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Depois de praticamente dois anos, o Papo de Cinema voltou a fazer visitas a sets de filmagens. O período mais crítico da pandemia tinha imposto uma nova rotina aos trabalhadores do audiovisual e, até segunda ordem, interditou a presença de “estranhos” nos sets. Portanto, recebemos com alegria adicional o convite da Bubbles Project e da produtora Tatiana Leite para conferir os bastidores de A Herança, terror dirigido por João Cândido Zacharias e que conta no elenco com Diego Montez, da novela Rebelde (2011-2012), o francês Yohan Levy, que atuou na série norte-americana Emily in Paris (2021-), além de Cristina Pereira, Analu Prestes, Ana Carbatti, Luiza Kozowski, Jimmy London e Gilda Nomacce. Então, no dia 28 de abril pegamos a estrada no Rio de Janeiro rumo a Barra do Piraí, município situado no sul do estado fluminense, área que no passado testemunhou a passagem das tropas carregando ouro nos ciclos de exploração em Minas Gerais e no Goiás. Adiante, a cidade teve uma importante produção de café. Aliás, nosso destino (onde as filmagens aconteciam) era uma antiga fazenda cafeeira que, graças aos esforços da direção de arte, estava transformada na propriedade que motiva o retorno do protagonista ao Brasil. Aliás, do que se tratará o filme? Abaixo, temos uma ideia do que esperar por conta da sinopse divulgada pela assessoria da produção:

“Thomas, um rapaz brasileiro, vive em Berlim com Beni, seu namorado. Afastado de suas raízes há muitos anos, ele é surpreendido pela notícia da morte de sua mãe. De volta ao Brasil para enterrá-la, ele descobre que herdou, da avó que nunca conheceu, uma casa de fazenda no interior do país. Assim, Thomas vê a chance de se conectar com suas origens e descobrir mais sobre seu misterioso passado. Agora, talvez, Thomas descubra porque cresceu fugindo de cidade em cidade, e cercado de estranhos cuidados da mãe”

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Berta (Cristina Pereira), Thomas (Diego Montez) e Victoria (Analu Prestes). Foto/ Bianca Aun

COMO CADA UM ENTROU NO PROJETO?
Chegamos na hora do almoço (e aproveitamos para filar a bóia, claro). Enquanto todos se preparavam para voltar aos trabalhos – numa equipe que, ao todo, tem cerca de 60 pessoas –, conseguimos um tempo para conversar com os destaques da empreitada. Falamos com o diretor, João Cândido Zacharias, os jovens atores Diego Montez (intérprete de Thomas, o protagonista); Yohan Levy (que vive Beni), Cristina Pereira e Analu Prestes, atrizes que encarnam as tias macabras que vivem no casarão. A primeira curiosidade foi relativa à entrada de cada num no projeto ambicioso proposto pelo diretor, conforme ele contou: “Eu e a Tati começamos tudo. Ela também adora filmes de terror e me propôs o desafio. Então, a sementinha de uma ideia foi crescendo ao longo de oito anos. Esse processo começou em 2014”. Pelas respostas de cada um dos quatro atores entrevistados, o critério foi diferente para jovens e veteranas: os primeiros fizeram testes, enquanto as segundas foram convidadas, sobretudo, tendo em vista trabalhos pregressos.

“Fiz muitos testes (risos). Eles tinham várias exigências para escalar o Thomas. Na primeira entrevista, preenchi um formulário com meus interesses. Achei muito legal. Depois, teve uma entrevista em que contávamos uma história de terror. Quando recebi o roteiro, adorei o fato de que, por acaso, o casal protagonista era gay. Acho ótimo isso de juntar os universos”, disse Diego. Já Yohan partiu o desejo de trabalhar no Brasil e em português – nota da edição: ele fala um português praticamente fluente, tanto que a conversa foi na nossa língua. “Descobri o Brasil há oito anos, cheguei a morar por três meses por aqui. Na França existem festivais dedicados a filmes brasileiros e num deles encontrei um diretor brasileiro, o Ricky Mastro. Falei que adoraria atuar no Brasil. Ele me indicou para o diretor do elenco deste filme. Tive sorte, pois eles procuravam alguém com meu perfil. Depois disso, fiz uns sete testes, durante oito meses, e fui escolhido”, afirmou Yohan, visivelmente animado por estar no Brasil.

Cristina Pereira, veteraníssima e verdadeiro patrimônio do teatro, da TV e do cinema brasileiro, falou que recebeu um convite e precisou ser convencida, pois não tinha intimidade com o terror: “Recebi o convite do João. Conversamos por telefone e depois pelo Zoom. Li o roteiro numa tacada só, achei instigante e muito bem escrito. Mas, sou medrosa, não faço parte do público do cinema de terror. Meus filhos adoram, meu ex-marido ama, mas nunca gostei, pois realmente tenho medo. Então, achava que era pouco indicada para o papel. Como o João é uma pessoa absolutamente encantadora, interessante e inteligente, e o roteiro era muito bom, fiquei na dúvida. Mas reafirmei que não me achava apropriada. Tenho medo, por exemplo, dessas coisas de seitas secretas. Me coloquei totalmente no lugar de alguém não apta. Ele me ofereceu subsídios, tipo filmes para ver, artigos do Sigmund Freud, e me deu uma base de estudo. Me deu um livro maravilhoso do Stephen King, A Dança Macabra. Então, mesmo que eu achasse que não tinha capacidade para a missão, ele me convenceu a fazer”. Por sua vez, a não menos veterana Analu Prestes, foi a primeira a ser convidada para viver uma das irmãs: “Recebi o convite direto do meu agente, pedi para receber o roteiro. Nunca tinha feito filme de terror e nem assisto, até porque sou bastante medrosa. Li o roteiro de uma vez só. Achei muito bem escrito. Se tratava de um terror mais psicológico. Fazer uma dupla com uma atriz querida também me atraia, ainda mais num gênero no qual nunca trabalhei. O João entrou em contato comigo, adorei ele de cara e aí topei fazer”. Detalhe: as irmãs parecem feiticeiras ou algo semelhante.

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Victoria (Analu Prestes), Berta (Cristina Pereira), Thomas (Diego Montez) e Beni (Yohan Levy). Foto/Bianca Aun

RELAÇÃO PRÉVIA COM O HORROR
Fomos instruídos a não revelar detalhes sobre o figurino, a fim de não estragar qualquer surpresa. Por isso este artigo não conterá tantas especificidades sobre o que vimos no set de A Herança. Voltando às conversas, percebemos que os atores e atrizes não vêm de uma tradição com o gênero. Aliás, curiosamente, o membro do elenco que mais possui relação prévia com o terror é Gilda Nomacce, mas ela não estava no set. E, mais curiosamente ainda, algumas peças-chave dessa equação se definiram como medrosos de carteirinha, como Cristina Pereira sinalizou um pouco antes. Diego seguiu nessa toada: “Sempre fui cagão, tinha medo de tudo (risos). Mas, de uns anos para cá, comecei a criar o hábito de curtir uns filmes de terror psicológico, tipo os do Mike Flanaghan. Adoro Corra! (2018), Nós (2019). Mas, acho que antes disso, terror eu só curtia quando era slasher”. Já Yohan afirmou que até gosta de filmes do gênero, mas nada brutal e gráfico: “O terror não é um gênero que conheço bem, pois nunca consumi muitos filmes de terror. Claro que vi alguns, mas o que gosto é quando o terror é implícito. Nunca me atraiu o terror brutal, mais explícito. Para mim, o nosso não é apenas um filme de terror, mas vai além das amarras do gênero”.

E claro que perguntamos ao cineasta João Cândido Zacharias sobre sua relação com o gênero, bem como quais seriam as suas influências: “O cinema de terror trabalha como códigos pré-estabelecidos. Como sou cinéfilo, tenho obras de referências. De modo geral, sou influenciado por O Exorcista (1973), O Silêncio dos Inocentes (1991) e por toda a filmografia do John Carpenter. Mas, para esse filme, busquei algo do cinema italiano, dos filmes de Dario Argento, Lucio Fulci e Mario Bava. Tem um filme do Dino Risi que associo com o nosso que é o Almas Perdidas (1977) (…) Filme de terror, bem como literatura do gênero, é uma coisa que assisto e gosto desde criança. Gosto de todos os tipos de filme, mas posso dizer que o terror é o gênero no qual mais me sinto em casa. Temos tradição no Brasil de um cinema de arte muito ligado ao realismo. Acho que até por isso ainda não conseguimos nos desenvolver tanto nesse sentido, pois as obras de gênero tendem a lidar menos com a realidade na forma de criar. Às vezes é difícil de viabilizar um projeto desses. Mas, acho que estamos com muita coisa boa acontecendo”.

MESCLA DE JOVENS E VETERANOS
Uma das coisas que mais nos chamou a atenção desde o começo da nossa visita ao set de A Herança foi a juventude da equipe. E a produtora Tatiana Leite celebrou essa característica, enfatizando que foi um desafio montar o time até mesmo por conta da demanda dos serviços de streamings por mão de obra qualificada – o que esvazia o mercado de opções mais imediatas. O ponto positivo disso é que a equipe do longa-metragem é formada por profissionais que não necessariamente trabalham e/ou moram no eixo Rio-São Paulo. “A equipe é realmente bem jovem. Está acontecendo uma coisa maravilhosa, ainda mais para um realizador de primeira viagem como eu, que é ter uma equipe criativa em sintonia. Está todo mundo bastante conectado. Obviamente, os mais jovens do elenco já estão mais abertos para fazer um filme assim. Mas, fiquei positivamente impressionado como as pessoas mais experientes do elenco também compraram a ideia do filme muito rápido”, afirmou o diretor. Conversamos também com os quatro membros do elenco (não à toa, dois jovens e duas veteranas) sobre esse intercâmbio que certamente traz benefícios para todos. Os rapazes celebraram a oportunidade de aprender com Cristina Pereira, Analu Prestes e com o diretor, enquanto as intérpretes ressaltaram a capacidade desses jovens encarregados de gerar A Herança.

“Gosto muito de aprender com a contracena, independentemente da experiência do outro. Meu grande encantamento é sugar as histórias da Cristina, da Analu e da Ana. Está sendo um vestibular para mim. É lindo que esse jogo sempre é de igual para igual. Elas são tão generosas. Eu era um fã de Vamp (1991-1992), então estar aqui com a Cristina Pereira para mim é uma loucura”, disse o protagonista Diego. Por sua vez, Yohan celebrou o diretor João Cândido Zacharias: “Já filmei na França, estive em produções norte-americanas e também em produções espanholas, pois tenho facilidade com os idiomas. Diria que a produção no Brasil é bem calorosa, algo que gosto muito do país. Esse calor é inerente ao brasileiro e rompe as barreiras entre as pessoas. O João é um diretor incrível. Gosto de curtir cada momento e aproveitar para compartilhar as minhas várias curiosidades”.

“Está sendo incrível trabalhar com uma equipe jovem, aliás, essa geração está ocupando espaços com muito talento”, disse Analu Prestes. “Às vezes percebo que os mais jovens me olham com certa reverência (risos). Tive a sorte de participar de projetos interessantes, por exemplo, de fazer o Mar de Rosas (1977) e trabalhar com o Hector Babenco em O Rei da Noite (1975), o primeiro longa dele. Sou atriz do teatro, mas tenho estado mais no cinema. Desde 2014 não faço teatro. Acho encantador trabalhar em cinema. Esses jovens são muito preparados. Fico impressionada com a capacidade deles e me perguntando se, na idade deles, eu tinha essa capacidade. Todos têm vontade, garra e qualidade. Estou muito feliz de ter esse encontro produtivo na minha velhice”, afirmou Cristina.

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Thomas (Diego Montez). Foto/Bianca Aun

CENÁRIOS E PERSONAGENS
Como citado um pouco acima, não podemos revelar muitos detalhes do que vimos no set de A Herança. Mas, uma coisa saltou aos olhos foi o trabalho da direção de arte para transformar um casarão típico daquela região cafeeira – todo branco com aberturas azuis – num cenário horripilante, com direito a fotografia macabra da personagem de Gilda Nomacce (quem será ela na trama?) e uma cripta com um bizarro caixão de pedra. Quem nos guiou pelo cenário, fazendo questão de nos apresentar a cada membro da equipe que nele trabalhava, foi a produtora Tatiana Leite. E ela foi firme em não contar nada que pudesse nos dar uma vaga ideia do que aconteceria naquele lugar. De todo modo, a excelência da cenografia (teias de aranha falsas, paredes minuciosamente descascadas, quadros pendurados, simulação de marcas do tempo, objetos cuidadosamente alocados, etc.) deixaram a curiosidade no ar.

De volta à conversa com o elenco, perguntamos a Diego Montez, Yohan Levy, Cristina Pereira e Analu Prestes o que esperar de seus respectivos personagens: “O Thomas é uma vítima diferente dentro do universo dos filmes de terror. Ele é uma vítima do mundo, antes de começar a trama. É um garoto que não tinha ligação com a mãe e é muito solitário. O Thomas tem severa dificuldade para se abrir, se enturmar, acolher e ser acolhido. Desde o começo me conquistou porque nele há vários aspectos de terror. O filme tem muito signos e gosto bastante de explora-los. E gosto também do fato do relacionamento gay não gerar conflito. Para mim é um avanço enorme”, disse Diego. “O Beni ama o Thomas e tem de estar aqui para dar suporte a ele nesse momento de reconexão com a história da família. Ele pede para o Thomas vir ao Brasil. O Beni tem uma generosidade de acompanhar seu namorado nesse processo. Mas, ao mesmo tempo, ele nota coisas que o Thomas não nota. Ele precisa alertar o Thomas, mas com o cuidado de não comprometer esse processo de reconexão familiar”, afirmou Yohan. 

“Foi fácil construir um equilíbrio com a Cristina. Quando temos uma parceria que sabe jogar, as coisas ficam bem mais fáceis. Está sendo muito divertido, tanto que às vezes tenho de segurar para não rir quando olho para a cara dela. Tive de decorar uma oração em húngaro, algo dificílimo. Mas, agora que está decorado, está tudo bem”, disse Analu, se restringindo a falar da troca com a colega, claramente evitando revelar algo que pudesse estragar surpresas. Já Cristina foi um pouco mais a fundo ao falar de sua personagem:  “Me atrai o fato de ela ser uma mulher que cuida da casa. Ela tem uma afetividade grande, é maternal, mas ao mesmo tempo tem um quê de feiticeira. Essas irmãs querem que o Thomas volte, têm saudade. Existe ali uma afetividade, claro, num contexto de horror. Os personagens são muito atraentes, o mistério também. É minha primeira experiência no terror, então é muito interessante que no começo trabalhamos com o distanciamento. Estamos trabalhando com o mundo da fantasia. Como eu disse, sou medrosa. Fazer o filme é uma maneira artística e poética de confrontar meus medos”.

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O cineasta João Cândido Zacharias. Foto/divulgação

HORA DE DAR TCHAU
Acompanhamos a filmagem de uma cena que envolvia parte do elenco principal. João Cândido Zacharias acompanhou pelo monitor, recorreu aos demais membros da equipe para garantir que todos os departamentos estivessem afinados e repetiu o “ação” e o “corta” enquanto não se sentiu satisfeito com o conteúdo da ação. Deu para perceber a procura minuciosa de um tom específico para uma cena que mostra o confronto entre o estrangeiro e seu namorado herdeiro de uma casa com ares macabros. Nessa cena também vimos Jimmy London caracterizado como um caseiro bizarro, certamente criando uma presença imponente e ameaçadora. Mas, já era a hora de rumarmos de volta ao Rio de Janeiro, então nos despedimos de todos e partimos em direção à Cidade Maravilhosa. Agradecemos à produtora Tatiana Leite pelo convite e à Atômica (representada pela jornalista Caroline Borges), assessoria que nos ciceroneou na visita ao set de A Herança. O filme ainda não tem previsão de estreia, mas já estamos muito curiosos.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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