O Papo de Cinema foi convidado pela Media Bridge e a Paris Filmes para visitar o set de Intervenção, novo longa-metragem que tenta refletir sobre as nossas mazelas sociais. Desta vez, o foco do roteiro é a falência do projeto das UPPs, as Unidades de Polícia Pacificadora, que durante um bom tempo foram “vendidas” como a grande solução para a aguda crise de segurança pública que assola o Rio de Janeiro. As filmagens estavam acontecendo na comunidade Tavares Bastos, localizada na Zona Sul da Cidade Maravilhosa, da qual se tem uma vista praticamente incomparável de um dos cartões postais mais bonitos do Brasil. A locação foi escolhida, entre outras coisas, por necessidade, afinal de contas é a única favela integralmente pacificada do Rio de Janeiro. Tivemos a oportunidade de acompanhar duas cenas sendo rodadas, além de visitar parte dos cenários, isso antes de partir à entrevista coletiva que aconteceu numa das casas utilzadas como apoio à produção. Bora conferir tudo?
MAS, SOBRE O QUE É INTERVENÇÃO?
“A intenção era fazer um filme que tivesse ação, mas calcado nos relacionamentos humanos. Há um viés muito sensível sobre o que a sociedade está vivendo no país neste momento. Estamos bem felizes de mostrar o Intervenção para o Brasil, porque é algo que nos orgulha. É um longa muito equilibrado que, repito, fala de seres humanos.”, disse Cosimo Valerio, um dos produtores do longa-metragem. “Nossa maior preocupação como produtores foi sempre bem clara: que esse fosse um filme humano, que buscasse explicar as conjunturas sociais, mas do ponto de vista das pessoas. Como algo de cinema, é divertido, tem ação, mas diversos momentos dramáticos de reflexão.”, completou Angelo Salvettim sócio de Cosimo e, assim como ele, italiano de nascimento.
Com larga experiência no âmbito da segurança pública, Rodrigo Pimentel, um dos roteiristas de Intervenção e ex-capitão do BOPE, também falou um pouco sobre a gênese do projeto: “Intervenção um filme sobre o momento atual do Rio de Janeiro. Cerca de 9000 jovens na faixa etária de 20 a 27 anos acreditaram nas UPPs, assim como eu acreditei durante um bom tempo. Eles fizeram concurso para polícia e viraram vítimas desse projeto gambiarra. A UPP falhou no Rio de Janeiro, como também a UPA, o legado olímpico e o BRT. São projetos mal pensados e geridos. Estamos na cidade onde mais morrem policiais no mundo. Algumas vezes esses jovens são algozes da violência, mas também muitas vezes são vítimas. O filme é sobre isso”.
Chegamos numa das ruas principais da comunidade Tavares Bastos. Nela, acesso a uma viela em que o circo cinematográfico se encontrava montado, com diversos figurantes cercando o ator Marcos Palmeira, intérprete de um policial. Na cena, seu personagem dá explicações à imprensa sobre uma batida que resultou na morte de um morador. Em dado momento, ele explode em fúria, questionando os jornalistas quanto à falta de curiosidade no que diz respeito à situação periclitante dos policiais da UPP, que tomam tiro diariamente no pleno cumprimento de seus deveres. À dificuldade emocional, somou-se a logística, pois constantemente carros e motos trafegavam pela via que não podia ser obstruída por muito tempo, exatamente em virtude de ser uma das principais do local. O cineasta Caio Cobra, no entanto, conduziu tudo tranquilamente, vindo conversar rapidamente conosco no intervalo. Simpático, brincou com as dificuldades, demonstrando leveza, apesar da representação de uma realidade aterradora. Depois foi a nossa vez de acompanhar uma prisão fictícia, com Bianca Comparato retendo um elemento considerado perigoso. Mais tarde, ficamos sabendo que se tratava de uma das últimas participações da protagonista no filme.
ELENCO/PERSONAGENS PRINCIPAIS
Bianca Comparato / Larissa – “É um filme que fala diretamente a mim, à minha cidade. Quando o Rodrigo (Pimentel) me mostrou o roteiro, senti necessidade de discutir o assunto. Desejo que esse filme gere discussão e não polarização. A cada cena tentamos dar complexidade para o que estávamos fazendo. Minha participação não é apenas como atriz, mas também enquanto cidadã. Interpreto a Larissa, policial que enfrenta a dureza do trabalho das UPPs. Outra coisa que me interessou de cara foi mostrar o lugar da mulher na polícia. A UPP abriu muito caminho para as mulheres, pois a ideia era de uma polícia mais humana em contato com a comunidade. Historicamente estamos acostumados a uma visão masculina”.
Marcos Palmeira / Major Douglas – “Interpreto o major Douglas, chefe da UPP do fictício Morro da Laje. Ele é um cara experiente, ciente de que o modelo não deu certo, mas segue por amor à farda e respeito aos recrutas. É um cara capaz de qualquer coisa para proteger seus soldados. Li o roteiro de uma tacada e me apaixonei prontamente. Não é filme panfletário, que tenha bandeiras. Ele expõe uma ferida aberta. Acredito que estamos contando uma história muito pertinente e importante”.
Dandara Mariana / Flávia – “Estou muito feliz de fazer parte desse filme, pois o acho importantíssimo. Minha personagem é a Flávia, que trabalha numa ONG e carrega isso do discurso dos direitos humanos. Exatamente por conta dessa característica, tem uma relação conturbada com a irmã Larissa, que é da polícia. É tão bacana interpretar a irmã da Bianca e isso não ser discutido, pelo fato dela ser branca e de eu ser negra. Somos irmãs e é isso”.
Além deles, no elenco figuram nomes como Rainer Cadete, Babu Santana, Zezé Motta, Vitor Thiré, Juliana Araújo, Antonio Grassi, entre outros.
Antes de irmos ao local da coletiva, passamos pela UPP cenográfica, montada com o intuito de se aproximar o máximo possível da realidade. A instalação num contêiner chamou a atenção pela riqueza de detalhes, inclusive com marcas externas de bala, feitas justamente para aludir a uma triste cotidianidade das Unidades de Polícia Pacificadora, a de ser um alvo fácil para a investida da marginalidade fortemente armada do Rio de Janeiro. Mais tarde, Rodrigo Pimentel falou sobre isso, mencionando, inclusive, que a própria estrutura provisória da UPP é um sinal claro da falta de uma política mais sólida para a contenção da violência nas comunidades cariocas. Após essa breve passagem pela UPP de mentirinha, foi a vez da coletiva de imprensa em que o elenco, produtores, roteiristas e o diretor conversaram com a imprensa.
CONSULTORIA POLICIAL
“Pedi ao Caio e ele topou, graças a Deus, para utilizarmos, além de policiais consultores, cinco como atores. Eles estão em cenas de ação. Nos relataram experiências e isso ajudou muito na construção do filme. O policial Oliveira, que também prestou consultoria, protagoniza uma sequência em que resgata colegas feridos. E ele já fez isso na vida real só umas 50 vezes. Atualmente, é o policial que mais salvou colegas em combate em todo Rio de Janeiro. Ele empresta muito realismo às cenas.”, afirmou Rodrigo Pimentel. Marcos Palmeira, visivelmente entusiasmado com o projeto, corroborou a importância da consultoria policial: “Realmente é incrível o trabalho desses policiais. A gente podia fazer uma cena inteira, mas se um deles chegasse e dissesse que faltava veracidade, nós fazíamos tudo de novo. Então a intenção sempre foi se aproximar o máximo da realidade, sem nos engessar”.
E essa orientação não ficou restrita à ação, como esclareceu Caio Cobra: “Quando falamos que tivemos consultoria de policiais de verdade, logo pensam que isso se aplicou apenas às cenas de tiroteio, de ação, mas não. Houve também uma grande ajuda nos momentos calmos, à reprodução de como os policiais se portam em casa, com os amigos. Isso trouxe uma veracidade que certamente nós não teríamos sem eles”.
PREOCUPAÇÃO COM A COMPLEXIDADE E A NÃO POLARIZAÇÃO
Quando o assunto é a atuação policial, especialmente no Rio de Janeiro, fica difícil escapar das polêmicas. Some-se a isso o cenário atual de polarização política, e se torna intrínseco o potencial inflamável de Intervenção. “Para esses personagens, a política está bastante em segundo plano. Quando você é colocado numa situação-limite de matar ou morrer, não importa sua inclinação ideológica. Diante da necessidade real de sobrevivência, ou quando você não tem dinheiro para colocar comida na mesa, pouco importa a sua crença política. Tentamos mostrar personagens em situações-limite. A política está no olho de quem vai assistir ao filme e poderá elaborar.“, fez questão de esclarecer Bianca. Já Dandara adentrou nessa esfera, exemplificando a partir de sua atuação: “Minha personagem carrega um pouco esse cunho político. Ela deseja mostrar à irmã que a polícia precisa estar alinhada com os direitos humanos. A irmã acha que está ajudando, mas a minha personagem acredita que ela precisa entender a complexidade do cenário”. Todavia, para o diretor, a polarização não tem vez no filme, mas sim a dualidade: “A dualidade está muito representada nas irmãs. Ambas querem um mundo melhor, mas cada uma tem visões e metodologias. Qual delas está certa? Levantamos os questionamentos, mas não os respondemos. Cada espectador que tire suas próprias conclusões. Algumas pessoas que já viram cenas de discussões entre elas, por exemplo, me disseram que não sabem quem apoiar. E isso me deixa muito feliz”.
DIFERENÇAS DE OUTROS FILMES DE FAVELA
Outro tópico abordado foi que tipo de novidade Intervenção poderia oferecer a uma cinematografia que teve longas-metragens emblemáticos como Cidade de Deus (2002) e Tropa de Elite (2007), para citar, entre tantos, apenas dois grandes sucessos de bilheteria. Bianca fez uma análise disso: “Cada filme que nos precedeu levou o espectador a uma discussão distinta. Existe uma grande diferença mesmo entre o Tropa de Elite e o Tropa de Elite 2. Cada filme vai iluminando uma parte e gerando caminhos. É claro que somos influenciados por grandes longas que trataram antes do tema, eles são ícones do nosso cinema. Mas este é de um outro momento, em que a UPP não deu certo e o BOPE não resolveu. Temos a polícia que mais morre, mas também a polícia que mais mata.”
Marcos Palmeira preferiu exaltar a forma como Caio Cobra está contando a história: “Acho importante falar sobre as opções narrativas do Caio, a maneira como o filme é contado. Ele se coloca como um espectador daquela situação. Você não vai ver a câmera nervosa que corre pelas vielas da favela, para culminar com um personagem tomando tiro. Estou muito impressionado e bem feliz de trabalhar com Caio pela primeira vez. A câmera não interfere, não está buscando criar planos geniais”. E Rodrigo Pimentel, inclusive, falou sobre as diferenças sociais que distanciam Intervenção da sua criação, até agora, mais famosa: “Não que eu ache o Tropa de Elite ingênuo, longe disso, mas lá nos dissemos que o culpado pela violência no Rio de Janeiro era o estudante universitário que fumava maconha. Hoje em dia seria absolutamente louco colocar a culpa da violência no cara que fuma maconha. Nós temos dois milhões de pessoas que consomem mercadoria roubada diariamente na cidade. O que representa um terço da população. Então, é evidente que as pessoas que compram mercadoria roubada também estão contribuindo para violência.”
O TÍTULO ‘INTERVENÇÃO’
O Rio de Janeiro está sob o jugo da intervenção militar ordenada pelo governo federal. A polêmica medida é bastante contestada do ponto de vista prático. Até o momento, não houve grandes mudanças na paisagem social caótica que a capital fluminense vive. Então, porque lançar um filme com esse nome, especialmente se ele nada tem a ver com a intervenção real? Assim que uma colega jornalista questionou isso, Bianca Comparato disparou prontamente um “obrigado”, deixando clara a sua insatisfação. Porém quem falou primeiro foi o roteirista Rodrigo Pimentel:
”Intervenção é o que os policiais esperavam no sentido de alguém vir resgatá-los das UPPs. A primeira ação da intervenção militar federal no Rio de Janeiro foi questionar a UPP. Mas o governador (Luiz Fernando) Pezão é inflexível. Vamos falar a verdade: a UPP é a maior moeda política do PMDB. Evidente que o modelo falhou. Quem o mantém funcionando é muito equivocado ou tem o rabo preso. A primeira ação da intervenção foi rever as UPP, duas delas foram extintas. Se você me perguntar o que acho da intervenção militar, vou repetir o que disse a outros veículos de imprensa: a intervenção é política e ponto. O exército brasileiro também é vítima desse equívoco. Mas, por outro lado, ela é necessária, já que o Rio de Janeiro está completamente falido. Alguém tem de fazer algo para tentar recuperar a segurança pública do estado, não de forma atabalhoada como o governo federal está fazendo”.
Só então Bianca expôs aberta e corajosamente as suas ressalvas: “Todo mundo aqui sabe que esse título não me agrada nem um pouco. Acho que até a gente pode tentar mudar. O que significa a palavra ‘intervenção’? Inevitavelmente, ela tem um cunho político imediato. É rapidamente associada à intervenção militar. Mas, sou atriz nesse filme (risos). Torço para que o título mude, a fim de que tenhamos um mais humano até o dia 15 de novembro. Mas, isso está bem fora do meu poder”.
Perguntados sobre a possibilidade de uma alteração do título, os produtores disseram que ela existe, que reuniões posteriores definiriam isso. Mas é difícil imaginar que tal mudança aconteça, pois há material impresso e toda sorte de elementos prevendo o nome Intervenção. Bom, mas já era noite na comunidade Tavares Bastos quando a nossa visita foi dada por encerrada. Agradecemos novamente à Palavra Assessoria, à Media Bridge e à Paris Filmes pelo convite ao set deste longa que chega dia 15 de novembro aos cinemas brasileiros.
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