O Papo de Cinema pegou a estrada, mais especificamente a ponte aérea Rio de Janeiro/Curitiba, para visitar o set de Águas Selvagens, longa-metragem produzido (no lado brasileiro) pela dupla Rubens Gennaro e Virginia Moraes, da Laz Audiovisual. Contando com atores e técnicos brazucas, argentinos e uruguaios, principalmente, essa coprodução Brasil/Argentina, falada quase totalmente em espanhol, está sendo dirigida pelo argentino Roly Santos, experiente realizador com diversos créditos, entre eles Crisol (2011) e New Dubliners (2016). A base é o roteiro de um conterrâneo seu, o premiadíssimo Oscar Tabernise, outro que possui larga bagagem no cinema e na televisão. O protagonista é vivido por Roberto Birindelli, uruguaio radicado no Brasil. No núcleo central, também estão as atrizes brasileiras Mayana Neiva e Leona Cavalli. Entre os demais atores, os argentinos Juan Manuel Tellategui, Mario Paz, Daniel Valenzuela e Mausi Martinez; o uruguaio Nestor Nuñez; os brasileiros Allana Lopes, Anastácia Custódio, Luiz Guilherme, Hélio Cícero, Giuly Biancato, entre outros. Enfrentando as temperaturas baixas do inverno paranaense, partimos em direção à Tijucas do Sul, 40 quilômetros distante de Curitiba, onde os trabalhos aconteciam.

Roberto Birindelli – Foto Pedro Rodríguez

A rodagem de Águas Selvagens aconteceu primordialmente no Hotel La Dolce Vita. O espaço serviu, portanto, de locação e base à equipe. A área ampla, cercada por uma natureza exuberante, ainda guarda o charme especial de ter uma inspiração cinematográfica. Conforme o nome denuncia, há uma paixão por Federico Fellini, vista em tudo, inclusive nas paredes, nos nomes dos ambientes e até na senha do wifi – alusão a um ator que colaborou decisivamente com o cineasta italiano. Cada cômodo do hotel foi batizado com algo referente à Fellini. Portanto, o cinema se encontrava “em casa”. Tivemos a sorte de chegar ao lugar exatamente na manhã em que, por questões técnicas e logísticas, precisou-se cancelar a filmagem matutina. Sorte, pois nos deu a oportunidade de conversar com o elenco tranquilamente, não com pressa, entre uma tomada e outra, ou na hora do almoço, como é corriqueiro em visitas a sets. Então, ao redor da lareira – só assim para ficar “de boas” numa temperatura menor que cinco graus centígrados –, debatemos com os atores e atrizes, entre outras coisas, os pormenores e as delícias de trabalhar numa coprodução com tantas pessoas de países diferentes. O resultado você confere agora e, adiante, na parte dois.

 

COMO OS ATORES CHEGARAM AO FILME?
“Na verdade, nem ia fazer o protagonista, mas outro personagem que tinha, no máximo, umas três cenas. Como sempre, eu estava enfiado em mil projetos, fazendo novela, vindo de um longa filmado no Panamá, prestes a ir para Los Angeles trabalhar noutro filme. Além disso, estou nas séries Um Contra Todos (2016-), A Vida Secreta dos Casais (2017-) e Irmãos Freitas (2018-). Então não dava tempo. Aí o longa de Los Angeles atrasou. Pedi liberação da novela, ajeitei a agenda, e deu para fazer o Águas Selvagens”, disse o protagonista Roberto Birindelli.“Foi através uma ligação do Paulo Letier (diretor de elenco). Engraçado, pois perguntei como tinha chegado a mim e ele respondeu: ‘menina, mas você é conhecida’ (risos). Fiquei super feliz com o convite. Já tinha realizado alguns trabalhos de coprodução. Tenho muito amor pelas histórias latino-americanas”, afirmou Mayana Neiva, dando o pontapé inicial para entendermos a importância do diretor de elenco Paulo Letier nesse processo de montagem do time. Vários colegas dela citam-no como responsável por suas escalações. Ele é um sujeito obviamente muito querido no meio, cuja solicitude acompanhamos de perto nas cerca de 24 horas que permanecemos no hotel.

”Fiz Cafundó (2005), com a mesma produtora, e conheci a equipe desse filme. O convite veio através do Gennaro, da Laz Audiovisual, e do Paulo Letier, o diretor de elenco. Para mim é muito especial, pois o longa se passa na Tríplice Fronteira. Nasci numa cidade pequena, quase dela, em Rosário do Sul, no Rio Grande do Sul. Fica a uma hora do Uruguai. Quando criança e adolescente viajei muito por essa região.”, disse Leona Cavalli. Já Anastácia Custódio, que interpreta uma mãe em sofrimento, também destaca o papel de Paulo em sua escalação: “Conheço o Paulo, o diretor de elenco. Já fizemos algumas outras coisas, principalmente curtas. E ele foi o produtor do espetáculo teatral que integro atualmente. Quando surgiu essa produção, ele me chamou para fazer o teste. Como estou alucinada por cinema há um tempo, queria muito fazer e fiquei empolgada com a possibilidade”. “Recebi uma mensagem do Paulo Letier convidando para fazer parte do filme, o que me deixou muito feliz. Foi uma surpresa agradável. Nunca havia trabalhado aqui em Curitiba com cinema, ainda mais numa coprodução”, afirmou Luiz Guilherme, intérprete de um contraventor, chave à trama do filme.

Mayana Neiva – Foto Pedro Rodríguez

E OS PERSONAGENS?
Agora, vamos deixar que os próprios intérpretes falem sobre seus respectivos personagens e nos deem uma ideia do que esperar dessa trama noir, ao que parece, cheia de reviravoltas.

ROBERTO BIRINDELLI (personagem LUCIO GUALTIERI – EL TANO)
“Ex-policial, separado. A ex-mulher e a filha não falam com ele. Ele está fazendo bicos para pagar pensão. Está fudido. O que sobrou? Um bico na Tríplice Fronteira. Gualtieri é apresentado falando através de um perfil falso de Facebook com uma menininha. Você pode pensar o que quiser. Como em todo filme noir, no entanto, nada é o que parece. Ele vai desvendar um crime, um assassinato. A câmera cola nele, ou seja, o que o protagonista descobre, o espectador descobre junto. Ele encontra toda uma rede de tráfico de crianças”.

MAYANA NEIVA (personagem RITA AZUCENA DE BENITEZ)
“É uma mulher que tem um filho morto numa circunstância X. Ela volta para se vingar. É uma figura que tem uma história densa e, pelo que pesquisei, muito comum nesse lugar”.

LEONA CAVALLI (personagem DEBORA SHUSTER)
“Minha personagem é uma prostituta que engravida e a partir daí entende o quanto está envolvida nisso do tráfico infantil. É uma figura sofrida, absolutamente real, possível, que existe. Interpretar ela nesse filme revela um pouco dessa situação”.

JUAN MANUEL TELLATEGUI (personagem FÁBIAN)
“Ele trabalha num dos hotéis em que acontece boa parte do filme. Fica na recepção, mas faz algumas outras coisas, especula o que acontece com os hóspedes e acaba sabendo demais. É uma pessoa correta, formal. Acredito que esse personagem tem o percurso do herói trágico. O grande erro dele é se apaixonar. A partir disso ele começa a perder o norte”.

Juan Manuel Tellategui -Foto Pedro Rodríguez

DANIEL VALENZUELA (personagem FABRO)
“Fabro conta parte da história, não toda. Ele lida com todo tipo de questão, de prostituição a drogas. Faz boa parte das coisas para que certo poder não escape de suas mãos. É um personagem sombrio. Pedi ao diretor para apresentar pequenos vislumbres de luz, até um pouco de humor, embora o cotidiano dele seja ver cadáveres e mandar extorquir pessoas”.

ALLANA LOPES (personagem BLANCA)
“Ela tem 16 anos, mas tem uma sexualidade prematura. Naquele local isso acontece, mesmo. Como atriz se trata de abordar uma realidade muito diferente da minha, então foi bem gostoso experimentar isso”.

ANASTÁCIA CUSTÓDIO (personagem MÃE DE BLANCA)
“Minha personagem tem uma importância não em termos de quantidade de cenas, mas ela representa toda mãe que vê a filha indo por um caminho complicado e não pode fazer algo. O conselho não resolve, falar não adianta. Isso gera o desespero em quem está de mãos amarradas. Mulher sofrida, ela vai pedir ajuda ao santo local, o El Muertito. Sente essa culpa que parece inerente à maternidade, é uma figura doída, triste”.

LUIZ GUILHERME (personagem DALMÁCIO QUIROGA)
“Aquela região da Tríplice Fronteira é complicada, onde nem sempre as coisas correm legalmente. Meu personagem é um dos chefes dessa região. Ele lida com contrabando de armas, venda de crianças, com esse tipo de coisas. Pede a um investigador, interpretado pelo querido Roberto Birindelli, para verificar a morte de seu irmão. Mas esse contratado começa a descobrir outras coisas do passado do Quiroga”.

Foto Pedro Rodríguez

O QUE MAIS CHAMOU A ATENÇÃO DE CADA UM NO ROTEIRO
“Quando li o roteiro pensei ‘que foda’. Roteiro argentino é uma coisa. Por que a diferença? Porque é um cinema de atmosfera, sem ligação com a televisão. É cinema, mesmo. É diferente ver um filme pensado com a lógica de cinema. O argentino tem muito do francês e aqui estamos no noir, com crimes, situações-limite, personagens dúbios, um policial fudido (risos). Há peripécias que intentam desorientar o espectador. Trabalhamos com suas suposições. A partir daí, você entra em contato com seus próprios preconceitos. O filme vai falar de coisas duras, mas também de elementos humanos”,  afirmou Roberto Birindelli. Já Mayana apontou o desenho dos personagens como fator imprescindível à sua adesão: “Essa circunstância e a condição de nenhum personagem ser vencedor. Estão todos no limite. Há um desejo de exploração desses subtextos. A discussão é muito interessante, a do tráfico humano na Tríplice Fronteira, mas há um desafio artístico, pois não existem mocinhos e bandidos. É uma história sobre perdedores, pessoas que sobrevivem”.

“Adorei o roteiro. Há ali um universo muito particular, com personagens bem delineados. Essas figuras são humanas. Acabamos no identificando com pessoas que não são ideais. Estamos acostumados a ver personagens melhores que a gente, mas nesse caso eles não são. Isso me chamou a atenção, além das temáticas abordadas. A trama vai avançando e o roteiro nos dá alguns indícios. Esse mecanismo de não explicitar de cara faz com que a leitura do texto seja apaixonante. Estou muito curioso para ver o filme pronto e conferir isso através da poética da narrativa do cinema”, disse o argentino Juan Manuel Tellategui.

Foto Pedro Rodríguez

Leona Cavalli, experiente intérprete gaúcha, aponta o paralelo com a realidade como motivação: “O filme mostra uma realidade que, infelizmente, está cada vez mais presente nessas fronteiras. Há um número inacreditável de crianças ficando grávidas. Esse foco no tráfico infantil é um tema pouco abordado no cinema. Ele tem a possibilidade de ir a lugares que o teatro e a TV não alcançam. Trazer essa realidade à tona é uma das coisas mais fortes do roteiro”. “Cada ator tem seus métodos, mas acredito que todos começamos pelo que nos é mais cômodo. Busco dar característica aos personagens. Aqui as figuras são sombrias, mas não o tempo todo, pois há matizes distintos. Meu personagem tem uma questão com o poder. Isso é o que me chamou a atenção inicialmente. As situações vão definir como ele vai reagir. Esse tipo de dinâmica me faz questionar constantemente o que faria o Fabro diante de cada demanda”, afirmou o argentino Daniel Valenzuela.

“Gosto bastante de filmes policias. A trama é muito boa, bem escrita. Não há violência demonstrada no meu personagem. Há cinismo, um conhecimento de tudo, mas ele não é um macho enfurecido, um chefe de PCC da vida. Ele tem um cultivo de ervas, de mate e chás, na fazendo onde vive. E ele é culto, não um troglodita”, segundo Luiz Guilherme. Por fim, a jovem Allana Lopes sinalizou a surpresa como motivação: “O que mais me atraiu é que os personagens não são o que parecem inicialmente. Eles têm conflitos e gradativamente você vai os perceber, sem julga-los. Amei minha personagem de primeira”.

O clima nessa rodada inicial de conversas foi absolutamente leve e divertido. Por permanecerem um bom tempo no mesmo local, convivendo não apenas no período das filmagens, mas também nos de folga, os atores e atrizes estabeleceram um vínculo visível. Roberto Birindelli andava para cima e para baixo com a cuia e erva mate, sorvendo o chimarrão para espantar o frio, oferecendo-o aos presentes enquanto fazia piadas e garantia a manutenção de um clima descontraído. Vimos jovens intérpretes convivendo com colegas tarimbados de maneira harmoniosa. Até então, não encontramos Roly Santos, o diretor que, diferentemente do elenco, não estava dispensado dos trabalhos da manhã. Soubemos adiante que ele conduzia a equipe na montagem do cenário que serviria de cabaré à cena rodada à tarde. Conseguimos conversar com o diretor apenas nos 45 minutos do segundo tempo da nossa visita ao set, quando já se aproximava a hora de partir. Mas, para conferir esse Papo de Cinema com Roly Santos, bem como o relato da cena que vimos, a conversa com o experiente produtor Rubens Gennaro, além de mais bate-papo com o elenco, você vai ter de ficar ligado na segunda parte da nossa visita ao set de Águas Selvagens, que irá ao ar em breve.

(O jornalista visitou ao Paraná a convite da Laz Audiovisual e da Lide Multimídia, a quem aproveitamos para agradecer)

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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