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Embora muitos torçam o nariz para aquilo que insistem em denominar “favela movie”, a verdade é que a nossa realidade, repleta de abismos sociais, infelizmente marcada pela criminalidade, fornece vasto material ao cinema e à televisão, cujos produtos nos auxiliam a entender a complexidade desse país tropical de dimensões continentais. Um Dia Qualquer é a nova aposta desse filão. Com direção de Pedro von Krüger, que faz sua estreia à frente de um longa-metragem de ficção, o projeto multiplataforma abrange filme e série de TV. No cinema, acompanharemos uma trama se desenrolando durante 24 horas no subúrbio carioca. A guerra principal é entre as instâncias dos chamados poderes paralelos. Na televisão, mais especificamente no Canal Space (ainda sem data definida), haverá espaço para uma compreensão da gênese da situação calamitosa que está sendo construída com ares de tragédia grega. O Papo de Cinema foi convidado a visitar o set de Um Dia Qualquer, principalmente para conferir de perto o trabalho de Augusto Madeira e Mariana Nunes, respectivamente, o protagonista e a figura coadjuvante mais importante do projeto. O resultado da incursão pelos bastidores da novidade você confere agora, claro, com exclusividade.

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O ator Augusto Madeira – Crédito Rogério von Krüger

Já na chegada, fomos recepcionados pelo tarimbado Denis Feijão, um dos proprietários da Elixir Entretenimento, responsável pela produção tanto do filme quanto da série de TV. Simpático e atencioso, ele mencionou alguns fatores curiosos, como a predileção por cenários naturais – a casa na qual acompanhamos as filmagens é situada no bairro de Marechal Hermes, na Zona Norte do Rio de Janeiro –, e o envolvimento direto de cerca de 85 profissionais. Ele considera Um Dia Qualquer um passo importante para a sua empresa, tanto que garantiu não medir esforços para assegurar a qualidade do conjunto. Pela estrutura vista, não é da boca para fora. No intervalo das funções, tivemos a oportunidade de entrevistar Augusto Madeira, Mariana Nunes e o cineasta Pedro von Krüger. Para começo de conversa, indagamos o que os levou a aceitar o projeto, a se envolver numa dinâmica complexa e exigente como essa.

“Primeiro, porque é um roteiro muito bem construído. É raro encontrar algo de qualidade identificável só de bater o olho. Segundo, se trata de um protagonista. Não é a todo o momento que cai um protagonista no seu colo. Faço cinema há muito tempo e acho que protagonizei apenas um filme, em séries isso aconteceu mais. Além disso, o Pedro (diretor) é um amigo antigo. A circunstância na qual a trama se passa também contou pontos. Como carioca e brasileiro vejo essa realidade muito dura se aproximar e não consigo escapar. Uma das primeiras coisas que falei, inclusive na preparação com o Sérgio Penna, é que o roteiro me lembrou muito uma tragédia grega, não no sentido do dramático, do sofrido, mas por conta da impossibilidade de escapar a um destino traçado. É um pouco isso. Parece que o Rio de Janeiro é predestinado a essa sina de ficar a mercê das milícias, do tráfico, das igrejas neopentecostais e por aí vamos falando de todas as mazelas. Somos cada vez menos cidadãos, não temos uma democracia, de fato, atuante e transparente. Ter isso como pano de fundo é ótimo. Como ator e ser humano é muito legal poder me experimentar nesse lugar”, disse Augusto.

Segundo Mariana, o imediato encanto pela personagem foi imprescindível: “Me apaixonei de cara pela Penha. Ela é uma personagem incrível e sedutora. O passado dela não aparece no filme, apenas na série de TV. A vejo como uma seta. Não vai sossegar e parar enquanto não se vingar. É o tipo de papel que não cai na sua mão a todo o momento. Ela começa aparentemente pacata, mas experimenta muitas transformações. É religiosa, mas a vemos sempre com um ódio nos olhos, o que faz com que haja dúvidas sobre essa fé. Porém, não é questionável sua decisão capital. A falta de ajuda vai dando espaço para realmente concretizar a desforra com as próprias mãos. É uma personagem fascinante, não exatamente contraditória, mas que apresenta polos conflitantes. Um desafio grande para qualquer atriz, por conta dessa trajetória complexa. Dois lados extremos da Penha convivem ao mesmo tempo, a tornando multifacetada”. Já Pedro citou uma vontade antiga de falar sobre o assunto como motivo de ter escolhido Um Dia Qualquer para a sua estreia na direção de longas: “Na verdade, tudo principiou com a ideia de falar da nossa época, da contemporaneidade, a partir das questões sociais que vêm à tona. A função da arte é discutir esse tipo de coisa dentro da sociedade, nesse caso com um olhar cinematográfico. É uma história que está na minha cabeça há muitos anos. Curiosamente, por conta disso acompanhei o processo do incremento do poder paralelo dentro de certas comunidades do Rio de Janeiro. Esse projeto tem 15 anos. Naquela época nem se falava da milícia, quando muito se mencionava ‘polícia mineira’, ‘cavalos corredores’, apelidos do poder paralelo”.

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Penha e Seu Chapa – Crédito Rogério von Krüger

 

OS PERSONAGENS
Ninguém melhor que os próprios Augusto e Mariana para falar de seus personagens. Afinal, quem são Quirino e Penha?

Quirino
“Engraçado, a primeira leitura dele é: o dono da porra toda, aquele que manda e desmanda. Meu trabalho como ator é entender onde estão as fragilidades. O que faz dele humano e crível? É o amor pelo filho? A paixão antiga? O excesso de cigarro que ocasiona crises gástricas? Tentei fazer ele pesado, mais do que maldoso, cansado. Um cara há 10 anos na milícia está cansado. Mesmo na saga O Poderoso Chefão, eles estão o tempo inteiro tentando sair, se legalizar, evadir desse mundo. E constantemente algo os puxa de volta. O filme aponta para o Quirino o caminho político, o de virar vereador, de fazer uma ação mais institucionalizada. Quis deixar uns fios desencapados, permitir arestas. Afora isso, Quirino é um monstro, foi talhado para ser assim. Não acho que exista mal de nascença, ele é fruto desse universo que estamos criticando”, afirmou Augusto.

Penha
“É uma mulher que foi casada durante um tempo com o Seu Chapa, dono da boca mais importante do bairro. Sendo ele o chefe do tráfico, tinha o maior poder. Com Seu Chapa, Penha teve dois filhos. Ela o ajudava a gerenciar aquilo tudo. Estavam seguros e bem. Cuidavam das pessoas e tinham muito respeito da comunidade, apesar de serem bandidos, sem dúvida. Numa determinada ocasião, são vítimas de um golpe do personagem do Augusto Madeira, que acaba transformando radicalmente o destino dessa mulher. Pouco tempo depois, ela descobre que está grávida e se vê obrigada a permanecer no local sob a proteção do Quirino. A Penha encontra força na igreja e se torna evangélica. No filme a vemos durante um dia inteiro tentando descobrir o que aconteceu com um de seus filhos, quando acaba por desencavar o passado. Toda a expansividade dela de antes, reprimida pelas circunstâncias, acaba vindo à tona”, segundo Mariana.

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TRABALHO COM O “ESTREANTE” PEDRO E O AMBIENTE NO SET
As aspas no “estreante” não são ocasionais, tampouco gratuitas. Embora Um Dia Qualquer seja, de fato, o primeiro longa-metragem de ficção que Pedro von Krüger dirige, estamos falando de um profissional com ampla experiência no cinema. Operador de câmera e diretor de fotografia com um sem número de créditos, lançou recentemente Estrada de Sonhos (2018), documentário acerca da história ferroviária do Brasil. Mas aqui o desafio é de outra ordem, inclusive pelo fato de conduzir dois produtos ao mesmo tempo. “É realmente um desafio, mas ganhei coisas novas ao fazer concomitantemente filme e série de TV. Quando escrevi o roteiro com meus companheiros, já construímos a história pregressa dos personagens. Então, assim que surgiu a oportunidade de fazer uma série de televisão, naturalmente resolvemos realizar o ’10 anos antes’. Acabou sendo um privilégio poder mostrar mais um pouco dos personagens para o espectador da TV, que terá acesso à gênese daquilo tudo”, afirmou Pedro. Mas, e o que os atores têm a dizer sobre o trabalho com esse marinheiro de primeira viagem?

“O Pedro tem uma energia incrível. Não possuímos orçamento sobrando, mas estamos fazendo tudo com muito cuidado. O filme tem valor de produção e estamos fazendo render. Apesar de ter essa pressão, ela é divertida, bem humorada, democrática, planificada, no sentido de que todo mundo opina e colabora. O Pedro é muito generoso. Comecei a fazer cinema numa época em que os cineastas filmavam a cada cinco anos. Eles não tinham experiência de set. Essa galera que está vindo agora, o Pedro inclusive, passa 50 semanas por ano num set de filmagem. Isso faz toda a diferença, pois dá agilidade ao trabalho. Já tive outras experiências de estar nos primeiros filmes de diretores, e é sempre algo frutífero e gratificante, exatamente porque tem esse sabor especial. O elenco é composto de gente muito jovem, não inexperientes, mas jovens, inclusive alguns que vêm de lugares periféricos. São extremamente talentosos e qualificados, tenho aprendido bastante. Sempre gostei muito de trabalhar com os mestres e os novos, de ter esse equilíbrio”, assegurou Augusto. Já Mariana ressalta a generosidade do cineasta: “O Pedro é muito maravilhoso. Não o conhecia, mas desde o primeiro dia em que nos encontramos, no qual ele me apresentou o roteiro e a Penha, achei bonito ver sua empolgação com esse projeto e a entrega que ele está empreendendo para essa primeira direção de ficção. Ele é muito aberto às percepções do elenco, tenta entender junto conosco os anseios e os gatilhos dos personagens. Uma coisa é o roteiro escrito, outra é quando as figuras criam corpo. O Pedro tem um olhar bastante atento para o que os atores trazem. Ele é atencioso não apenas com a equipe, mas também com as construções. Tem uma noção estética absurda, o que me deixa muito feliz. Várias vezes ele opera a câmera e a gente nota que há um imenso prazer nisso. Me sinto, com ele, sempre numa dança”.

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Crédito: Guilherme Rolim

 

O QUE O FILME E A SÉRIE ACRESCENTAM AO FILÃO?
Questionamos Augusto, Mariana e Pedro sobre o que Um Dia Qualquer traz de relevante para o tão inchado filão dos filmes brasileiros que retratam a violência em áreas socialmente vulneráveis. “Ele (o filme) tem algumas características que o fazem singular. O fato de a história toda acontecer durante 24 horas dá uma pulsação diferente. Aborda a realidade das milícias, principalmente como negócio. É a primeira vez que vejo uma abordagem desse desenho que conta, ainda, com o tráfico e as igrejas neopentecostais. E essas coisas convivem, estão lado a lado. Queremos trazer esse universo vivo. Longe de mim dizer o que é certo e o que não é, mas aprendo muito sobre outros países vendo filmes. Então, quanto mais próximo da realidade, especialmente de algo que você não conhece através de telejornais e de outras mídias, melhor. Me apaixonei pelo Irã por conta do cinema iraniano. Posso falar a mesma coisa a respeito da Coréia e de países africanos. Quanto mais mostrarmos um Brasil diferente, novo, que está acontecendo aqui e agora, desse jeito, ampliamos essa comunicação com os brasileiros, mas também com povos de outros países. Tem tudo para rodar por aí”, disse Augusto.

Maria prefere sublinhar o ímpeto de ampliar o escopo da discussão: “Esse filme traz uma coisa que não é muito abordada no cinema: o poder ostensivo que a polícia acaba tendo em algumas comunidades, e como isso vitimiza os moradores. Somos acostumados a olhar ao tráfico e esquecer o resto. Mas são várias as formas de opressão criminosa que existem no Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro. O filme traz um olhar a isso que, para mim, é singular. De acordo com Pedro, é a perspectiva distinta é o que traz o diferencial: “Nele há o ponto de vista das famílias, as dificuldades de criar os filhos numa região dominada pela violência. Não é a perspectiva da engrenagem do poder, mas do interior da casa, das questões dramáticas das personagens, e, principalmente, com o olhar voltado à nossa juventude. O filme retrata essa imensa fatia da população dos ‘nem nem’, ou seja, nem estudam, nem trabalham, e que acabam vivendo num limbo social”.

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O ator Willen Reis em ação. Crédito: Guilherme Rolim

 

ACOMPANHANDO UMA CENA
Depois da rodada de bate-papo com a trinca, fomos convidados a acompanhar as filmagens de uma cena bastante difícil. Nela, o ator Willen Reis precisava pular de uma sacada relativamente alta para demarcar um episódio tenso do longa-metragem. Depois de uma elaboração bem cuidadosa e criteriosa, o intérprete precisou recorrer à sua preparação física para chegar ao ponto ideal, uma vez que foram necessários cerca de 10 saltos, com sobes e desces, até que Pedro se desse por satisfeito. Aliás, uma das coisas que mais chamou a atenção nessa dinâmica foi o fato do cineasta operar a câmera, fazendo questão de estar próximo da ação, sentindo o calor do momento. O diálogo criativo com o diretor de fotografia Jacques Cheuiche, um dos mestres de Pedro e figura importante do cinema brasileiro, foi constante e levou ao resultado desejado. Uma prova da perceptível integração de uma equipe que, após o registro de outra cena, a chegada nervosa de Penha à mesma casa, com um belíssimo travelling desenhando o percurso curto, porém repleto de significado, comemorou a jornada satisfatória daquele dia de trabalho. O Papo de Cinema saiu do set de Um Dia Qualquer com a impressão de quem vem coisa boa por aí. Vamos aguardar para conferir, nos cinemas, ainda sem data confirmada, e no Canal Space, provavelmente no segundo semestre de 2019.

 

Nossos agradecimentos à Primeiro Plano Assessoria, que nos acompanhou nesse Set Visit, e igualmente ao produtor Denis Feijão pelo convite e receptividade.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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