Causou reboliço a divulgação, por parte do Globoplay, canal de streaming do grupo Globo, na última sexta-feira, 06, da produção de duas séries (uma documental, outra ficcional) baseadas na vida da vereadora Marielle Franco, brutalmente assassinada no dia 14 de março de 2018, em circunstâncias não esclarecidas pela polícia. O grande problema, ao ver de muitos atentos aos rumos do audiovisual e também à justaposição entre arte/política/negócios, é o fato da trinca responsável pelo projeto de ficção (Antonia Pellegrino, José Padilha, George Moura) pouco refletir as lutas da assassinada. São roteiristas e realizadores brancos. Será só isso mesmo? O buraco é bem mais embaixo.
Para começo de conversa, numa realidade civilizada e guiada pela humanismo, a morte de Marielle não precisaria ser filtrada, irremediavelmente, pela esfera político-partidária, pois à esquerda e à direita teriam se irmanado nas lamentações e na cobrança por respostas. Infelizmente não foi o que aconteceu. Aliás, muitos dos que dela discordavam ideologicamente ainda fazem troça da tragédia que ceifou igualmente a vida de seu motorista, Anderson Gomes. Como se alguém que pensa o mundo por outro prisma não merecesse as benesses da segurança e da liberdade de expressão. Voltando à produção, não é apenas a branquitude dos responsáveis que incomoda, mas também o fato de especificamente um deles ser uma figura pública antes alinhada às condutas questionáveis do agora ministro Sérgio Moro. José Padilha é o cabeça de O Mecanismo (2018-), série baseada nas investigações da operação denominada Lava Jato, um programa que deturpou fatos e deslocou sentenças convenientemente a fim de priorizar a marginalização do Partido dos Trabalhadores. Para tantos, então, ele ajudou a eleger Bolsonaro.
Atualmente, a gritaria nas redes sociais tem substituído o debate aprofundado. Não à toa, criamos um terreno fértil à ampla disseminação de fake news e, enquanto coletividade, não parecemos propensos à construção do saber por meio da interlocução entre diferentes perspectivas. Aparentemente, o que importa é gritar e ter sua versão considerada ideal. Então, nos resta tentar remar contra essa maré de desinformação e reducionismos, atentando às minúcias da indignação de uns, bem como aos discursos até então proferidos acerca da produção já tão polêmica.
PADILHA É MESMO UM BOM NOME?
Há poucas dúvidas quanto à qualidade do trabalho de José Padilha como realizador, goste-se dele ou não. Tropa de Elite (2007) foi o último filme brasileiro a vencer o cobiçado Urso de Ouro do Festival de Berlim. Além disso, Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora é Outro (2010) é considerado por tantos como melhor que o antecessor, visão incisiva acerca do grave problema do poder das milícias no Rio de Janeiro. Outro de seus filmes a falar sobre a segurança pública brasileira, Ônibus 174 (2000), foi recentemente escolhido pela Associação Brasileira dos Críticos de Cinema, em duas publicações, aliás, como um exemplar essencial dentro de nossa produção documental. Mas, então o que faz perdurar uma resistência tão grande ao nome dele para comandar a série sobre Marielle Franco? Fácil.
1) A falta de ética da condução de uma série como O Mecanismo, lançada em plena efervescência eleitoral, com distorções que contribuíram à desinformação e, por conseguinte, podem ter auxiliado a eleição do extremista Jair Bolsonaro. Antes ferrenho defensor do agora ministro Sérgio Moro, inclusive de sua parcialidade jurídica, Padilha, no entanto, vem tentando limpar a barra com a classe artística, recentemente dizendo-se arrependido. Um pouco tarde, né? Certamente ele tem um comportamento político-cidadão bem distinto do preconizado por Marielle.
2) O fato de ser um realizador branco. Sim, isso pesa, e muito, atualmente. Claro que brancos podem falar de pretos e vice-versa, mas são urgentes ações que garantam aos segundos espaços para proferir suas próprias narrativas. Certamente um cineasta preto, ou, melhor ainda, uma cineasta, privilegiariam singularmente pontos concernentes às lutas essenciais de Marielle Franco. Há algum tempo é bem questionável essa mercantilização das histórias de negritude levadas a cabo por uma branquitude que até aceita ceder espaço, desde que continue na proa, ou seja, desde que comande as produções. Tenho uma amiga roteirista preta, de quem preservo a identidade por não ter solicitado autorização a tempo para citá-la nominalmente, que sempre diz: “filme de preto virou moda, sou contatada apenas para dar legitimidade moral aos projetos dos brancos”.
3) Muitos reclamam – com razão – da escolha de um cineasta com gosto comprovado por um cinema de espetáculo. É evidente que o Globoplay deseja, ao acatar a sugestão de Antonia Pellegrino, um nome de peso, que seja capaz de mobilizar as massas. E, por um lado, é absolutamente necessário que a história de Marielle chegue a muitas residências. Todavia, a inclinação de Padilha por grandiloquências e afins, por, às vezes, reduzir a complexidade dos personagens em função de um (suposto) painel social amplo, pode ser um fator complicador. Afinal, a série será sobre Marielle Franco e/ou acerca de sua luta? Como esta será representada? A partir de qual perspectiva?
ANTONIA PELLEGRINO. EMENDAS PIORES QUE OS SONETOS
A roteirista Antonia Pellegrino convidou Padilha para fazer parte do projeto. Militante de esquerda, esposa do deputado federal Marcelo Freixo – aludido por Padilha nos Tropas –, ela veio a público dizer que escolheu o cineasta, entre outras coisas, por suas competências e porque ele era um dos únicos que garantiriam visibilidade internacional ao produto. Ou seja, a ordem mercadológica se coloca acima de questões concernentes às reivindicações por diversidade audiovisual. Ela disse manter a posição externada outrora, de que O Mecanismo, do seu agora colega, é um “panfleto fascista”, mas “sou progressista e não punitivista. Ele se arrependeu. As pessoas erram. E não acho que seja um erro suficiente para a gente cancelar uma pessoa”. Antonia menciona o potencial do projeto gerar represálias, e que Padilha, por conhecer tais poderes e morar fora do Brasil, pode encarar isso de maneira habilidosa. Como se diariamente artistas aqui residentes não enfrentassem essa bronca de peito aberto.
Todavia, a “explicação” que mais vem repercutindo diz respeito à questão racial. Ela afirmou que não há um “Spike Lee, uma Ava DuVernay brasileira”, fazendo menção a dois bem-sucedidos cineastas norte-americanos. Mais tarde, ao tentar emendar, acabou bagunçando ainda mais o coreto: “Sobre a frase infeliz: No Brasil não tem um Spike Lee. O fato de não haver um Spike Lee no Brasil fala sobre o nosso racismo estrutural, e não sobre supremacia branca. Não tem uma Ava DuVernay no Brasil não porque não existam diretoras negras talentosas. Mas porque existe sim racismo estrutural. Abrir espaço para diretores, roteiristas, profissionais negros é um compromisso público que fizemos. E o julgamento de estarmos comprometidos em reproduzir racismo é muito precipitado”.
Então, a Antonia Pellegrino acha correto perpetuar essa apropriação histórica das narrativas pretas por realizadores e realizadoras brancas, deixando, talvez, ao próximo(a) a tarefa de utilizar seu lugar de privilégio a fim de gerar equilíbrio nessa balança? Não combina com seu discurso político. “Suas ideias não correspondem aos fatos”, já dizia em O Tempo Não Pára o cantor Cazuza.
REPERCUSSÕES
As repercussões foram imediatas. O professor Silvio Almeida, doutor em direito pela Universidade de São Paulo (USP) e presidente do Instituto Luiz Gama, se manifestou em sua conta pessoal do Twitter: “(…) Falar de Spike Lee como se sua trajetória não estivesse conectada a uma longa tradição do cinema negro norte-americano, e este à luta antirracista e ao Movimento pelos Direitos Civis, é uma artimanha que reforça o processo de ocultação da história e da política por trás do racismo. A estratégia de referir-se a “negros únicos’ é também um modo de naturalização do racismo na medida em que passa a impressão de que, em regra, brancos estão ‘mais bem preparados” e os ‘negros talentosos’ são exceção (…) Se AINDA não há entre nós negros um Spike Lee, Jordan Peele ou Ava DuVernay, acreditem: entre vocês não há um Coppola, Robert Towne, Stanley Kubrick, Orson Welles ou Agnès Varda. É o racismo que os coloca nesta fantasia que só o antirracismo (e o anticolonialismo) pode tirar”.
A diretora/atriz Grace Passô, em sua conta do Facebook, se reportou ao PSOL, partido no qual Marcelo Freixo, marido de Antonia, é uma figura das mais proeminentes: “PSOL, a Antonia Pellegrino está fazendo um gesto que fere e destrata as pessoas que fazem as militâncias negras existirem neste país. Está dizendo que o seu desejo de popularizar a história da Marielle é tão grande, que ela mesma (num ato colonialista) convidou José Padilha (o mesmo diretor que, além de ter feito O Mecanismo existir, mercantiliza sem pudor as vidas periféricas brasileiras) para dirigir uma série ficcional sobre Marielle Franco; está dizendo indiretamente: não se preocupem porque eu vou contratar pessoas negras para “contribuírem” neste projeto, como se tratasse de “contribuição” a elaboração de narrativas negras como a que tratará daquela que integrou o PSOL. Esse gesto desqualifica lutas que tem feito e muito o PSOL crescer ao longo de sua existência. Como o partido vai reagir publicamente? Ou a arte não é política? Não é também sobre a ética das Alianças um dos discursos que estruturam o partido? Onde estão os livros da intelectualidade negra, orgulhosamente fotografados nas mãos de tantas e postados em redes sociais? Esse sequestro não pode acontecer. #PadilhaNão!”.
Por sua vez, Anielle Franco, ativista e irmã de Marielle, foi ao Twitter dar a versão da família quanto ao imbróglio: “Queremos sim que a história da Mari continue sendo contada para que o mundo nunca se esqueça. Mas uma das coisas que aprendemos nesses últimos dois anos é que não temos o controle de quem/quando/onde/como algo será falado e produzido sobre Marielle. Tanto no caso da ficção quanto do doc, fomos procuradas pelas equipes. As ideias já chegaram prontas e aconteceriam independente do nosso aval. Na série ficcional, desde o primeiro momento cobramos a necessidade do protagonismo de profissionais negras(os) e permaneceremos insistindo. Mesmo sem ter controle sobre como vai ser o resultado final, estamos acompanhando para que sejam devidamente respeitosos e coerentes com a história da Mari. E que o alcance dos dois ajude a dar visibilidade e força também para o Instituto e para o trabalho que seguimos fazendo por aqui”.
CONSIDERAÇÕES
Não podemos nos esquecer que cinema é também discurso. E que discurso, inevitavelmente, é poder. Essencial que uma narrativa audiovisual contemple, ou, ao menos, sinalize, perspectivas que a tornem legitimada de formas diversas, não apenas seja eficiente. Óbvio que Padilha pode fazer algo com a competência narrativa que lhe é peculiar, mas soa absolutamente deslocado colocá-lo para capitanear um projeto centrado numa personalidade ideologicamente antagônica à sua, sobretudo no que tange à esfera política, com uma experiência que certamente seria mais contemplada em sua complexidade com outro tipo de abordagem. Esse cinema/TV pura e simplesmente bem feito (e não é o caso dos bem-sucedidos filmes do Padilha, mas de suas recentes incursões pelo audiovisual), tecnicamente “redondinho” e produzido com uma régua para agradar a um público amplo não parece a melhor saída para lançar luz sobre Marielle Franco. E, tem outra, Padilha não é sinônimo de popularidade. Outros(as) cineastas poderiam bem tocar num público amplo, mesmo mantendo a narrativa atrelada aos princípios políticos da retratada.
Por sua vez, Antonia Pellegrino perdeu uma grande chance de contemplar substancialmente a memória de sua madrinha de casamento. Alegar proximidade com a personagem não é suficiente, como tampouco o é dizer-se ciente do racismo estrutural que obviamente atravessa também a sua branquitude e os seus privilégios. Se ela realmente estivesse preocupada em propagar uma história exemplar de ativismo, covardemente abreviada pela truculência dos poderes estabelecidos, que oportunizasse a uma cineasta e/ou a um cineasta preto a tarefa de traduzir não apenas os fatos, mas também as minúcias, a estética própria desses espaços simbólicos. Isso seria, de uma forma bonita, ecoar as reivindicações de Marielle quanto ao campo político-racial. Lugar de fala não se trata de excluir, mas conscientizar e ampliar horizontes. É preciso saber de onde se discursa acerca de determinado assunto ou grupo. E está mais do que na hora dos brancos entenderem a necessidade de partilhar o terreno desproporcional que lhes foi concedido historicamente. Ou as coisas, definitivamente, não mudam. Em suma, não basta falar, garantir publicamente a adesão das alas progressistas com discursos de empoderamento e consciência social, é preciso agir de acordo.
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Atualização: Como parece difícil, inclusive para uma galera alinhada aos movimentos políticos de esquerda, entender os motivos por trás da insatisfação com a escolha de José Padilha para dirigir a série sobre Marielle Franco, em meio a questionamentos sobre o conceito de lugar de fala com base em falácias e lugares-comuns, aí vai uma hipótese que me parece esclarecedora. O que lhes pareceria se Padilha fosse contratado para dirigir a cinebiografia de Lula ou de Brizola? Há muito o que se pensar a partir dessa resposta, hein?!
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