Tudo começou com a doce Regan, que um belo dia trocou as brincadeiras infantis por palavrões, vômitos e contorcionismos sinistros. Décadas depois, Emily Rose foi a escolhida pelas forças malignas. São apenas duas citações de personagens femininas envolvidas em exorcismos no cinema, pois, caso pesquisássemos mais a fundo, faltariam linhas para tantas moças com o diabo no corpo. Mas, afinal, porque quase sempre as mulheres são escolhidas para que as forças do mal se manifestem? Tal dúvida rendeu altos papos entre críticas de cinema. O que alguns machistas acreditam ser um assunto sem cabimento, na verdade traz um novo foco para os filmes de terror que abordam a temática do exorcismo. Com a estreia do fraco Diário de um Exorcista: Zero (2016), de Renato Siqueira, que se vale de absolutamente todos os clichês do gênero, fica claro porque roteiristas (homens, em sua maioria) optam por personagens femininas para serem as exorcizadas da trama.
O primeiro ponto é a sexualidade. Corpos femininos são sempre prioridade quando se quer nudez em cena e, mesmo explorados dos mais diversos ângulos, permanecem um mistério. No fundo, ainda assusta o fato de sangrarmos todos os meses e continuarmos vivas. Só isso já daria um roteiro e tanto. A chegada da puberdade, marcada pela primeira menstruação, se apresenta na metáfora da menina tomada por um espírito maligno. Quem já passou pela adolescência sabe que os hormônios em ebulição parecem mesmo “coisa do capeta”, mas há muito mais por trás disso. Em Carrie: A Estranha (1976), a protagonista não passa por exorcismos, mas seus poderes se manifestam principalmente quando ela está com raiva. Homens costumam caracterizar mulheres à beira de um ataque de nervos como possuídas. Coincidência, ou não, eles parecem gostar da ideia de um homem “santo” que consegue, depois de muito esforço, apaziguar os ataques de uma adolescente.
Tantas antepassadas queimadas na fogueira, acusadas de bruxaria, e nenhuma com capacidade suficiente para lidar com o demônio. Claro que a questão histórica do exorcismo dentro da igreja católica também pesa nessas horas. Mas, se estamos no plano da ficção, porque não criar a trama de uma freira disposta a se dedicar ao assunto? A ética do cuidado, que perpassa das parteiras às benzedeiras, parece não inspirar muito Hollywood. A imagem da fragilidade, relacionada ao feminino desde sempre e sem muita explicação, nos coloca, mesmo, na posição de vítimas. Somos tidas como mais vulneráveis, logo, facilmente enganadas pelo diabo. Nos deixamos levar por sua conversa e adquirimos comportamentos tidos como masculinos. Regan usou um crucifixo para se masturbar, deixando o padre Merrin escandalizado em O Exorcista (1973). Fora do contexto do filme de William Friedkin, masturbação feminina ainda é um terror, com o perdão do trocadilho. Paul Verhoeven, em Elle (2016), escolheu uma trilha de suspense para ambientar a cena em que a protagonista busca prazer solitário observando o vizinho. Um detalhe que pode passar despercebido por muitos espectadores, mas que deixa a mulherada bem decepcionada com a mentalidade masculina.
A simples inversão de papeis, colocando o homem como possuído e a mulher como dotada dos poderes e conhecimentos para libertá-lo da maldição, não basta. É preciso uma releitura dos rituais, uma troca de ideias e até alguns estudos sobre os primórdios do feminismo. Estamos em 2017 e ainda gritam “bruxa” quando querem nos ofender, mas ao criarem um roteiro, quem assume o papel de “bruxo” é o homem. Toda a atmosfera de mistério que envolve o corpo e a sexualidade femininos pode ser um mar de inspiração ainda desconhecido dos produtores. Sabemos que impera a bilheteria e nem sempre qualidade está na ordem do dia. Todavia, em tempos como os nossos, em que cada vez mais mulheres saem da zona de conforto e entram na batalha para serem ouvidas com seriedade e longe dos estereótipos, vale valorizar outro tipo de exorcismo. As fraquezas masculinas ficam bem mais escondidas que a nossa tão falada fragilidade. Lugar bem propício para o diabo chamar de lar.