Opinião :: Os (quase) 30 anos de Corisco & Dadá

Publicado por
Marcelo Müller

Corisco & Dadá (1996) está de volta aos cinemas. Trata-se de um dos mais importantes filmes brasileiros dos anos 1990, década que começou com o catastrófico governo Fernando Collor de Mello aniquilando os mecanismos de fomento à nossa Sétima Arte e terminou com um cenário bem mais promissor. Contemplar na telona as imagens e sons desse filme devidamente restaurados, numa belíssima cópia em 4K, oferece a possibilidade de pensarmos em diversas coisas.

A primeira delas é a importância da preservação da memória cinematográfica. O processo de restauração pelo qual o longa-metragem dirigido por Rosemberg Cariry passou não diz respeito somente à reestreia nas telonas, mas à garantia de que o filme estará preservado para a posteridade. Então, as próximas gerações terão a oportunidade de conferir o esplendor da fotografia de Ronaldo Nunes enfatizando a beleza da direção de arte assinada por Renato Dantas nessa trama que elabora um sertão nordestino mitificado (com algo de shakespeariano) onde o cangaceiro Corisco (Chico Díaz) teve na corajosa Dadá (Dira Paes) a sua principal companheira.

A segunda coisa à qual podemos pensar a partir do retorno de Corisco & Dadá aos cinemas é a atenção que damos (ou deixamos de dar) aos nossos grandes artistas Brasil afora. Mesmo sendo um dos principais realizadores nordestinos (há décadas), Rosemberg Cariry não goza do mesmo prestígio nacional de alguns contemporâneos sudestinos. Trata-se de um realizador bastante respeitado nos círculos cinéfilos, que poderia ser mais reconhecido além das fronteiras dos festivais especializados e das rodas de admiradores antenados. E talvez a exuberância renovada de Corisco & Dadá se encarregue de ajudar a mudar tal panorama.

Pois é evidente que nesse filme Rosemberg demonstra as credenciais características dos grandes contadores de histórias. As histórias de Corisco, o Diabo Loiro, pelo sertão em fuga da polícia possuem a grandiloquência dos mitos perpetuados como traços culturais por gerações. Da escolha do elenco, passando pela colaboração com outros grandes artistas dessa companhia encarregada de contar a genuína história de cangaço, devemos oferecer a Rosemberg aquele reconhecimento dado aos maestros.

Todo filme é um documento de sua época. E Corisco & Dadá transpira a vontade de continuar existindo do nosso cinema dos anos 1990. A história de Corisco e Dadá é perpetuada pela tradição oral. A do nosso cinema com a realização de filmes dessa envergadura. Rosemberg filma a trama de amor contada a um grupo de pescadores pela personagem de Regina Dourado com paixão. Ela é uma espécie de Xerazade de alinhava tudo com as tradições da literatura do cordel. Então, um exercício ao qual convidamos aos novos e antigos espectadores do filme é assisti-lo sempre tendo em mente os seus contextos histórico e de produção.

Trata-se de uma obra que, ao olhar para o passado reflete questões então fervilhantes no seu presente e, além disso, evoca um significativo anseio de futuro. Nós que temos o privilégio de assistir a essa aventura depois de quase 30 anos podemos fazer este exercício: tentar enxergar nas entrelinhas dele o Brasil dos anos 1990, o país que caminhava a passos largos de volta para o seu lugar de direito no cinema – com destaques internacionais, bilheterias satisfatórias e uma boa perspectiva pela frente. E tudo isso num filme que, ciente de estar falando a partir de um tempo específico, enxerga o país profundo das primeiras décadas do século passado, mergulhando num sertão de sons e fúrias.

Corisco & Dadá – Quase 30 anos depois

Corisco & Dadá de volta aos cinemas é um evento. Um daqueles que merece ser celebrado e prestigiado, especialmente num momento como o nosso, em que o cinema atravessa uma de suas tantas crises e indagações. Ele pode ser apreciado no conforto de casa? Claro que pode, porém é mais apropriado à enormidade da telona para a qual foi cuidadosamente pensado por um conjunto de artistas que então fazia parte de um esforço de Retomada. Imagine você, de uma outra para outra, ter todos os mecanismos de incentivo à sua atividade profissional sendo extintos sob a desculpa de que ela é supérflua?

Foi preciso coragem semelhante à dos valentes cangaceiros para atravessar a aridez do panorama cinematográfico transformado em terra seca por uma administração que sabia pouco de economia e ainda menos de arte e cultura. Vá ao cinema ver ou rever a história de Corisco e Dadá contada a partir de uma perspectiva não centralizada no famigerado eixo Rio-São Paulo. Marque um encontro com Chico Diaz, Dira Paes, Rosemberg Cariry para testemunhar um filme belíssimo que agora está do jeito que ele merece.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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