03 quando eu era vivo papo de cinema

Quem acompanha as notícias sobre cinema, especialmente o nacional, já devia estar ansioso há alguns meses pela estreia de Quando Eu Era Vivo, de Marco Dutra. O diretor vem construindo uma carreira interessante, ajudando a compor o interessante quadro da nossa nova geração de cineastas. Seu primeiro filme, Trabalhar Cansa (2011), flertava fortemente com o terror e o suspense, embora num contexto muito mais social, subliminar. Era algo próximo ao que Kleber Mendonça Filho faz em O Som ao Redor (2012) ou em vários dos seus curtas. Portanto, algo ainda ligado à “matriz social” do cinema nacional, responsável por produzir algumas de nossas maiores obras. Mas este trabalho mais recente não deixa dúvida: é terror mesmo, purinho.

O filme conta a história de Junior (Marat Descartes, transtornado e transtornante), que após ter se separado da mulher e do filho, volta à casa do pai (Antônio Fagundes). Aos poucos, ele vai revirar seu passado e revelar segredos perigosos sobre sua falecida mãe, Olga (Helena Albergaria). Nesse percurso, acaba se aproximando de Bruna (Sandy Leah), uma estudante de música que aluga um dos quartos de seu pai.

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Vamos resolver logo essa história da Sandy no filme, detalhe que, para muitos, parece ser o principal do filme. Não é. Ela é uma coadjuvante. Espertamente escalada por sinal. Num filme que fala sobre a arqueologia de um passado recente e seus demônios, nada mais propício do que ter Sandy, estrela mirim do começo dos anos 1990, no meio do elenco. A tentação de reclamar do fato de que a personagem canta em cena e da indisfarçável aparência virginal da atriz/cantora talvez distraia do que realmente interessa: ela está ali pelo mesmo motivo que o boneco do Fofão, o disco girando ao contrário, os “chup chups de ursinho” e a bolacha Piraquê. E isso dá, também, o tom que colore a direção em todos os seus aspectos. Portanto, se você não gosta da Sandy ou da voz dela, apenas supere. Não é o line-up do seu festival indie, é uma obra de ficção.

Quando Eu Era Vivo é um filme sobre o passado e seus demônios, sobre o terror que jaz sob aquilo que passou sem ser bem entendido. Adaptado (e adaptação não é tradução nem transcrição) da obra “A arte de produzir efeito sem causa“, de Lourenço Mutarelli, o filme deixa de lado alguns aspectos do material original para se concentrar e criar em cima de outros, mais macabros, por assim dizer.

Não é à toa que já teve gente o relacionando com a “Trilogia do apartamento” de Polanski. De fato, tanto aqui como lá, a trama transcorre quase que exclusivamente num único cenário, que se torna personagem na medida em que transmuta para acomodar os acontecimentos e o clima para o qual ruma a ação. Existem também signos que sugerem relações familiares conturbadas, complexas o bastante para dar medo. Mas esse sentimento aqui é muito mais “puro” do que se poderia supor nesse tipo de filme. Porque sugestivamente sobrenatural.

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É quando alcança o que parece ser seu maior trunfo, ou seja, construir seu terror em cima das lembranças. O uso de fitas VHS da infância dos personagens não é apenas estilístico: ele também é responsável por dar àquele tipo de imagem, tão associado à memória, um caráter sombrio. Os objetos, brinquedos e alimentos típicos da infância, muitos deles já carregados de lendas urbanas, recebem uma carga ainda mais forte de significado e fazem com que aquilo que um dia cremos ser inocente se torne desconhecido, sombrio, obscuro. Nesse pacote, é claro, vai Sandy, também. Brilhantemente, diga-se de passagem. Tudo devidamente acomodado dentro do roteiro para surtir efeito – algo que faz lembrar o título do livro do qual o filme foi adaptado. O rol de objetos é tão amplo que faz lembrar a sala de relíquias macabras que o casal protagonista de Invocação do Mal (2013) guardava em sua casa. Agradeço a Marco Dutra por fazer do Fofão a Anabelle brasileira.

Aliás, o flerte com outros filmes do gênero também é recorrente e serve para situar Quando Eu Era Vivo neste universo, mais do que em qualquer outro que seria mais familiar ao cinema nacional. Marat Decartes está claramente inspirado por Jack Nicholson em O Iluminado (1980), inclusive na peruca e em alguns figurinos. O uso do VHS e os eventos desencadeados depois que alguém o assiste fazem lembrar O Chamado (2002). E, é claro, O Exorcista (1973) também está por ali. Particularmente, creio ser possível até enxergar a mão da Malévola, com anel e tudo, vagando pela casa, embora não arrisque dizer que foi intencional.

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De propósito, mesmo, só o fato de que o filme mete medo e não tem pudores em fazer isso. No entanto, diferente do escracho ou do gore, ou mesmo do humor, que dominava produções de terror brasileiras até aqui, Quando Eu Era Vivo vai por um caminho mais sutil, mais macabro e mais persistente, do tipo que segue na cabeça do espectador depois que a trama acaba. Uma ousadia quase exclusiva e muito bem vinda para o nosso cinema.

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é jornalista, mestre em Estética, Redes e Tecnocultura e otaku de cinema. Deu um jeito de levar o audiovisual para a Comunicação Interna, sua ocupação principal, e se diverte enquanto apresenta a linguagem das telonas para o mundo corporativo. Adora tudo quanto é tipo de filme, mas nem todo tipo de diretor.
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