtusos não mimetizam nem o estado de espírito dos personagens nem contribuem para a criação de uma atmosfera diferenciada, servindo apenas para que o espectador tenha que encontrar pessoas perdidas em algum canto tela. Ou torcer para que eles não deslizem para fora dela, já que o solo tem uma inclinação de mais de 45 graus. A direção de arte, embora triunfante e precisa, insiste em decorar interiores com as paredes descascadas que, além de servirem de backdrop para os enquadramentos, só fazem lembrar O Discurso do Rei (2010) – filme que não dialoga muito com uma trama de tons antimonarquistas. E a fotografia sombreia o rosto do protagonista mesmo quando ele é a única fonte de luz na tela.

Não é nenhum problema que um diretor tente construir seu estilo e use de formalismos para isso, ainda que inusitados. Não há nada que se oponha – pelo contrário – a um diretor que se faz notar por sua assinatura estilística. No entanto, esse estilo, seja lá qual for, se torna brilhante na medida em que presta serviço à arte que constrói. Se David Lynch cria atmosferas surreais e sombrias, é para mimetizar um universo que habita o interior de seus personagens, alterando o ambiente em que vivem. Se Hitchcock tira a onisciência do espectador sobre as ações dos personagens, é para que ele seja contagiado pelo suspense que permeia a trama. Quem aderiu ao Dogma 95 pretendia despir o cinema de seus artifícios, desnudando o real de forma invasiva, fálica.

Mas Hooper não se enquadra em qualquer destes casos. Seu estilo se impõe sobre o filme sem qualquer justificativa semiótica ou mesmo estética – já que muitas das composições quebram mesmo regras de Gestalt, por exemplo – quase destruindo um musical que, por si só, tem tudo pra dar certo. Quase.

Duas das escolhas de Hooper são iluminadas e dão ao filme momentos que o fazem tão grande quanto o musical merece. A primeira delas foi a opção de não pré-gravar as vozes cantadas dos atores. Embora não seja inédita (foi usada em Os Commitments – Loucos pela fama, 1991, por exemplo, e até em algumas cenas de Mamma Mia!, 2008) e tenha tornado o trabalho ainda mais difícil, a escolha se prova acertada e injeta ainda mais dramaticidade nas cenas. O esforço do canto dos atores se mistura ao esforço pela sobrevivência dos personagens e transborda nas expressões e na linguagem corporal do elenco.

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A segunda e mais brilhante escolha foi a de gravar a performance de I Dreamed a Dream, cantada por Fantine (Anne Hathaway), em um único plano sequência, com a câmera quase estática. É um momento em que Hooper quase desaparece e deixa Anne brilhar absoluta, com tantas nuances diferenciadas, tanta beleza no canto e tamanha entrega ao papel que fica impossível negar a grandiosidade da atriz e, por extensão, dos musicais quando levados ao cinema. A escolha lembra, inclusive, A Paixão de Joana D’Arc (1928), de Carl Dreyer, seja por sua intensidade dramática, seja por sua opção de usar um enquadramento mais fechado.

Quem mais sofre com os malabarismos estéticos, no entanto, é Hugh Jackman, até pelo tempo em que permanece na tela. Bom notar que nem isso foi o bastante para impedir que ele mostrasse uma faceta que os espectadores de Wolverine nem desconfiavam que existia: cantar brilhantemente, transfigurar-se fisicamente e garfar uma indicação ao Oscar de Melhor Ator.

Anne Hathaway como já dito, é absoluta. Os pouco mais de 20 minutos em que ocupa a tela são provavelmente os únicos em que nem Tom Hooper consegue nos distrair do que realmente importa. A câmera poderia estar de ponta-cabeça e ainda assim seria possível se emocionar com uma personagem cuja decadência moral e física transparece visualmente, num corpo minguado, na expressão doída e na simbólica perda da linda cabeleira. Anne está indicada ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante e provavelmente dorme em paz com a certeza de seu mérito. O elenco coadjuvante é grande e, guardadas as devidas proporções, brilha tanto quanto Jackman e Hathaway.

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Grandioso em sua própria concepção, Os Miseráveis é um filme que deve agradar aos fãs de musicais, de grandes épicos ou mesmo de produções espetaculares e bem cuidadas. Ao mesmo tempo, figura como uma aula de cinema irônica, do tipo “o que não fazer”. Numa trama onde o povo se levanta contra um rei, o público talvez torça para que os atores também se levantem contra o diretor no comando de um longa que, por pura vaidade, quase cai na miséria de seus personagens. Felizmente, eles triunfam.

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é jornalista, mestre em Estética, Redes e Tecnocultura e otaku de cinema. Deu um jeito de levar o audiovisual para a Comunicação Interna, sua ocupação principal, e se diverte enquanto apresenta a linguagem das telonas para o mundo corporativo. Adora tudo quanto é tipo de filme, mas nem todo tipo de diretor.
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