Copacabana é um dos lugares mais famosos do mundo. Destino de boa parte dos turistas estrangeiros que chegam ao Brasil, célebre pelo desenho singular de suas calçadas à beira-mar, o bairro da zona sul carioca é um lugar repleto de idiossincrasias. Quem conhece profundamente esse espaço sabe como ele pode apresentar um cotidiano, no mínimo, excêntrico, principalmente pela quantidade de tribos e faunas. É nesse espaço sui generis que se passa Perdido, série produzida numa parceria entre a Rinoceronte Filmes, a Paulo Tiefenthaler Filmes e o Canal Brasil. Seu protagonista é Derek (Paulo Tiefenthaler), escritor cinquentão que herda uma loja de lingeries em Copacabana. Concomitantemente, ele lida com uma cineasta jovem que deseja adaptar um de seus romances ao cinema e com o funcionário do empreendimento, jovem que passa por uma transformação radical. Convidados pelos responsáveis do programa a visitar os bastidores, fomos ao encontro da produção e o resultado é o set visit que você confere agora.
A GÊNESE DE PERDIDO
Chegamos ao set de Perdido num momento de folga, exatamente pós-almoço, na base da equipe, montada ao largo da praia do Leme. Paulo Tiefenthaler e Ernesto Solis, os dois diretores do programa, estavam tirando aquela soneca rápida depois de comer. Quem nos recebeu muito gentilmente foi a produtora Renata Leite, da Rinoceronte Filmes. Ela nos adiantou um pouco sobre a gênese do projeto que, ao todo, empregou cerca de 40 pessoas em seis semanas de gravação. “Essa aventura começou há três anos, quando o Paulo teve a ideia. Ele já queria sair um pouco do lugar só de atuação, desejava produzir e dirigir. Embarcarmos com ele nessa série. No começo, chamamos alguns roteiristas, mas o Paulo sentiu que deveria colocar a mão na massa, então começou a reescrever os roteiros. Tivemos uma mudança significativa de equipe por conta dos trâmites do Fundo Setorial do Audiovisual. Paulo chamou o Ernesto, que, por sua vez, contribuiu demais. Tivemos ajuda também do Arnaldo Branco”.
Um pouco depois, já na sala de maquiagem, abordamos o diretor geral e protagonista, Paulo Tiefenthaler, acerca do que o moveu a essa história. “Sempre quis fazer uma série ou um filme em Copacabana. Antes, tinha outra história, que acabou não acontecendo porque achei um pouco filme de ação estadunidense dos anos 80. Mas aí decidi que queria fazer algo em torno de um personagem mais existencial. Começamos a partir do Derek, escritor sem sucesso, de romances baratos, sempre insatisfeito e perdido, sobretudo nessa virada dos 50 anos. Ele carrega uma desesperança, está meio cansado. Criamos a história a partir daí. Na outra versão, ele já começava como dono da loja de calcinhas e não era escritor, mas decidimos principiar com ele ganhando a loja da tia”, afirma Paulo, entrevistado sempre bem-humorado.
Ele continua, abordando as questões de ordem prática: “Tínhamos outro time de roteiristas. A história, no entanto, tomou um rumo que não me deixava satisfeito. Chamei o Ernesto, meu amigo há 20 anos, até porque ele sabe desse meu lado mais existencial, sombra, que pouca gente conhece. Tenho cinquenta anos, ainda bem que estou menos perdido que o Derek (risos). Acabamos reescrevendo os roteiros. Tivemos a ajuda do Arnaldo Branco e do Hudson Viana, eles acabaram escrevendo quatro episódios”. Já Renata arremata essa questão comentando o escopo da produção: “Temos orçamento pequeno e uma equipe pequena. Está todo mundo ralando muito, temos uma equipe bastante dedicada. Temos um elenco grande, isso fora as participações. Em cada um dos treze episódios tem alguém que aparece. Precisamos cortar algumas participações. Brinquei ‘gente, temos orçamento de sitcom e vocês querem elenco de novela das sete’ (risos). É difícil trabalhar com ficção e orçamento reduzido”.
COPACABANA COMO PERSONAGEM
“Repito, sempre quis fazer um filme ou uma série que se passasse em Copacabana, bairro onde fui criado. É a Twin Peaks brasileira, um espaço que está para o cinema brasileiro como Manhattan está para o cinema norte-americano. Copacabana é o bairro mais metropolitano do Brasil, nem em São Paulo há algo que se aproxime. Aqui tem todas as classes sociais, três comunidades, classe alta e o glamour histórico do passado. É um bairro 24 horas, que tem um lado Cubatão (riso), com óleo diesel por todos os ares”, comenta Paulo. E durante o curto espaço de tempo em que acompanhamos os trabalhos deu para notar, de fato, a vontade de traduzir com veracidade as muitas particularidades desse charmoso bairro da zona sul carioca. A cena que vimos sendo rodada se passa num bar, com personagens conversando algo importante entre uma cerveja e outra. Os transeuntes, não limitados nesse ir e vir na calçada adiante da cena montada, demonstravam curiosidade diante do aparato montado pela equipe técnica, cuja missão era trabalhar com um curto espaço para manobras.
Enquanto Ernesto Solis cuidava de tudo atrás das câmeras, Paulo vivia Derek com sua malemolência habitual. Acerca dessa dinâmica de trabalho conjunto, pois ambos se encarregaram do roteiro e dividem os créditos da direção, Paulo fez questão de sublinhar a parceria: “Eu e o Ernesto dirigimos juntos, mas ele acaba dirigindo mais, até porque não quero dirigir a mim mesmo. Nas três primeiras semanas, Ernesto se encarregou de tudo, até porque era preciso dar sequência à equipe e estou em grande parte das cenas. A partir da quarta semana comecei a dirigir, algo que amo fazer. Divirto-me mais no set, com as pessoas, como ator, mas sou mais feliz dirigindo. Mas acabamos dirigindo bem em conjunto”. Ele sublinhou a importância dos sons de Copacabana, mantidos o máximo possível, inclusive por conta da quantidade grande de planos-sequência, procedimento incomum na televisão. Todavia, Paulo fez questão de dizer que eles faziam essencialmente TV e não emulavam o cinema na telinha.
OUSADIAS BEM-VINDAS DE PERDIDO
Principalmente levando em consideração que vivemos em tempos complicados, nos quais ímpetos de progressismo são vetados por conta de uma ascensão brutal do conservadorismo, Perdido, por tocar em questões importantes, tem bom potencial à controvérsia. Um dos personagens mais recorrentes na série e, pelo que nos foi dito, crescente durante o processo de escrita dos roteiros é Roberto, jovem que trabalha na loja de lingeries e que, adiante, passa por uma transição e se transforma em Clay, assumindo-se mulher. Quem interpreta esse personagem essencial é a modelo transexual Joana Couto, com quem conversamos nas breves folgas entre as filmagens. “Cara, é muito interessante esse processo. Fizemos um período super intenso de preparação com a Dani Forte e fui para lugares que eu não imaginava, até porque a vida da personagem guarda semelhanças com a minha história. Quando fiz a primeira prova de figurino, as pessoas comentavam que notavam uma diferença, inclusive, de postura depois dessa preparação, principalmente isso de desconstruir o ‘carão’ da modelo. A parte mais complicada era encontrar o Roberto, de certa forma voltar à prisão de onde saí. Está sendo lindo esse trabalho”, diz Joana estreando como atriz na empreitada.
“A série é corajosa ao se propor a falar de várias coisas controversas. Tem um protagonista com cerca de 50 anos, um personagem transexual. Vão meter o pau de qualquer jeito, porque atualmente o erro de uma vírgula gera uma comoção. Vai ter sempre alguém querendo criar polêmica. Mas temos de bancar”, afirma Bernardo Mendes, cujo personagem, Alan, é o vizinho de Derek, que acredita no potencial comercial da maconha: “O Alan é um maconheiro nerd, daqueles que trata a maconha como commodity (risos). Ele quer um dia ter uma plantação de maconha, quer fazer tênis de cannabis, quer lançar livro, a casa dele é toda cheia de plantas. Ele é um amigão do Derek, como se fosse seu irmão mais novo”, brinca Paulo antes de continuar os preparativos para entrar em cena. “Nem o Alan sabe muito bem que é. Ele vê potência em todo mundo, menos nele. Acabou de chegar de Cabo Frio e está morando em Copacabana, estudando Direito, numa busca pessoal. Ele está tentando fazer da maconha um produto, estabelecer um mercado. Alan tem um plano de comprar terras em Petrópolis e Teresópolis para quando a planta for legalizada ele já começar a ganhar”, completa Bruno.
Voltando ao personagem Roberto/Clay, Paulo cita seu mencionado crescendo durante a escrita do roteiro: “A personagem transexual não tinha nome, ela apenas compunha o elenco, era uma coadjuvante. Mas, um dia, conversando com um dos roteiristas que acabou saindo depois do projeto, decidimos que a Clay seria central. Nos apaixonamos pela personagem. Ela começou a ‘bombar’ e o Derk ficou chato (risos). Era gostoso escrever a transformação dela, foi prazeroso bolar isso e ir adequando os demais. Acredito que deu certo”. Sobre a construção de uma figura tão multifacetada, Joana traçou paralelos consigo: “Uma jornada muito pessoal. Mesmo assim, foi um processo de construção, pois, a despeito das semelhanças, as circunstâncias são outras. Precisei desconstruir questões de expansividade, criar um lugar de introspecção. O Roberto estava acomodado, então ele não se preocupava em comandar. Quando as coisas passam às mãos dele, há a força para a saída da prisão e virar Clay”.
PREVENDO A REPERCUSSÃO
Infelizmente não conseguimos falar com a atriz Tainá Medina que interpreta Bel, a cineasta que se engraça para os lados de Derek e que deseja adaptar um de seus livros aos cinemas. Isso se deu porque ela tinha sofrido uma pequena torção no tornozelo durante as filmagens da manhã e precisou se ausentar à tarde. Já o prazo apertado e a agenda cheia não nos permitiram falar com o diretor Ernesto Solis. Todavia, especialmente com Joana, abordamos a choque que provavelmente a trama vai causar nos mais conservadores (ainda mais levando em consideração os desdobramentos que não podemos revelar por aqui). “Essa onda retrógrada se dá por conta da visibilidade dos movimentos em prol da igualdade. Conseguimos incomodar tanto, mas tanto, que o pessoal deve pensar ‘peraí, como eu, branco, heteronormativo e rico não vou mais poder fazer piada com travesti, pobres e negros? Estão malucos?’. Mas não adiante espernear, pois vamos continuar colocando a cara à tapa, como sempre foi. O mínimo é que possamos andar livremente na rua e ser quem de fato somos. Não adiante tentar fazer as coisas voltarem atrás, porque vocês vão ter apenas dor de cabeça”.
“Acho isso importantíssimo que a Clay seja representada longe dos estereótipos, algo que remonta ao que venho fazendo como Joana. Quando ouvia a palavra transexual na adolescência pensava que não poderia ser aquilo, uma vez que ninguém me daria trabalho e oportunidades. Fui descontruindo tal concepção aos poucos, por meio da arte, da informação e de pessoas que me deram ferramentas. Quando tive coragem de passar por isso, as coisas não foram tão desesperadoras ou sofridas como achei que elas seriam. A gente luta para conseguir nosso espaço. A maravilha de ser você mesma, de olhar no espelho e se amar, ser a mulher que eu sempre quis ser, é a maior felicidade do mundo. Vejo muito a representação audiovisual do transexual nesse lugar de brutalidade, de morrer cedo. Muitas passam por isso, é horrível. Mas é bom entender que essa não é a única possibilidade“, afirmou Joana.
A noite já caia em Copacabana quando demos por encerrada a nossa visita ao set de Perdido, não sem antes ouvir da produtora, Renata, histórias sobre uma gravação especial em que Copacabana se transformou, numa tarde de domingo, numa passarela de desfile de lingeries. Inusitado, se não estivéssemos falando de Copacabana.. A primeira temporada contará com 13 episódios. Gostaríamos de agradecer à Rinoceronte Filmes, à Paulo Tiefenthaler Filmes e ao Canal Brasil pelo convite e à Palavra Assessoria por ter nos acompanhado nessa visita ao set.
(matéria feita originalmente em maio de 2019)