“Histórias em Quadrinhos e animações são coisas para criança”. Quem nunca ouviu tal sentença reducionista? Parcialmente verdade, todavia, ela não dá conta da complexidade e da força desses dois meios de expressão, ambos com bastante tradição também em tramas voltadas aos adultos. No que tange especificamente à animação, são inúmeros os exemplos de longas-metragens – muitos deles baseados em livros ou em HQs – com abordagens dificilmente palatáveis aos mais jovens. Sexo, violência, existencialismo, distopias, utopias, complexos cenários político-sociais, são alguns dos temas que permeiam uma produção nem sempre acessível ao grande público, realidade que ajuda a fomentar a distorção contida na frase inicial deste parágrafo. Com a chegada aos cinemas brasileiros de Festa da Salsicha (2016), o Papo de Cinema resolveu escolher 10 dessas animações voltadas ao público adulto. Confira!
Submarino Amarelo (Yellow Submarine, 1968)
Depois de terem lançado A Hard Day’s Night: Os Reis do Iê Iê Iê (1964) e Help! (1965), os Beatles precisavam de um novo projeto para cumprir seu contrato com a United Artists. Com uma agenda cheia e não satisfeitos com o último longa, o quarteto pensou que uma animação seria uma boa ideia. Contribuíram com quatro faixas inéditas, além de sucessos do seu catálogo, deixando a tarefa nas mãos do diretor George Dunning. O resultado foi essa inebriante viagem lisérgica por Pepperland, um lugar atacado pelos Malvados Azuis, que desejam acabar com a alegria e a música do local. John, Paul, George e Ringo são chamados para ajudar a acabar com essa ameaça. A trama é recheada de piadas do melhor humor britânico e, embora pareça um tanto infantil, a arte, as cores e as piadas são mais interessantes para o público adulto. Ainda mais com os sucessos do quarteto que são incluídos na trilha. Os Beatles não fazem as vozes dos personagens, mas gostaram tanto do resultado que resolveram gravar uma pequena cena para fechar o filme. Isso não impediu a United Artists de demandar mais um longa aos Beatles, dado o pequeno envolvimento deles com o material. – por Rodrigo de Oliveira
O Gato Fritz (Fritz the Cat, 1972)
Ícone da animação underground, o cineasta Ralph Bakshi fez sua estreia em longas-metragens com esta adaptação das tiras em quadrinhos criadas por Robert Crumb, que se tornou o primeiro desenho animado da história a receber a classificação etária X – proibido para menores de 18 anos – nos Estados Unidos. A trama acompanha as aventuras do gato Fritz, um universitário e poeta frustrado que divide seu tempo entre festas, consumo de drogas e orgias sexuais com fêmeas das mais variadas espécies, na Nova York dos anos 60. O humor ácido de Crumb ganha vida no estilo particular de Bakshi, repleto de cores vivas e sequências carregadas de um surrealismo psicodélico para compor uma sátira social do período da contracultura. Estão lá o movimento do amor livre, as questões raciais e os embates políticos, tudo tratado no limite do politicamente incorreto, utilizando as figuras antropomorfizadas dos animais para ressaltar os piores traços da humanidade. Apesar da narrativa episódica um pouco truncada e dos desentendimentos com Crumb – que não aprovava as liberdades tomadas por Bakshi, particularmente em relação ao excesso de violência – o filme foi um grande sucesso financeiro, com arrecadação mundial estimada em mais de 100 milhões de dólares. Um marco da animação independente. – por Leonardo Ribeiro
Planeta Fantástico (La Planète Sauvage, 1973)
Dirigida pelo cineasta René Laloux, falecido em 2004, esta coprodução entre França e Tchecoslováquia é considerada uma referência não só para o cinema de animação, como também para o de ficção científica. Baseada na obra do escritor Stefan Wul, a trama se situa no universo distópico do planeta Ygam, onde vivem os Draags, seres azuis gigantes altamente desenvolvidos que dominam o local e fazem dos Oms, diminutas criaturas humanoides consideradas selvagens, seus animais de estimação. Quando Terr – um Om pertencente à filha de um dos líderes Draags – foge, uma revolução se inicia. Repleto de alegorias sobre a luta de classes, a evolução das espécies e até mesmo a ocupação russa na Tchecoslováquia, o longa é marcado por um estilo visual experimental deslumbrante, criado pelo ilustrador Roland Topor, que carrega os traços do design soviético. Utilizando a técnica de stop motion, Laloux constrói uma atmosfera onírica povoada por imagens singulares e embalada pela trilha sonora hipnotizante de Alain Goraguer, que traz influências da psicodelia do rock progressivo. Se destacando por sua inventividade, bem como pelas questões filosóficas que levanta, o filme de Laloux foi devidamente alçado ao status de obra-prima cult, capaz de causar estranhamento e fascínio na mesma proporção. – por Leonardo Ribeiro
Akira (Akira, 1988)
A clássica animação oitentista de Katsuhiro Otomo ressurgiu recentemente com os burburinhos sobre uma possível adaptação cinematográfica norte-americana. Entre a seleção de diretor e possíveis protagonistas (Robert Pattinson e Justin Timberlake foram citados), o projeto até então nunca saiu do papel; talvez pela colossal tarefa de transformar este conto essencialmente japonês numa produção que faria qualquer longa-metragem da Marvel Studios parecer simples. Atemporal, a produção apresenta uma gangue de motoqueiros liderada por Kaneda no ano de 2019 e situada em Neo-Tóquio – que substituiu a capital original após sua destruição durante a Terceira Guerra Mundial. Um dos membros do grupo, Tetsuo, é sequestrado pelo governo e forçado a um programa que tenta lhe conceder poderes paranormais e telecinéticos. Em um universo que talvez se aproxime daquele retratado em Blade Runner (1982), a animação de Otomo ainda é referência de criatividade única e singular por suas ambições estéticas e narrativas. O icônico protagonista, vestido em sua jaqueta vermelha e sobre sua moto de mesma cor, representa uma imagem que integra o imaginário coletivo universal quando o assunto são filmes animados para público adulto. Primeira animação japonesa exibida em cinemas brasileiros, trata-se de uma obra-prima irretocável e, mais do que isso, obrigatória. – por Conrado Heoli
Túmulo dos Vagalumes (Hotaru no Haka, 1988)
Esta produção divide com Meu Amigo Totoro (1988) a posição de clássico máximo dos Studio Ghibli. É impossível presenciar uma sessão em que a plateia não se emocione profundamente com a história dos irmãos Seita e Setsuko. Ambientada na Segunda Guerra Mundial, esta adaptação do livro de Akiyuki Nosaka mostra a sobrevivência da dupla em meio às tragédias de uma triste batalha que ceifou a vida de milhares de pessoas, entre elas crianças inocentes. Após o pai ser convocado para defender o Japão na Guerra, os irmãos ficam sob a tutela da mãe, esta que morre em virtude de um bombardeio norte-americano. Órfãos, eles acabam soterrados pela miséria e pelo abandono que assola todos os japoneses. Seita e Setsuko perambulam famintos e doentes, sendo ainda marginalizados pelos adultos da região em que moram. A direção e roteiro de Isao Takahata constroem um belíssimo filme melodramático de maturidade profunda, retratando de maneira sincera os efeitos trágicos da guerra nos jovens e crianças inocentes do Japão. – por Renato Cabral
O Fantasma do Futuro (Ghost in the Shell, 1996)
Marco da animação japonesa, a transposição para os cinemas do mangá de Masamune Shirow, este publicado de maio de 1989 a setembro de 1991, se concentra na Major Motoko Kusanagi, personagem cujo corpo híbrido exemplifica a revolução científica que em 2029 permite a associação do orgânico com o inorgânico. O filme de Mamoru Oshii é um expoente do cyberpunk, sendo por muitos considerado, na verdade, um exemplar pós-cyberpunk, devido à maneira como esquadrinha o futuro, entrelaçando questões filosófico-existenciais e potenciais desdobramentos da onipresença do virtual, bem como o protagonismo dos demais processos que fundem homem e máquina, assim colocando em xeque conceitos como consciência e subjetividade. Apontado como uma das obras que mais influenciou as irmãs Lilly e Lana Wachowski no desenvolvimento da saga Matrix, o longa-metragem de Oshii talvez só encontre equivalência no quesito importância, dentro da produção japonesa e do gênero ao qual se filia, no igualmente contundente Akira (1988), que também promove um choque entre o indivíduo e os poderes tencionados a colocá-lo sob cabresto. Após anos circulando por Hollywood, está finalmente sendo filmada uma versão live-action, na qual a Major Kusanagui será interpretada por ninguém menos que Scarlett Johansson. É esperar para ver se Rupert Sanders, diretor encarregado da empreitada arriscada, faz jus a esta obra-prima. – por Marcelo Müller
As Bicicletas de Belleville (Les triplettes de Belleville, 2002)
À primeira vista, a estética do filme de Sylvain Chomet pode ser considerada bizarra, mas não menos que a própria trama. Com praticamente nenhum diálogo e contando com uma bela trilha sonora, a história da Madame Souza é contada com todos os recursos visuais possíveis. Ela é a avó de Champion, um rapaz que descobre o interesse por bicicletas e se torna um grande ciclista. Durante a Tour de France ele é sequestrado, fazendo com que a idosa tenha que resgatá-lo com a ajuda do cachorro Bruno e das Trigêmeas de Belleville, um trio de cantoras de cabaret (quase) aposentadas. Belleville é uma grande metrópole onde todo mundo está bem acima do peso – até “estátua da liberdade” tem um sorvete na mão. É uma crítica voraz, e nem por isso menos divertida, à sociedade de consumo, ao próprio capitalismo e, como o título mesmo sugere, ao caos promovido por um trânsito congestionado por automóveis e combustíveis poluentes. Acima de tudo, um ode às pessoas mais velhas, aqui, as verdadeiras heroínas do conto. Pode não ser dirigido às crianças, que certamente estranhariam a falta de falas e alguns subtextos, mas é entretenimento de alta qualidade e, acima de tudo, original de verdade. – por Matheus Bonez
Persépolis (Persépolis, 2007)
Esta é uma obra muito pessoal da diretora Marjane Satrapi, também autora da História em Quadrinhos na qual o filme se inspira: afinal, trata-se de sua autobiografia, marcada por todos os percalços de ser uma menina adolescente no Irã pós-Revolução Islâmica, em princípios da década de 80. Com a leveza de um olhar jovem e antenado com a cultura pop, Satrapi (em parceria com o codiretor e roteirista Vincent Parronaud) cria uma animação de traços simples, mas marcantes, que aborda, sem travas, temas como a descoberta da sexualidade e a repressão política e comportamental. A diretora aposta numa narrativa em grande medida maniqueísta sobre o Irã recente, algo muito próximo do que Ben Affleck fez alguns anos depois em Argo (2012). No entanto, o fato de Satrapi ter sido vítima direta do regime instalado naquele país torna mais justificável esse seu olhar em preto e branco (cores que, aliás, predominam em seu filme, talvez não à toa), que contrapõe sem nenhuma sutileza a opressão representada pelo islamismo à liberdade da cultura ocidental. – por Wallace Andrioli
Mary e Max: Uma Amizade Diferente (Mary and Max, 2009)
Neste fantástico longa animado, realizado em stop motion, o diretor e roteirista Adam Elliot conta a história da amizade inusitada que conecta uma garotinha da Austrália e um senhor recluso de Nova Iorque. Mary (vozes, respectivamente na infância e na maturidade, de Bethany Whitmore e de Toni Collette) envia uma carta para um endereço escolhido aleatoriamente na lista telefônica, sem imaginar que o destinatário seria alguém tão solitário quanto ela. Max (voz de Philip Seymour Hoffman) é um homem obeso de 44 anos que vive sozinho e sofre da Síndrome de Asperger, o que dificulta suas interações sociais e afetivas. Além de ser belíssimo visualmente – o design do filme também é trabalho de Elliot – e de fazer um ótimo jogo com as cores (e ausência delas), este é um dos filmes de animação mais tocantes e emocionalmente carregados dos últimos tempos. Embora traga muitos elementos de comédia, com uma visível preferência pelo humor negro, o longa é capaz de abordar temas difíceis como a depressão, o suicídio, o abandono, bullying e alcoolismo com surpreendente honestidade, criando um universo que consegue ser extremamente parecido com o real mesmo composto por bonecos de massinha. – por Marina Paulista
Anomalisa (Anomalisa, 2015)
Este drama romântico realizado em formato de stop motion reúne na direção o já conhecido e destacável Charlie Kaufman e o novato Duke Johnson. Eles exploram a história do perturbado Michael (David Trewlis) e de seu encontro com a excêntrica Lisa (Jennifer Jason Leigh) numa noite, em um quarto de hotel. O desenvolvimento é repleto de pequenos acontecimentos cotidianos, flertes e um romantismo fofo muito característico dos filmes roteirizados anteriormente por Kaufman. A trama é envolta numa estética surrealista que trabalha um transtorno psicológico chamado de Síndrome de Fregoli, em virtude do qual a pessoa acredita que as outras ao seu redor podem se disfarçar, passando-se por indivíduos diferentes. É uma forma dos diretores e roteiristas explorarem o conceito romântico que a entrada de Lisa dá à trama. Ela é como uma anomalia dentro daquele mundo solitário de Michael. Entre tantas passagens excepcionais, são destacáveis a cômica cena de sexo entre os personagens e ainda quando Lisa canta Girls Just Wanna Have Fun, de Cyndi Lauper. Todas muito simples, mas memoráveis nessa melancólica, mas ainda linda história de amor. – por Renato Cabral
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