Os rótulos, os cinéfilos e os que gostam de filmes
Publicado por
Marcelo Müller
Rótulos foram feitos para que os usássemos. Como os das mercadorias, eles servem para promover a identificação dos indivíduos, para agrupá-los, facilitando assim nossa percepção. Não raro, possuem também lado pejorativo, aspecto de “parede” que prende sujeitos ou grupos em delimitação exígua, geralmente sem muita margem para pormenorizações ou análises singulares. Todos ganham rótulos e os distribuem com a mesma necessidade e, por mais que tenhamos noção que eles engessam e apequenam nossa percepção, são elementos inerentes a qualquer configuração social. Temos os nerds, os esportistas, os baladeiros, as vadias, as santas, etc.
A cinefilia também impõe um rótulo, mas, na busca de um entendimento maior da significância desta ordenação, tentemos entender com mais clareza quais são suas facetas. O que é ser cinéfilo? Quem assiste a muitos filmes, diriam uns. Os que não saem das salas de cinema, diriam outros. Os assinantes de uma revista da área, que conhecem de cor e salteado os nomes de atores e técnicos, profeririam outros tantos. São definições muito particulares, que variam, principalmente, de acordo com o grau de envolvimento que o dito “cinéfilo” tem com a arte cinematográfica. A mim, definir a genuína cinefilia passa pela diferenciação entre os que gostam de filmes e os que gostam de cinema.
Gostar de filmes abarca um monte de coisas, desde a frequência com que se vai ao cinema, com que se assiste filmes em casa, apego a gêneros e a certos tipos de narrativa, entre outros. Para quem gosta de filmes, a audiência comumente é uma atividade de entretenimento, e os filmes são como interlúdios, ou programas cativos de fim de semana. Gostar de cinema é bem diferente, e é aí que encaixo o conceito de cinefilia. O apreciador de cinema é alguém preocupado não somente com a construção fabular do filme, mas também com a gramática cinematográfica, com a forma da condução narrativa. Além disso é alguém que vê no cinema sua vocação artística e transformadora, que passeia livremente pelos gêneros e com curiosidade pela produção global. Gostar de cinema é enxergá-lo como arte, estudar seus movimentos e variações estéticas. Ser cinéfilo é gostar de cinema, não apenas de filmes.
Como dito no início, os rótulos criam guetos e embaçam nossa visão para particularidades, para o que se instaura fora do senso comum. A cinefilia é uma prática que vem embalada num rótulo, como qualquer outra, e cabe a quem goste, seja de filmes ou de cinema, adotar ou não a nomenclatura para definir sua paixão particular. Considero-me cinéfilo por me encaixar na categoria dos que gostam de cinema e, como dito acima, em minha opinião, uma coisa está estritamente ligada à outra. Não que os pipoqueiros inveterados ou fãs de filmes que não se propõem aprofundar nos meandros da arte cinematográfica sejam impossibilitados de utilizar a alcunha, afinal, repito, todo este processo de classificação é muito subjetivo, mas sempre é bom refletir sobre classificações e diferenças pontuais. Esta atenção ao que difere os membros de um mesmo grupo é fundamental. Caso tenhamos a dita clareza, os títulos serão benéficos, ao passo que se rotularmos arbitrariamente sem ponderação, os mesmos serão apenas invólucros descartáveis e sem muita utilidade, que nunca darão conta da complexidade do conteúdo que embalam.
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.