A imprensa e as redes sociais têm sido tomadas por uma onda de questionamentos que podem parecer atemporais, mas constituem um fenômeno bastante contemporâneo: a responsabilização de imagens violentas pelos comportamentos violentos na sociedade. Coringa (2019), produção da Warner com Joaquin Phoenix no papel do vilão, foi questionado quanto à ética de se trazer aos cinemas um protagonista assassino e carismático, logo após tantos tiroteios nos Estados Unidos. No Brasil, vozes se indignaram contra a construção de um filme sobre Suzane von Richthofen (2020), assassina convicta dos próprios pais. Por que, afinal, criar uma história sobre pessoas que não defendemos? Estes personagens não estariam incentivando a reprodução dos crimes vistos em tela?
Ora, primeiro seria importante demonstrar o devido cuidado com a sensibilidade de vítimas de atentados e seus familiares, que criticam a exibição deste tipo de obras. Desmerecer a dor dessas pessoas enquanto argumento pueril ou falso equivale a ignorar o fato de que muitos destes grupos não têm a possibilidade de tomar o distanciamento efetivo em relação aos fatos. Não cabe a eles determinar que tipo de imagens a sociedade contemporânea pode ou não consumir, assim como não cabe a nós dizer que sua leitura emocional de uma tragédia seja impertinente. Na soma dos fatores, resta o fato de que, solidário ou não à causa de tantos pais em luto, precisamos atentar ao fato de que tal decisão precisa vir de representantes do povo, e não apenas de vozes diretamente afetadas por casos de violência.
Segundo, a busca pelas raízes da delinquência juvenil sempre passa pela nossa relação com as imagens: os videogames já foram considerados os grandes responsáveis pelo comportamento de atiradores em escolas norte-americanas (Donald Trump voltou a sugerir este atalho) – mesmo ignorando o fato de que nações dotadas de uma relação íntima com imagens de violência e videogames, como o Japão, apresentam taxas de criminalidade baixíssimas. Desta vez os cinemas e séries ocupam este espaço no imaginário popular sobre a corrupção da juventude. É inegável que existem muitas imagens extremas ao alcance de crianças e adolescentes. O problema lógico se encontra na determinação de que o simples fato de assistir a uma representação da violência seja equivalente a presenciar a violência em si.
Psicologicamente, nada prova que videogames ou filmes violentos formem crianças violentas. Diversos estudos buscaram traçar uma relação direta entre ambos, sem sucesso. Quantos adultos de hoje não tiveram sua formação lúdica infantil através de lutas de desenhos japoneses, filmes de combate, projetos de guerra e de suspense na televisão? Como explicar que apenas uma parcela ínfima desses espectadores tenha reproduzido atos semelhantes? Mesmo a noção de um suposto trauma diante da imagem de violência é contestável, porque o indivíduo é capaz de absorver, a partir de um estímulo agressivo (de um desenho, de um filme como Coringa ou A Menina que Matou os Pais) leituras e percepções totalmente diferentes – inclusive a de recusa do que vê em tela. Em outras palavras, podemos tomar conhecimento de pessoas imorais para então discordar delas. Cabe lembrar o óbvio ululante: diversos projetos sobre personagens condenáveis trazem um ponto de vista contrário ao personagem condenável.
Isso é possível porque cinema, séries e videogames constituem uma representação da realidade, mas jamais uma realidade em si. O choque diante de uma violência real – digamos, o ato de testemunhar um assassinato – jamais será o mesmo de presenciar uma ficção sobre assassinatos. O contato com a arte, a cultura e a ludicidade, desde a infância, permitem descobrir que imagens fornecem recriações, ou ainda filtros, decalques, do mundo ao redor. Nós podemos inclusive nos proteger da violência do mundo ao lidar com um espectro simulado da mesma – diversas teorias a respeito do cinema de horror apontam o fato de que as imagens sanguinolentas permitem ao espectador simular a experiência da morte num ambiente seguro, sem de fato morrer.
A imagem proporciona sensações, devaneios, fantasias íntimas de diversas naturezas. Em muitos casos, são exatamente estas sensações plurais e incontroláveis que as vozes moralistas buscam controlar com tanto ardor. As críticas de políticos reacionários ao Coringa e ao filme sobre Suzane von Richthofen – o primeiro, uma obra que poucas pessoas viram, por não ter estreado comercialmente antes da polêmica a seu respeito; e o segundo, um filme que sequer foi concluído – não se distanciam tanto dos ataques direcionados a histórias em quadrinhos sobre beijos gays ou séries de televisão sobre jovens transexuais. Este raciocínio supõe que, ao ser exposto à imagem, o espectador será influenciado, convertido, e buscará automaticamente reproduzi-la.
Este raciocínio ignora que: 1. A comunidade LGBTQI+ é exposta a imagens de afeto e beijo heterossexual e cisgênero a vida inteira, sem ter se tornado heterossexual e cisgênero; 2. Não existe nada condenável no afeto em si, não precisando ser censurado e punido, e muito menos comparado com um comportamento criminoso; 3. Existem mecanismos de classificação etária destinados a evitar que crianças assistam à violência ou ao sexo nos cinemas, cabendo aos pais ou responsáveis determinar o conteúdo a que são expostas; 4. Acima de tudo, a imagem artística não é prescritiva, hipnótica: sua comunicação ocorre pelo apelo aos sentidos. Coloque mil imagens sedutoras – da publicidade, por exemplo – mandando jovens comprarem determinado produto, no entanto, se os jovens não se sentirem atraídos por ele, não o comprarão. O conservadorismo trata as imagens como veículos de manipulação massiva, como um discurso direcionado a pessoas sem senso crítico, e incapazes de diferenciar o real de sua ilustração.
De certo modo, as críticas institucionais partem de pessoas cujo escopo cognitivo também se reduziu nos últimos tempos: são os grupos mais propícios a acreditarem em teorias da conspiração, em fotomontagens estapafúrdias, em notícias absurdas desprovidas de fontes, em vilões fabricados de acordo com a necessidade dos salvadores em potencial. Por comprarem uma fantasia como realidade, acreditam que os demais também se despiram da capacidade de interpretação. Este discurso, aliás, se aproxima muito da pregação dogmática, do tipo que diz o que fazer ou não fazer, o certo e errado. Neste caso, o discurso torna-se uma ordem, um guia de moral, algo que a imagem do discurso jamais poderá ser. Ao acusar filmes violentos de fomentarem a violência, os acusadores dizem muito mais sobre a limitação de seus pontos de vista do que sobre as obras que buscam criticar.
Além disso, a acusação funciona como interessante ferramenta política aos controladores do discurso. O fato de atribuir a filmes, séries e videogames a responsabilidade de maltratar a nossa infância, de causar mortes de adolescentes e crimes pelas cidades equivale a eximir o governo, a família e demais instituições (como a religião) desta responsabilidade. Se os filmes estão levando um garoto a se tornar agressivo, não seria culpa do Estado por não lhe dar condições adequadas de vida, ou por fornecer ao colega dele uma vida de privilégios enquanto ele sofre para conseguir o mínimo necessário? Poupa-se deste modo as famílias patriarcais, com seu encorajamento da agressividade como sinônimo de masculinidade, assim como as religiões que defendem o domínio dos homens sobre as mulheres, a superioridade de uma sexualidade em relação à outra etc.
Quanto ao Coringa, quanto a Suzane von Richtofen, a Travis Bickle, a Hannibal Lecter, a M: O Vampiro de Dusseldörf, a Anton Chigurh, a Patrick Bateman, a Charles Manson, a Aileen Wuornos, eles nos lembram que algumas das maiores obras do cinema se prestam a investigar as origens e as configurações do mal, ou apenas de perversos sistemas sociais em que estamos inseridos – algo fascinante, e tão digno de ser abordado no cinema quanto qualquer outro tema. Trata-se de filmes que não defendem seus personagens, preferindo ressaltar o quanto sua perversidade é corrosiva (no caso de Michael Haneke), o quanto derivam de falhas sociais (para Martin Scorsese), o quanto são exageradas, ridículas, absurdas (para Quentin Tarantino), o quanto podem vir das próprias vítimas (em Lars von Trier). Em outras palavras, o antiexemplo apontado pelos moralistas possui uma configuração muito mais complexa do que se supõe – assim como deveriam ser os exemplos.
Em paralelo, cabe se questionar os temas considerados agressivos. Um beijo entre dois homens é julgado obsceno; o protagonismo de uma prostituta branca, rica e famosa é descrito enquanto pornografia. Ora, os litros de sangue que jorram dos filmes de guerra, os socos e tiros trocados entre heróis de ação, a erotização e fragilidade da mocinha salva pelo super-herói não seriam ainda mais obscenos? Ou não se questiona, afinal, a violência, apenas formas de violência que fujam daquela prescrita e protegida pelo status quo? Diante de um questionamento retórico como o ataque a obras de arte, revelamos primeiro a nossa incapacidade de separar discurso do filme e discurso do personagem – o filme pode sustentar uma narrativa oposta daquela de seu (anti-)herói – e segundo, a nossa tentativa desesperada de identificar um culpado, se possível um culpado facilmente identificável e acessível para justificar o nosso fracasso em proteger a juventude e impedir que novos atos de violência aconteçam.
Por mais frágil que seja a hipótese do cinema encorajando novos crimes, ao menos ela retira o peso dos nossos ombros. Assim, aplaca a consciência, a culpa cristã, o dever cidadão, e permite que as raízes da violência, as verdadeiras causas de uma sociedade falida, se reproduzam. Devemos ter mais tiroteios, mais filmes sobre tiroteios, e mais associações apressadas entre ambos.