São Paulo, centro da cidade, tarde da noite. O famoso Viaduto Santa Ifigênia está parcialmente fechado, com diversos refletores instalados por todos os lados. Um trilho gigantesco, de cem metros, ocupa o chão avermelhado do Viaduto. Uma tenda abriga equipamentos, e técnicos passam por todos os lados carregando cabos, papéis, falando freneticamente através de walkie talkies. Na estreita passagem reservada aos pedestres, curiosos observam o aparato cinematográfico, tentando descobrir em que consiste a filmagem.
No caso, eles observavam o processo de realização de A Mãe, longa-metragem dirigido por Cristiano Burlan (Mataram meu Irmão, 2013, Fome, 2015). O diretor, conhecido pelo retrato das periferias e pela trilogia documental sobre o assassinato de membros de sua família, embarca na maior ficção de sua carreira. Na trama, Maria (Marcélia Cartaxo) descobre que o filho foi morto pela polícia. Ela luta para encontrar o corpo e enterrá-lo.
Apesar da seriedade do tema e da imponente estrutura de produção, o clima era dos mais amenos. Mesmo enfrentando dificuldade nos movimentos de uma dolly, que não andava rápido a ponto de acompanhar a corrida de Marcélia Cartaxo pelo viaduto, Burlan se mantinha amigável, sereno, aberto a sugestões. Ele tomou o tempo de conversar com quatro jornalistas diferentes, apesar das solicitações frequentes da equipe. O Papo de Cinema visitou o set e aproveitou para conversar com o diretor, com a atriz e com o jovem Dustin Farias, que interpreta Waldo, o filho assassinado.
Um filme para Marcélia
Burlan ressalta que o projeto foi concebido para sua atriz principal: “Eu não escrevi sozinho. Escrevi com a minha companheira, que também é atriz no filme, a Ana Carolina Marinho. A ideia vem de nove atrás, mas vai completar seis anos desde que o roteiro foi escrito. Eu escrevi para a Marcélia, tinha o rosto dela muito forte na memória desde que vi A Hora da Estrela (1985). Pensei que, se um dia eu viesse a fazer esse filme, gostaria de trabalhar com ela. Ela tem uma dimensão monumental, e não poderia fazer o filme se ela não topasse. Fiz o convite há cinco anos, mas ela certamente recebeu muitos outros convites desde então, porque o projeto demorou muito a acontecer”.
“O Cristiano foi me mandando os tratamentos do filme, cerca de seis anos atrás“, completa a atriz. “Ele sempre dizia que estava escrevendo para mim. Ele dizia que o papel exigia bastante sensibilidade, e que já conhecia bem o meu trabalho. O Cristiano sabia que eu tinha um sentimento apurado para viver essa mãe. Achei incrível, mas eu andava em outros projetos: fiz Pacarrete (2019), Treze de Maio (2020), com o André Meirelles, que ainda vai estrear. Quando rodei este último projeto, encontrei brevemente o Cristiano. A gente se cruzou no Cine Ceará, quando ele me dizia que o projeto estava amadurecendo, e que contavam comigo. Fiquei feliz de ter mais um filme escrito para mim, especialmente com esta importância do tema, com tanta responsabilidade. Essa mãe perde o filho de dezessete anos. Ele sai para ir à escola e fazer um teste de futebol, mas é assassinado pela polícia. É um filme muito forte, e tenho apenas uma cena com ele. Depois, a mãe parte em busca do menino. Ela busca pelo bairro, pelo campo de futebol, pelos lugares onde ele gostava de frequentar. Assim, descobre que foi assassinado, mas nunca tem informações precisas, porque o Estado não dá satisfação. Ele vai atrás de outras mães para poder se fortalecer nessa perda”.
Ao contrário da atriz principal, Dustin Farias já tinha trabalhado com o diretor antes em Estopô Balaio (2016): “Eu trabalhei com o Cristiano enquanto artista, como rapper. Foi através do teatro que a gente se uniu, mas voltado ao universo artístico em geral. Durante um evento em que eu cantei, ele me encontrou novamente e viu meu cabelo grande, cacheado, e achou que tinha uma semelhança com essa mãe. Esse foi um dos passos para a gente fechar a parceria”.
Antígona brasileira
Para seu maior orçamento até então, Burlan se inspirou numa das mais famosas tragédias gregas: “Este é o meu primeiro filme de ficção com recursos. O meu primeiro longa-metragem com recursos foi Elegia de um Crime (2018), mas esta vai ser a minha primeira ficção. Se eu estivesse esperando a situação ideal para fazer os filmes, eu não teria feito nenhum deles. É claro que esta produção é diferente de todas as outras. O filme é basicamente sobre uma mãe que busca o corpo do filho para enterrar, e se encerrar o luto. É inspirado numa peça grega, Antígona, mas ela buscava enterrar o corpo do irmão, e aqui temos uma mãe lutando pelo direito de enterrar o corpo do filho. Eu adoraria que esse filme não fosse atual. Não sei se, quando ele for lançado, ainda vai se conectar tanto com a atualidade. Mas o tema nunca deixou de ser atual: a ditadura, nas periferias das cidades brasileiras, continua existindo. A polícia militar da Cidade de São Paulo, da qual a minha família foi vítima – meu irmão foi assassinado por uma quadrilha comandada por policiais militares – é uma das mais letais do mundo. Agora, estes números voltaram a aparecer, mas desde os anos 1990, no Capão Redondo, eu vi diversos amigos assassinados, cujos corpos desapareceram, e continuam desaparecendo. Parece que isso foi naturalizado”.
Pesquisando a ditadura
Questionados sobre alguma pesquisa específica em filmes e textos relatando a ditadura militar, diretor e atriz afirmam que o caminho era outro. “Quando eu faço filmes, não consigo buscar referências”, explica Burlan. “Sou professor de cinema, gosto muito de ver filmes e posso dizer que tenho certa cinefilia, mas não consigo transformar esta cinefilia num instrumento: quando escrevo um roteiro ou quando dirijo, nunca consigo usar uma referência específica para fazer um filme melhor. Eu praticamente me afasto do cinema. Não conseguiria falar sobre filmes neste caso: na hora de filmar, minha fonte precisa ser a vida. Existe um personagem em Rei Lear – que vai ser interpretado pelo Jean-Claude Bernardet no meu próximo filme – que entra em cena para dizer uma única coisa: ‘Há um mundo lá fora’. O mundo do cinema é interessante, mas não é real. A noção de realidade no cinema é muito subjetiva. Mas não me pauto pela realidade. É óbvio que meus filmes decorrem das experiências que eu vivo mas, como disse Orson Welles, ‘Um filme, quando nasce como simples veículo de uma mensagem sociopolítica, já nasce morto’. É claro que tenho um teor político nos meus filmes, mas não como objetivo, e sim como consequência. Não posso usar o que é caro para mim como bandeira, mas é claro que me posiciono politicamente.
Ele continua: “Mas esse tema é atual: a polícia sempre matou e vai continuar matando, e os corpos vão continuar desaparecendo, sem que as mães tenham o direito de enterrar os seus filhos. Uma personagem do filme, uma pessoa real, é a Débora, das Mães de Maio. Em 2006, durante uma semana, se matou tanto quanto, ou até mais que a Ditadura Militar, depois dos conflitos com o PCC. A Helena Ignez está no filme, e ela traz o embate de duas gerações. A Maria, personagem da Marcélia, tem uma origem humilde, e ela acaba confundindo as Mães de Maio com a ditadura. Maria parte em busca da Débora, das Mães de Maio, porque escuta algo a respeito no rádio, mas acaba num grupo de mulheres contra a ditadura militar, cujos corpos de familiares não apareceram também. A Mãe da Ditadura é uma burguesa, aristocrata, enquanto a Maria é uma camelô humilde, nordestina, imigrante. Mas são duas mães, independentemente da classe social. Nenhuma das duas pode vivenciar o luto. Não é natural uma mãe enterrar o filho, e é ainda menos natural uma mãe não poder enterrar o filho. Tudo isso são ideias. Foram seis anos escrevendo a história, e agora chego no momento de pensar as sequências, as imagens”.
Marcélia Cartaxo afirma ter efetuado algumas pesquisas, embora muitas delas viessem de uma vivência pessoal: “Eu pesquisei algumas coisas da época da repressão. O filho da Zuzu Angel foi assassinado, e vi filmes sobre o tema. Eu já fiz uma peça dirigida por João das Neves, que trazia a questão da tortura durante a ditadura militar. Assisti a diversos depoimentos de mães, pela Internet mesmo, e participei de uma reunião com o Burlan, quando ele contou as experiências dentro da família dele. O Burlan vivenciou uma tragédia familiar. Ele tem um material forte em cima desse tema”.
Trabalhando com atores
Uma das partes mais interessantes da conversa diz respeito ao ponto de vista de Burlan quanto ao trabalho com o elenco. Poucos cineastas demonstram tamanha sinceridade ao abordarem a preparação dos atores e as filmagens:
“Quando eu era mais jovem, adorava ter uma metodologia de trabalho para atores. Mas cada filme tem uma especificidade, e cada ator é um ser humano distinto. Eu venho do teatro, e adoro atores. Um produtor me perguntou se eu teria preparador de elenco, e estranhei. Isso é algo que só existe no Brasil. Nos Estados Unidos existe o coach, mas nunca a figura do preparador. O elemento mais vivo e orgânico dentro de um set de cinema é o ator, e eu vou chamar alguém para se interpor entre eu e o ator? Eu adoro a loucura dos atores. Nem costumo fazer testes, mas neste filme, precisei fazer porque o elenco era muito grande. Gosto de convidar o ator porque percebo nele uma loucura que eu também tenho. Prefiro encontrar o personagem no ator do que transformar o ator em personagem. Alguns atores não trabalham bem com isso, porque esperam o clichê do diretor que sabe tudo, que vai dar uma aula de interpretação no set e extrair o melhor deles. Eu estou ficando mais maduro e não tenho mais paciência para tentar parecer esta figura. Sei de algumas coisas, mas eu escancaro o que não sei. Pode ser meio assustador quando digo: ‘Vou lá fazer o filme, mas não porque tenho uma tese de doutorado sobre o tema, e sim porque estou curioso com ele’.
“A Marcélia já trabalhou com os maiores malucos do cinema brasileiro, eu sou fichinha perto destes outros”, brinca Burlan. “O que mais me atrai nela é o fato de ser uma atriz totalmente instintiva. Helena Ignez e Gena Rowlands são assim também. Com estas mulheres, você não dirige, apenas dá espaço para que elas possam se expandir. Eu posso passar seis anos escrevendo o projeto e pensando a cena, mas só vou compreender por completo depois que o ator o fizer. Trabalho com muita conversa. Não gosto de ensaiar, mas neste filme, eu ensaiei. A Marcélia ensaiou com quase todos os atores, quase todas as cenas. Todos os atores têm cenas pequenas – eles passam pela Maria como se fossem satélites. Apenas a Maria está em 98% das cenas. Fizemos duas leituras do roteiro, para ter uma ideia do filme. Eu já tenho uma ideia do que desejo, mas não quero perder a oportunidade que ela me surpreenda, ainda mais com a experiência que ela tem. Marcélia é um ser humano de grande sensibilidade, sem afetação nenhuma. O set tem equipe, equipamentos, cenários, câmeras, mas não posso perder o lado humano da encenação. Esta é uma tragédia, afinal. Seu eu perder tempo parecendo diretor, a coisa complica”.
Cartaxo associa a importância do projeto à história de vida de Burlan: “Curiosamente, ele é um homem doce, sensível. Trata os atores com carinho e respeito, além de ser um homem extremamente culto e inteligente. Ele estudou profundamente o cinema ao longo da vida, e todas as dores que ele sente estão aplicadas na arte. O cinema o salvou dessa revolta, desse ódio. Acho incrível ele lidar com o tema com essa força. Isso atrai pessoas igualmente sensíveis para contribuir a esse desenvolvimento humano”.
Dustin Farias ressalta as trocas com o cineasta: “O Cris sabe conversar bem com o ator, para te deixar bastante confiante em cena. É outro tipo de pressão: ao invés de te colocar contra a parede para transformar essa pressão em algo forte, ele trabalha na conversa, com naturalidade. Isso me ajudou bastante. Eu também pensei no que poderia contribuir, enquanto ator, para além do que o diretor tinha pedido e além do que queria ver. É uma troca mesmo. Através dos ensaios, sinto que o processo flui melhor e consigo transmitir as ideias em cena”.
O cinema não existe
Os cinéfilos que assistiram a produções como Fome sabem como o cinema de Burlan pode ser focado no real, extraindo o melhor de poucos recursos disponíveis. Até por isso, o tamanho da produção de A Mãe correspondeu a uma experiência nova:
“Nos primeiros dias, fiquei assustado. As minhas equipes costumam ter cinco pessoas, mas ontem tinham 55 pessoas no set, entre figurantes e afins. Preciso me focar nessa relação humana, senão me distancio dela, e desse rosto que tem uma dimensão trágica. Esta é a minha batalha diária, para não me perder. O Jean-Claude sempre diz isso: ‘O cinema não existe, o que existe são os filmes’. A minha relação é com o filme, não com a estrutura nem com a maquinaria. Você vai ver, no set de hoje, que temos um trilho de cem metros. E se a cena cair na montagem? Eu sou completamente empírico. Esta cena nem estava no roteiro. Imagina a briga para querer produzir isso depois! Mas a Marcélia tem uma inteligência emocional muito forte. Já dirigi muitos atores, e os grandes, aqueles que têm real domínio do ofício, sabem quando estão sendo filmados, e o valor do plano utilizado”.
Maria sou eu
Questionada sobre os desafios específicos deste projeto, Cartaxo relembra os principais passos de sua trajetória: “Todo o meu trabalho é pautado na sensibilidade. Eu quero tocar o coração dos espectadores, para que saibam como outras pessoas se sentem, por quais situações elas passam. Tenho a boa sorte de pegar temas sociais complexos, e isso me toca profundamente. Venho de uma família pobre, marcada por muita luta. A minha mãe é costureira, o meu pai era agricultor, e éramos cinco irmãos. A gente não tinha quase nada dentro de casa. Eu assistia à minha mãe debruçada o dia inteiro em cima de uma máquina para poder sustentar cinco filhos. A gente devia aluguel. Muito depois eu fiz filmes, novelas e pude ajudar em casa. Eu me senti obrigada a contribuir com tudo o que conquistei para ajudar minha mãe, meu pai e meus irmãos. Com isso, não consegui construir um patrimônio. Mas a minha mãe ganhou uma casa popular, e a gente mora num bairro popular até hoje. Eu compreendo perfeitamente a situação dessas pessoas. Eu me questiono a vida inteira sobre a sociedade. O que eu represento através de todas essas Marias, cada uma na sua situação, em sua cidade?”
“A minha carreira exigiu muito de mim”, continua. “Eu tive muitas cobranças, porque comecei de cima e me perguntava o que poderia fazer depois de A Hora da Estrela. Como descer tantos degraus, e como subir de novo? Como fazer de novo um contato com os espectadores? Senti a pressão para repetir esse sucesso. Comecei a carreira aos doze anos de idade, fazendo teatro amador. Aprendi tudo na prática: como entrar em cena, atuar, experimentar, compor, desenvolver as técnicas criar essas emoções sem ficar apenas emocional. Sou nordestina, e no começo me esforçava demais para perder o sotaque. Depois percebi que não era nada disso: a maioria do povo brasileiro vem de uma classe desprivilegiada. Nós somos muitos. Não precisei passar para o outro lado. O cinema é algo muito verdadeiro, que revela nossos sentimentos. Então acho importante viver essas mulheres, essas Marias tão diferentes. São muitas histórias esperando para ser contadas. Histórias desprezadas, de gente marginalizada. Precisamos ajudar uns aos outros, viver no coletivo. O cinema é isso: quando faço um filme desses, e me encontro com um sujeito como o Cristiano, que conversa tanto sobre o personagem, sobre a cena e a situação dela, eu percebo uma pessoa de verdade, falando sobre situações que todos nós vivemos”.
Dustin Farias se enxerga igualmente no personagem que interpreta: “O Waldo retrata o jovem de toda a periferia. Ele é um filho de nordestinos, que veio para São Paulo quando novo, e aprendeu todos os macetes para viver na quebrada. Ele é um garoto sonhador, e como muitos, sonha em ser jogador de futebol. Ao mesmo tempo, ele quer fazer rima, como tantos jovens periféricos. O Waldo não foge muito do Dustin. A música contribuiu para o personagem, porque isso tem a ver comigo. Sempre gostei de escrever e rimar, como o personagem. Foi através da música que eu consegui chegar a esse papel. O rap sempre foi um mensageiro do que acontece na periferia. As letras noticiam tudo para as pessoas. As dificuldades que a gente passa na periferia, com a falta de estrutura familiar e financeira, a falta de cultura e de informação, a dificuldade de acesso aos outros bairros, são coisas que eu vivi, e que o Waldo vive também”.
Filmar o sonho
Quanto à cena daquela noite, sobre o Viaduto Santa Ifigênia, os atores explicam que se trata do início do filme. Nesta cena, a mãe se reencontra com o filho pelo centro da cidade, e corre atrás dele. Nas palavras de Cartaxo:
“A cena que a gente vai filmar hoje vai ser a abertura do filme. Eu ainda não tenho ideia do filme em relação às imagens na tela. Quando eu faço, não quero ver as imagens filmadas, só vou ver o resultado com o filme pronto. Mas a ideia hoje é ter uma abertura próxima do sonho, junto do filho dela. Vai ser um encontro de almas, entre uma pessoa que já fez a passagem e sua mãe. É como se eles se encontrassem no mesmo plano”. A ideia do sonho também resume a interpretação de Dustin Farias: “Neste sonho, eu e Marcélia corremos juntos. É uma cena visual, sem diálogos. Uma cena muito bonita e forte, que mostra uma corrida, um momento de conexão e pulsação no encontro entre os dois. Estou ansioso para isso“.