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Era final da tarde de um dia de semana, em Porto Alegre, quando o Papo de Cinema foi convidado para acompanhar uma das diárias de Rasga Coração, sétimo longa-metragem – deixando de fora projetos coletivos e especiais para televisão – do diretor gaúcho Jorge Furtado. Estamos em um prédio antigo, que já teve vários usos, mas que agora serve de cenário para a pensão onde moram dois dos protagonistas do filme, Manguari Pistolão e o Lorde Bundinha, interpretados, respectivamente, por João Pedro Zappa e George Sauma. Eles estão presentes em apenas metade da trama, pois a história é dividida em dois momentos: final dos anos 1970, quando os jovens se envolvem em movimentos revolucionários de protesto contra a Ditadura Militar que governava o país, e nos dias de hoje, quando Manguari, já nos seus cinquenta anos – e dessa vez interpretado por Marco Ricca – precisa lidar com o mesmo espírito rebelde, só que agora manifestado no filho, Luca, vivido por Chay Suede.

Rasga Coração é baseado na peça homônima de Oduvaldo Vianna Filho, escrita em 1974, e há um bom tempo era o projeto de estimação de Furtado. “Vi a peça em 1979, 1980, não lembro com certeza. Foi em São Paulo, e era estrelada pelo Raul Cortez. Era incrível. Foi uma peça que o Nelson Rodrigues, que era um cara oposto ao Vianninha politicamente, saiu encantado, dizendo que era uma obra prima. Uma das maiores peças do teatro brasileiro. E acho que é mesmo”, comenta o cineasta. Mas se o texto é tão bom e forte ainda após tanto tempo, por que essa demora em adaptá-lo para o cinema? “Há dez anos, quando pensei pela primeira vez em adaptar esse texto, li a peça e achei que não fazia sentido naquele momento, quando o PT, a esquerda, estava no governo, tudo dando certo e funcionando. Hoje é o contrário, e faz total sentido, de novo. Com essa desilusão com a política, de incógnita em relação ao futuro, ninguém sabe o que vai acontecer. Tá naquele momento que parece muito com o final dos anos 1970, com a Ditadura acabando, mas sem saber exatamente o que viria a seguir”, complementa.

Essa desilusão política, como Furtado destaca, é o mote da trama. Mas sobre o que, exatamente, irá tratar o filme? “É sobre um personagem, em duas épocas. O Manguari Pistolão, com 50 anos, e também nos seus 20, interpretado pelo Marco Ricca e pelo João Pedro Zappa. Esse cara, quando jovem, é um idealista político, tá fazendo greve, movimento de rua, luta pela anistia. Porém, quando fica mais velho, acaba se tornando um funcionário público, que continua batalhador, que acredita no trabalho político, mas desiludido com tudo que aconteceu. E o filho dele não acredita na política tradicional. O negócio dele é partir para uma ação direta, tipo invadir escolas. É um texto muito atual, que parece ter sido escrito hoje. Tem uma fala, na peça, que o filho diz: “como você fala da pobreza, da miséria, se trabalha para esse governo? Quem deixou o país assim?”. Esse discurso parece muito o de hoje, de um filho que em 2013 foi para as ruas, invadir escolas, e que não acredita mais nos partidos tradicionais”, explica o realizador.

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João Pedro Zappa e George Sauma em cena de Rasga Coração

MANGUARI & BUNDINHA

Hoje iremos acompanhar uma cena com as versões jovens de Manguari e Bundinha. E nada melhor do que os dois para explicarem melhor quem eles são nessa história, não é mesmo? “O Manguari é o cara que conduz o enredo. É um apaixonado por uma causa. O filme retrata essa luta que ele faz e como ela vai mudando ao longo do tempo. Adequando esse esforço com a idade. Durante a juventude, vai em passeatas, quer fechar fábricas. Só que depois de tanta porrada, se pergunta: “o que adiantou tudo isso?”. Ajudou um aqui, outro ali, mas o amigo dele se ferrou. Outro morreu no caminho, teve o que acabou na prisão”, adianta João Pedro Zappa. Ator que estreou no cinema no drama Boa Sorte (2014), longa baseado justamente no conto de Jorge Furtado, ele agora encontra em cena pela primeira vez um dos seus melhores amigos, George Sauma, com quem atuou em vários projetos no teatro. “O Lorde Bundinha é um artista, músico, bailarino. Vive nesse momento do Brasil, de 1979, da Ditadura, mas de uma forma meio alienada. Quer mais é se divertir. Não se envolve tanto quanto o Manguari. Mesmo assim, os dois são muito amigos, há afeto entre eles. Volta e meia discordam nesse lugar, mas se unem quanto ao amor que sentem um pelo outro. É um personagem complexo, carismático, mas, ao mesmo tempo, tem suas contradições. Rasga Coração fala sobre isso, essa reflexão política, as repetições de cada geração, o que precisa ser feito para chegar numa sociedade mais justa”, explica Sauma.

A parceria que será possível ver no cinema é apenas reflexo de uma realidade que existe há um bom tempo entre os dois. “A gente se conhece desde a época do tablado, quando tínhamos 15 anos de idade, e viramos melhores amigos. Fizemos várias peças juntos. As duas mais recentes, A Importância de Ser Perfeito e Pedro Malasartes – essa última, inclusive, é um texto do Jorge Furtado – são trabalhos que passamos o tempo todo juntos em cena. Éramos duplas também nas peças. Mas é o primeiro filme, o primeiro trabalho no cinema juntos”, comenta Zappa. E Sauma avalia: “esse filme é uma consolidação de um trabalho que há anos a gente vem fazendo juntos”. E quem dá a opinião final sobre essa parceria é o diretor: “É uma dupla perfeita. Sem falar que são muito amigos. Isso também foi importante. O Zappa é um grande ator, e pra fazer o Bundinha, papel do Sauma, tinha que ser um ótimo comediante. Como é uma história de uma amizade, de juventude, eles têm uma química incrível”, avalia.

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João Pedro Zappa em cena de Rasga Coração

ATOS DE REBELDIA

Estamos no set onde fica a pensão dos dois amigos, mas não será exatamente aqui onde as filmagens de hoje se desenrolarão. O que será que veremos? “A gente acabou de filmar onde o Bundinha e o Manguari moram, após ele ter sido expulso de casa. Tem as aventuras deles nesse lugar, experimentam drogas, afinal estamos no final dos anos 1970. Mas agora vamos filmar uma cena de rua, quando saem para pichar, chamando para a greve, e são surpreendidos pela polícia, e precisam correr para fugir”, esclarece o diretor. E Sauma comenta entusiasmado: “Agora é a pichação. Vamos sair para pichar. Vai ter correria e perseguição. Essa vai ser a primeira cena com a polícia, de ação mesmo, em todo o filme”.

Mas é um filme de ação, drama ou comédia? Entre tantas possibilidades, só mesmo falando com Furtado: “É um drama romântico, político… é tanta coisa esse filme! Essa história é incrível. É um filme de personagens. Esta é a peça da maturidade do Vianninha. Ao mesmo tempo em que escrevia, ele trabalhava na Globo – fazia A Grande Família na época. Tanto que, pra mim, Rasga Coração é a versão drama de A Grande Família. A mesma estrutura de vários personagens. E o mais incrível é que todos têm a sua razão. Isso é o espetacular da dramaturgia dele. É fácil fazer um personagem pelo qual você torce, ou dois, até um trio, mas sete, oito, no qual todos tem as suas razões, é uma engenharia impressionante o que conseguiu com essa peça”, esclarece.

E quem continua é George Sauma, falando especificamente sobre seu personagem que, com um nome como esse – Lorde Bundinha – não tem como ser levado muito à sério. “O meu personagem acaba sendo o alívio cômico do filme. Na peça já era assim. Só que ele é trágico ao mesmo tempo. É triste. As pessoas que, às vezes, são muito felizes, você vai cavocar ali e acaba descobrindo um buraco escuro nelas. É assim também com ele”. “O Sauma faz muita comédia, e é muito bom no que faz. Mas tá mostrando, aqui, que sabe fazer cinema bem pra caralho também. Tá lindo!”, complementa o colega de cena. “Chegamos a um lugar de parceria que tudo fica mais fácil. Não precisa nem pensar antes. Às vezes você vai interpretar o melhor amigo de uma pessoa que nunca viu, bom, então vamos tomar uma cerveja antes, né?”, diz o outro, seguindo com os elogios mútuos.

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Jorge Furtado, no set de filmagens de Rasga Coração

PORTO ALEGRE CARIOCA

Rasga Coração tem sua história ambientada no Rio de Janeiro. No entanto, a Casa de Cinema de Porto Alegre – como o nome já adianta – é uma produtora gaúcha, e por isso as filmagens se deram quase que por completo na capital do Rio Grande do Sul. Como se deu essa engenharia? Para descobrir melhor como foi isso, foi fundamental conversar com a produtora do filme, Nora Goulart: “A peça se passa quase toda no mesmo cenário, num apartamento. A gente compreende que podia estar em qualquer lugar – Porto Alegre, Rio de Janeiro, tanto faz. Mas vamos usar algumas coisas de finalização com efeitos, nas janelas, por exemplo. Tivemos uma diária no Rio, e vamos ter outra no fim das filmagens. Somente duas, o resto todo em Porto Alegre. Tem coisas que consideramos iguais no Brasil, então foi possível essa maquiagem. Fizemos uma profunda pesquisa de lugares, procuramos em Porto Alegre calçadas portuguesas – afinal, tem coisas que, na adaptação, acontecem nessas calçadas. Tem aquela coisa de Copacabana, com os prédios todos juntos, sem uma separação. E aqui, na Rua da Praia, temos isso também”, esclarece.

É a primeira vez que filmo em Porto Alegre. O Marco Ricca havia nos avisado: “lá é o melhor lugar de filmar do Brasil”. E realmente, é muito gostoso. O clima aqui é incrível. E há semelhanças geográficas e de arquitetura entre as duas cidades. A vista do quarto da pensão é muito parecida com a da casa onde morei em Santa Tereza, no centro do Rio, por exemplo”, opina João Pedro Zappa. E quem também dá seu parecer sobre o assunto é Sauma: “Acho que o público vai comprar bem essa Porto Alegre carioca. E é incrível como a equipe do Jorge, que é toda daqui, e muito competente, está envolvida com esse processo. Tá sendo, pra mim, uma experiência única”.

Mas bastou uma pesquisa de locações e algumas pinceladas digitais? Ou foi preciso algo a mais? Quais foram os esforços para criar uma Porto Alegre com toques de Rio de Janeiro? “Chegamos a construir uma parada de ônibus carioca e a instalamos em Porto Alegre para filmar, e funcionou muito bem (risos). A gente mandou foto para os atores e pessoal da equipe, todos cariocas, e a resposta foi: “ah, vocês estão no Rio?”. Tipo, nem se deram conta. Isso nos deixou confortáveis. Ficamos tranquilos com esse retorno, pois foi quando percebemos que estávamos conseguindo fazer o Rio em Porto Alegre. E assim, no ponto de vista de produção, acho que foi bem contemplado, mesmo”, finaliza Nora.

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A cena da pichação!

MEXENDO NUM CLÁSSICO

Rasga Coração será o primeiro filme de Jorge Furtado que não é baseado em um roteiro original do diretor, e, sim, uma adaptação de um texto de outra pessoa. Foi mais fácil ou difícil lidar com essa mudança? “É um desafio pegar um clássico e adaptar. A gente manteve muito do sentido e até das palavras, cenas inteiras, só adaptando para a época. Mas, ao mesmo tempo, tem esse outro lado. Pra TV fiz muitas adaptações, mas para o cinema é a primeira vez – fora os curtas, é claro. Também por isso, me sinto mais à vontade para elogiar (risos), pois é de fato um texto genial, e não é meu!”, comenta o diretor e roteirista. George Sauma, que trabalhou com Furtado também na série de televisão Mister Brau (2018), dá sua visão: “O Jorge é um cara, e isso dá pra ver também nesse filme, ainda que seja uma adaptação, que tem uma coisa com a palavra. Ele é muito do texto. Isso é um prato cheio para o ator. Deixa a gente com vontade de falar o que foi escrito. Ele escreve muito para o elenco. Tem uma generosidade na hora de escrever”, afirma.

Mesmo assim, Furtado abriu espaço para a criação dos atores no set. Muito do que será visto em cena não foi escrito nem por ele, nem por Oduvaldo Vianna Filho, mas, sim, inventando pelos intérpretes na hora das filmagens. Como isso funciona? “O improviso, muitas vezes, é meio que inevitável. Quando o diretor o aceita numa boa, fica uma delícia trabalhar. O Jorge é um cara seguro quanto ao que quer e precisa para contar a história. Essa confiança que tem na cena, na forma de filmar, o deixa à vontade para que a gente possa criar também”, comenta Sauma. E Zappa vai além: “isso reflete no resultado. Tudo que a gente faz é em prol de alguma coisa. Às vezes, lidamos com diretores que, além de fazer a nossa parte, temos que convencer que aquele caminho é bom. Com o Jorge não é assim, pois ele entrega e confia. O resultado são essas cenas que temos feito. Bem tensas – acho que as mais intensas que já fiz como ator! E conseguir fazê-las com tanto prazer é muito bom”.

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Chay Suede e Marco Ricca em cena de Rasga Coração

MANGUARI PISTOLÃO: MARCO RICCA OU JOÃO PEDRO ZAPPA?

Marco Ricca já havia filmado suas cenas no dia que fizemos essa visita, por isso essa conversa tem apenas um lado – o de João Pedro Zappa. Ele, no entanto, faz a juventude do outro, ainda que suas sequências tenham sido feitas depois das do colega. Será que combinaram um caminho único para o personagem, ou cada um seguiu o seu próprio instinto? “A gente conversou bastante. Pensamos que há lugares que dava para eu repetir, numa proporção menor, o mesmo comportamento dele. Mas tem lugares, também, que seria o contrário, teria que ir para o oposto. Pra mostrar que na juventude esse cara era de um jeito, e depois de velho virou outra pessoa. E questionado pelo filho. Só que o rapaz também não viu tudo que aconteceu com o pai. Se antes queria mudar o mundo de uma vez só, na vida adulta entende que a mudança vem aos pouquinhos, diariamente. É uma luta cotidiana”, esclarece Zappa. E finaliza: “O Manguari interpretado pelo Marco Ricca é um cara da luta diária, não do sonho”.

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George Sauma em cena de Rasga Coração

RECRIANDO OS ANOS 1970

Jorge Furtado já fez comédias, como Saneamento Básico (2007) e Meu Tio Matou um Cara (2004), mas também dramas, como Real Beleza (2015). Rasga Coração deverá ir por qual destes caminhos? “Nenhum dos dois. Esse filme lembra o cinema italiano, tem algumas coisas do Monicelli, do Scola, até porque o Vianninha e a turma dele eram formados por esse tipo de cinema. É uma história triste, mas com momentos engraçados. Essa mistura de comédia com drama, com cenas que você morre de rir, principalmente aquelas com o personagem do George Sauma, o Lorde Bundinha, que é um anarquista, doidão. Então você vai rir dele, mas no final percebe que tudo é muito triste”, esclarece o diretor.

A ambientação de uma história, no entanto, não se faz apenas com cenários e figurinos. É preciso mais. E Furtado foi buscar na música esse elemento que faltava. “Tem música original, e muitas daquela época. Tom Zé, Macalé, Odair Cabeça de Poeta, recriamos um cenário de músicas alternativas brasileiras dos anos 1970. Tem uma canção que é especial, acho, que é Corda Ré, do César Sampaio, e é uma música inédita. Só existe gravada num vídeo, é o único registro. Falei com o João, o filho dele, para saber se havia outro, a família procurou e não encontrou nada. Tiramos a música de lá, e o Sauma – que é músico também – a toca em cena. Ficou muito bonito”, comenta.

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Set das filmagens de Rasga Coração

FUTURO

Nossa visita ao set de filmagens de Rasga Coração foi há exatamente um ano, no final do mês de novembro de 2017. O tempo passou, e o filme já está pronto para chegar às telas de todo o país no próximo dia 06 de dezembro, após ter sido exibido com sucesso nas programações do Festival do Rio e da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Quais os próximos passos da Casa de Cinema, então? “Estamos com três filmes para lançar. Além do Rasga Coração, temos também o Baleia, dirigido pelo Esmir Filho, e o Morto Não Fala, do Dennison Ramalho. O Baleia filmamos em agosto de 2017 no Uruguai, com a Andrea Beltrão, Marina Lima, Ismael Caneppele, Alfredo Castro, e ainda estamos pensando de que forma vamos distribuir. O Morto Não Fala já está pronto, e também passou pelo Festival do Rio. São filmes totalmente diferentes, e é isso que mais nos motiva, essa diversidade. Temos muito orgulho de cada um desses trabalhos”, complementa a produtora Nora Goulart.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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