A internet adora uma polêmica. Quando alguém do porte de Martin Scorsese vem a público dizer que a Marvel, a franquia mais popular da atualidade, não é cinema, o rebuliço é garantido. Fãs lotaram as redes sociais atacando impiedosamente o criador de Taxi Driver (1976) e Os Bons Companheiros (1990), sites de todas as línguas repercutiram em busca de muitos cliques, poucos fazendo a pergunta correta: com base em quê veio tal afirmação? Pois Scorsese explicou, e com maestria. Você pode conferir aqui o artigo traduzido, publicado originalmente no New York Times.
Não é de hoje que Hollywood investe em sagas. Na verdade, nem é algo recente: basta lembrar dos inúmeros filmes de Charlie Chan e Tarzan, ainda na época do cinema em preto e branco, ou mesmo na trajetória de James Bond, há quase seis décadas nas telonas. Tal aposta tem origem puramente mercadológica, visando atrair o espectador com algo que ele já conhece – “eles são continuações no nome, mas remakes em espírito”, disse Scorsese. As melhores franquias até entregam mudanças de um capítulo para o outro, de forma a transmitir ao espectador a sensação de continuidade, mas no fundo não desejam mudar tanto assim. Faz parte de sua essência.
Não é de hoje também que as franquias têm ganho um peso cada vez maior dentro do american way of making movies, há muito tendo perdido o posto de filme B para assumir de vez o mainstream nos grandes estúdios. Feliz é a major que detém muitas marcas conhecidas, dirá qualquer representante comercial do mercado cinematográfico. Apostar no novo aumenta o risco de forma exponencial: não aquele artístico, que Scorsese tão bem menciona em seu artigo, mas o financeiro. Entregar ao público o que ele já conhece é mais seguro de atraí-lo de volta à sala escura do que se tiver que descobrir algo novo. Tal fórmula, clássica, tem sido aperfeiçoada nos últimos anos de forma a diminuir ainda mais a margem de erro – “pesquisas de mercado, testes de apelo público, avaliações, mudanças, mais avaliações e mais mudanças até estarem prontas para consumo”, lembrou Scorsese. Repare na palavra usada: consumo.
Não por acaso, boa parte das franquias de sucesso da atualidade são comandadas por produtores, que o diga Kevin Feige na Marvel e Kathleen Kennedy com Star Wars. Diretores consagrados passam longe de seus domínios, o objetivo sempre é atrair jovens talentos de currículo ainda enxuto para comandar seus filmes. Não propriamente por uma questão de salário, mas porque grandes nomes costumam exigir autonomia e ter voz ativa. Iniciantes tendem a ser mais maleáveis, na ânsia pela grande chance que está por vir. Assim, seguem as regras impostas pelos próprios produtores, dando coesão à franquia como um todo e, também, eliminando o risco e boa parte da autoralidade, possível apenas sob a sanção do grande chefe. Quem sai da linha é deletado sem dó nem piedade, que o digam Edgar Wright em Homem-Formiga (2015) e a dupla Phil Lord e Christopher Miller, com Han Solo (2018).
É preciso também ressaltar que esta é uma via de mão dupla. Por mais promissor que fosse à época, Christopher Nolan apenas explodiu de vez após a trilogia do Cavaleiro das Trevas. Alfonso Cuarón ainda era um diretor de público restrito quando revolucionou Harry Potter em O Prisioneiro de Azkaban (2004), Guillermo del Toro também teve sucesso com Blade II (2002). Assim que conquistaram algum renome no mercado, todos abandonaram as franquias em busca de uma trajetória mais autoral. Ou seja, as franquias não são necessariamente um fim, mas um meio para se alçar voos mais altos – o quanto serão, depende da capacidade do envolvido.
A este mecanismo quase industrial, Scorsese chama de entretenimento audiovisual – pode ser também cinema, segundo sua ótica, mas geralmente não o é. Cinema é aquele que corre riscos, mesmo o feito por diretores de assinatura cinematográfica facilmente reconhecível, como Hitchcock, Wes Anderson e Paul Thomas Anderson. Em sua ânsia em minimizar ao máximo a possibilidade de perda de faturamento, as atuais franquias têm se especializado em entregar ao espectador o que ele deseja em uma montanha-russa de emoções milimetricamente calculadas, e só. O sucesso da Marvel necessariamente passa por isso, também por característica do universo compartilhado tão bem por ela implementado.
A grande questão, e este é o lamento de Scorsese, é que o mercado cinematográfico cada vez mais tem se voltado para o entretenimento audiovisual em detrimento do cinema – ou o produto para consumo imediato no lugar da reflexão. Basta olhar para a enxurrada de avanços tecnológicos presentes nas salas escuras, dos efeitos 3D a telas gigantes e conforto VIP, passando ainda por poltronas que vibram e até mesmo fumaça que sai da tela. A sala de cinema em si tem virado um parque de diversões, de modo a capturar a atenção do espectador das mais diversas formas além do que é exibido na telona, mera desculpa para se cobrar o (caro) preço do ingresso. O entretenimento, e não o pensar, está sempre em primeiro lugar. E isto gera conseqüências.
Com uma geração que nasceu já sob a influência do YouTube, seu reflexo estético e narrativo pode ser notado em diversos filmes, como o sucesso (do streaming) A Barraca do Beijo (2018). Há quem defenda que não se deva mais medir o desempenho de um filme apenas pela bilheteria ou visualizações, mas também pelo impacto provocado nas redes sociais – que o diga Bird Box (2018), também da Netflix. O mundo mudou e, fatalmente, o audiovisual também. Não apenas sua produção mas, especialmente, a forma como é consumido pelo público atual.
Para quem defende o cinema em sua essência, como Scorsese, o momento atual é desalentador. Cada vez mais salas exibem os mesmos filmes, em um reducionismo perigoso que conduz a manada de espectadores no mesmo pastoreio, muitas vezes sem sequer ter a chance de experimentar algo diferente. Ou seja, a roda viva tem sido conduzida de forma não só a manter o atual status quo, mas a expandi-lo ainda mais. Assim se ganha mais dinheiro.
Até o término deste texto, 43 filmes faturaram mais de US$ 1 bilhão nas bilheterias mundiais. Trinta e sete são sequências ou refilmagens, apenas três foram lançados no século XX. Como se pode ver, a fórmula das franquias é extremamente lucrativa, o que não seria problema algum se tal sucesso não fosse usado para estrangular filmes e cinematografias menores em faturamento, imensos em relevância e importância. “Há pessoas nos negócios com absoluta indiferença à própria questão da arte e uma atitude em relação à história do cinema que é, ao mesmo tempo, desdenhosa e apropriativa – uma combinação letal”.
Obrigado, Scorsese.