Ao descobrir que estava com câncer de mama, a produtora curitibana Clélia Bessa, uma das mais prolíficas e atuantes do cinema brasileiro, decidiu lidar com isso de modo inesperado: criou um blog chamado Estou com Câncer, e Daí?, no qual dialogou constantemente com um público leitor cada vez mais numeroso. E o mundo, inclusive o da comunicação, era bem diferente quando isso aconteceu, em meados de outubro de 2008. Na época, as redes sociais engatinhavam e os blogs eram uma enorme tendência (quem é da época vai se lembrar). Diversos anos se passaram desde então, a batalha de Clélia contra essa doença maldita teve um desfecho feliz, e agora a história vai chegar aos cinemas no filme Câncer com Ascendente em Virgem. Clélia chamou uma amiga de longa data para comandar esse projeto pessoal, a experiente Rosane Svartman, profissional que faz parte do time de realizadoras fundamentais à Retomada do cinema brasileiro nos anos 1990, depois que a nossa produção entrou em estado de coma por conta da irresponsabilidade administrativa do governo Fernando Collor de Mello – que, com uma canetada vil, extinguiu ministérios, Embrafilme, secretarias e outras peças do ecossistema do cinema do Brasil. Mas, o propósito dessa matéria é falar de vida, então bora conferir o que aconteceu na visita que o Papo de Cinema fez ao set de Câncer com Ascendente em Virgem, filme que deve estrear em 2024?

Rosane Svartman e Clélia Bessa. Foto/Raccord Produções

Tendo a própria Clélia Bessa à frente da produção, o longa é protagonizado (e coroteirizado) por Suzana Pires, intérprete de Clara, professora de matemática bem-sucedida como influenciadora digital, mas que vai aprender sobre a nossa falta de controle ao receber o diagnóstico de câncer de mama. Marieta Severo interpreta a sua mãe, figura fundamental à trama; Fabiana Karla vive a amiga que faz tratamento paliativo e encara sua batalha com positividade; Ângelo Paes Leme interpreta o ex-marido de Clara; e Julia Konrad vive uma cirurgiã plástica, atual namorada do ex-marido da protagonista. Fomos convidados a acompanhar a filmagem de uma cena em que Clara recebe a mãe em casa (de modo inesperado). Era um dia calorento no Rio de Janeiro e tivemos um tempinho entre os trabalhos da manhã e da tarde para falar com parte do elenco e da equipe produtiva/criativa. Nosso primeiro encontro foi com Clélia Bessa, produtora da empreitada e personagem que inspirou a história. “Quando fui diagnosticada, imaginava que não iria morrer, que tinha boas chances de sobrevivência, como na maioria dos casos de câncer de mama quando diagnosticados precocemente. Mas, fui em busca de uma literatura que me ajudasse a passar aquele momento para não ficar enchendo o saco dos meus amigos, porque você só fala nisso, né? Resolvi começar um blog, pois isso estava muito em voga naquele momento. Quis escrever para compartilhar com outras pessoas as minhas experiências. Aí foi dando certo, fui me animando. Além de extravasar, comecei a ter uma receptividade de outras pessoas. Então, foi um diálogo muito bom. Foi uma boa companhia para mim durante o tratamento”, disse Clélia.

ABORDAR O TEMA COM CERTA LEVEZA
Algo enfatizado tanto por Clélia quando pela cineasta Rosane Svartman, com quem conversamos logo em seguida, foi o fato de que esse projeto sobre um tema tão espinhoso e que afeta de modo dramático tantas pessoas precisava conter certa leveza. O próprio blog de Clélia (no ar até hoje) dita esse tom de dramédia, em que ora o bom humor prevalece, ora sobressaem as observações mais densas sobre a condição de alguém que recebe um diagnóstico tão assustador quanto o de um câncer. “O filme fala de uma doença, mas também sobre viver a vida. Ele pretende festejar e celebrar o viver, lançar um novo olhar para esse cotidiano. A relação da protagonista com a mãe, com a filha, a relação com os demais personagens. Esse filme lança esse olhar sobre o cotidiano, mas falando de um tema difícil. É um tema que a gente procura tratar com muita responsabilidade, uma história importante de ser contada. E não existe história sem o diálogo com o público. Então, para que esse diálogo aconteça, sempre fico pensando onde está o humor, onde está a graça, onde está a emoção, onde é que a gente toca e conversa com as pessoas”, disse Rosane que completou: “Leveza é a palavra-chave. Mas, ela não significa ser pueril, banal, pelo contrário. É preciso ter essa leveza para tratar de um tema tão complexo, mas com a responsabilidade também de conferir emoção e peso onde eles devem existir. É como na vida. O blog da Clélia você lia rindo, daqui a pouco se emocionava, ela trazia um humor para esse momento desafiador, talvez o mais difícil de sua vida. Para mim, como diretora, o desafio é tentar traduzir esse tom do blog para o filme”. Portanto, pelo que vimos no set de Câncer com Ascendente em Virgem, não devemos esperar um dramão cem por cento lacrimoso, mas um filme em que o drama e a comédia conviverão de modo harmonioso para fazer jus ao teor do blog e também das experiências especificamente femininas nessa dura jornada. “Me identifico com a personagem em vários lugares, por exemplo num arco em que ela se conecta com a sua feminilidade. Consigo entrar muito na pele dessa mulher. Mas, também acredito que na arte precisamos encontrar pontes de empatia, mesmo quando a história está muito distante da gente. Dito isso, nessa produção, ter uma equipe com muitas mulheres é importante. Me sinto muito próxima das personagens em várias situações. O fato de eu ser uma mulher, sim, me aproxima de um jeito diferente dessas mulheres, embora isso não possa ser uma prisão”, afirma Rosane.

Foto/Raccord Produções

A PROTAGONISTA
Antes mesmos de conseguirmos trocar umas palavrinhas com o elenco, os papos com Clélia e Rosane enveredaram pelo envolvimento da atriz/roteirista Suzana Pires no projeto. Célebre por seus papeis cômicos, aqui ela encara o desafio de compor (e escrever) uma personagem com tons bastante dramáticos, sendo inclusive levada a raspar o cabelo para representar uma das etapas mais tensas do tratamento da protagonista. “O filme foi baseado no blog, mas a gente precisava de um distanciamento, né? Tenho muito respeito pelo trabalho de qualquer ator, profissional que precisa de toda liberdade. E Suzana teve toda a Liberdade para fazer a Clara que ela quisesse. Nunca indiquei que as coisas deveriam ser assim ou assado. Até me recolhi um pouco do papel de produtora para haver esse distanciamento. Mas, tem o outro lado. Ela chegou num ponto que emocionou profundamente. Às vezes não consigo assistir às cenas inteiras, então dou uma recuada”, afirmou Clélia. “A Suzana tem uma latitude imensa na atuação, então vê-la fazendo o drama me emociona muitíssimo. A gente fica o tempo todo calibrando”, disse Rosane.

Entre uma cena e outra, com uma bem-humorada assistente de direção nas proximidades apenas aguardando o fim da conversa para carregar Suzana à próxima cena, conversamos com a atriz/roteirista sobre o desafio em Câncer com Ascendente em Virgem. “Meu impacto inicial foi a leitura do blog. O que mais me impressionou foi como a Clélia teve o recurso do humor, do ‘eu estou viva’ para passar por tudo isso. É essa mensagem que queremos deixar com o filme. A versão final do roteiro me impacta porque chegamos num lugar muito bem amarrado e equilibrado entre o drama e a comédia”. E, além de tudo, a missão de Suzana tem um componente diferente, pois ela interpreta uma personagem inspirada na produtora do filme, em alguém que está muito presente no dia a dia das filmagens. Perguntamos a ela como foi lidar com essa responsabilidade. “Me senti honrada quando a Clélia me convidou, justamente porque estamos tratando da história dela. Conheço a Clélia há alguns anos e sempre a admirei, pois ela é séria, engraçada, sensual, um mulherão. Então, é uma alegria ela ter me dado esse espelho do tipo ‘me vejo em você também’. Mergulhei de cabeça nesse processo. Há coisas dela que carrego para a personagem e, claro, outros elementos que criamos. Tudo o que queremos é interpretar personagens com muitas camadas e a Clélia é essa mulher (…) o roteiro tem um homem na equipe, a maioria é feminina. E isso foi fundamental, pois conseguimos acessar lugares que apenas mulheres conseguem. Um set com muitas mulheres, inclusive a sensível liderança feminina da Rosane, com muita harmonia e sem perder a autoridade, também é fundamental”.

Bastidores das filmagens. Foto/Raccord Produções

POR FIM, MARIETA
Visitar um set de filmagem é uma arte que a gente vai aprimorando com o tempo e a prática. A estrutura da rodagem dos filmes é, geralmente, como uma máquina com diversas engrenagens operando em sincronicidade para as coisas acontecerem, para não haver atrasos, essas coisas. Então, quando um elemento externo (como um jornalista, por exemplo) chega nesse ambiente, é preciso certas adequações para, ao mesmo tempo, as entrevistas acontecerem e isso não prejudicar o cronograma. Ficamos um bom tempo acompanhando a movimentação da numerosa equipe montando uma nova cena (a de um almoço no quintal da casa da protagonista) quando conseguimos trocar uma ideia rapidinha com Marieta Severo, a intérprete da mãe da protagonista e figura essencial da arte brasileira. Ela optou por conversar com a reportagem do Papo de Cinema na calçada do set, sob os olhares dos transeuntes, de um modo bem informal. “O tema foi o ponto definitivo para eu querer contar essa história, pois é um tema ainda muito estigmatizado. Na minha geração não se falava a palavra câncer, o pessoal dizia ‘está com aquilo’. Quanto mais se falar, mais se mostrar histórias, especialmente com a vida vencendo, melhor é. Um bom motivo para fazer alguma coisa é quando ela pode ser importante para muita gente (…) esse ponto de vista com positividade, o chamado à vida, é essencial nessa produção”.

E, mesmo com minutos escassos para falar com Marieta, afinal de contas ela estava sendo aguardada para seguir as filmagens, aproveitamos para perguntar a ela, artista que viveu tantas turbulências político-sociais-econômicas no Brasil décadas a fio, como tem encarado essa nova retomada do cinema depois de anos em que o governo federal tratou a arte e os artistas a pontapés. “Esse tempo todo (de desgoverno) foi muito cruel não apenas para o cinema, mas à cultura de modo geral. Estávamos sob um governo que teme e tem horror à cultura do país, uma coisa louca. Do ponto de vista do cinema, a retomada pós-Covid está mais difícil em termos de frequência nas salas. No teatro a necessidade do encontro, do ao vivo gritou, então por isso as peças estão indo bem. No cinema, até por todas as facilidades tecnológicas de consumir em casa, retarda esse retorno. No entanto, há uma força de assistir a um filme coletivamente e isso sempre vai acabar orientando os retornos, os novos rumos e as retomadas”. Sábias palavras, Marieta.

Foto/Raccord Produções

E assim, em altíssimo nível, terminou a nossa visita ao set de Câncer com Ascendente em Virgem. Precisamos agradecer à equipe da Palavra Assessoria, pelo convite e acompanhamento durante a incursão pelo set da produção, e também à Raccord Produções, que nos recebeu com carinho e atenção, mesmo precisando dar conta de inúmeras outras coisas previstas no cronograma dos trabalhos. O longa-metragem já teve suas filmagens encerradas no Rio de Janeiro. A estreia nas telonas do Brasil inteiro está prevista para 2024 nos cinemas, em data específica a ser definida.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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