Se Nelson Rodrigues fosse americano, grandes seriam as chances de ele ter escrito a peça Killer Joe, que inspirou o roteiro do filme homônimo (no Brasil, acompanhado pelo subtítulo Matador de Aluguel). Afinal, estamos falando da história de um filho que, com a ajuda do pai, contrata um assassino para matar a própria mãe, planejando usar o dinheiro do seguro de vida para pagar dívidas de droga. Uma das garantias de pagamento dada ao mercenário é a irmã mais nova.
Só que a história se passa no Texas, nosso velho conhecido dos cowboys, do imaginário western, terra de George Bush (pai e filho!). E, por mais rodrigueanas que sejam as tintas, foi escrita por Tracy Letts, que prontamente adaptou sua peça para o cinema. Pelas mãos (nada limpas) de William Friedkin, o filme ganhou vida. E já chegou fazendo barulho.
É curioso notar que a crítica americana detestou o longa, e “ultrajante” seja adjetivo comum para Killer Joe por lá, enquanto, por aqui, o filme arrancou elogios até dos críticos mais turrões. Considerando o cenário acima, dá pra entender o motivo: não se trata de uma crítica “institucional” à sociedade estadunidense, um ataque “de fora”, que a crítica já aprendeu a aceitar de bom grado. Trata-se, isso sim, de uma implosão: Killer Joe ataca uma cultura de um dos lugares que lhe é mais familiar (o Texas) e usando uma linguagem que lhe é cara (a do “filme de família”), enfim, de dentro. E ainda o faz por meio da violência, do sexo, do sacrilégio, da blasfêmia e diversos outros pontos de tabu para aquela sociedade. Se o resultado desagrada quem tem Tennessee Williams como o mais crítico dos dramaturgos, encontra ressonância em quem já viu Nelson Rodrigues e Sartre fazendo coisa (muito) pior.
Em primeiro lugar, é preciso ter estômago pra ver Killer Joe. Não é à toa que o filme traz uma cena antológica envolvendo um pedaço de frango frito (outro símbolo da cultura americana). Há muito para ser engolido (e digerido). E, mesmo sabendo disso, Friedkin não manera nos temperos. A câmera acompanha cândida e placidamente os personagens, não importa o tamanho da atrocidade em cena – criando várias sequências de violência gráfica, um desespero para os americanos. O cenário principal, um trailer onde vive a família, é escuro, com decoração kitsch e uma televisão que não desliga. Essa televisão aliás, se repete em bares e outros locais, sempre como “ruído alienante”. Os personagens são construídos de forma arquetípica e, ao invés de ganharem mais dimensões no decorrer do longa, vão se achatando, se igualando e se tornando uma única entidade, uma única voz esganiçada. Um conceito, talvez, sintetizado por um personagem como “um bando de caipiras com espaço demais para andar”.
E para isso, é claro, Friedkin conta com um senhor elenco. Emile Hirsch (Chris) se supera mais uma vez na pele de um mequetrefe que nem o cachorro do pai respeita. Thomas Haden Church (Ansel), o pai, está perfeitamente embasbacado e alheio a si mesmo. Seus contrapontos femininos são Juno Temple (Dottie), a irmã mais nova, e Gina Gershon (Sharla), esposa de Ansel. Se a primeira é a personificação da acefalia virginal, a segunda é um belíssimo exemplar da baixa biscataria. Juntos, eles compõem com perfeição uma família do tipo que os americanos chamariam, acreditando não serem preconceituosos, de “white trash” (algo como “lixo branco”, ou seja, pessoas que, apesar de serem brancas, tem vícios e problemas como drogas, jogo, bebida, prostituição e etc.).
Para detonar essa carga explosiva toda, surge Matthew McConaughey (Joe), que vai entrando na família por trás, com jeitinho. Seu estilo meio canastrão, meio cafona e com uma ética tão própria quanto duvidosa é o catalisador de cada virada do roteiro, direta ou indiretamente (e não são poucas). Também é dele o protagonismo das cenas mais marcantes, seja incendiar um carro com uma pessoa dentro em frente a uma churrascaria, seja a tal sequência do frango frito.
Talvez os Estados Unidos realmente não estivessem preparados para uma piada tão pesada sobre si mesmos, que dirá para engoli-la. O cinema, porém, sempre esteve pronto para esconder nas entranhas de seus gêneros (western, terror, filme de família) e linguagens, os múltiplos retratos daquilo que representa. Talvez por isso, Manohla Dargis, do New York Times, tenha desconfiado, com um certo pavor, que Friedkin pudesse até estar se divertindo enquanto filmava tamanha atrocidade. E é provável que seja esse o motivo por que o mundo ria junto. Afinal, já dizia Nelson Rodrigues, “não se faz literatura, política e futebol com bons sentimentos”. Às vezes, nem cinema, Nelson…
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