Fundamentalismo, homens-bomba, guerras civis. Os conflitos no Oriente Médio são noticiados pela imprensa ocidental como as maiores barbáries da humanidade. Não deixam de ser, mas, de uma forma geral, falta contextualização sobre a política social, econômica e religiosa da região, o que poderia ajudar a compreender (não aceitar) melhor como as coisas funcionam. Discussões à parte opinando sobre os diferentes lados, nesta semana chega às telas 118 Dias, filme de Jon Stewart sobre o jornalista Maziar Bahari, detido e torturado pelo exército do Irã enquanto trabalhava no país em 2009. Um tema tão importante e tão mal explicado merece atenção especial. Por isso, a equipe do Papo de Cinema resolveu eleger dez filmes que contextualizam de diferentes formas os conflitos do continente. Confira!
Kedma (2002)
Indicado a Palma de Ouro do Festival de Cannes e vencedor do prêmio da crítica do Festival Internacional de São Paulo, em 2002, Kedma, do isralense Amos Gitai, traz, de forma realista, uma ótima reflexão sobre o conflito Israel x Palestina. Ao invés de mostrar a história do sofrimento judaico como tantos outros filmes, Gitai escolhe contar a história do conflito entre árabes e judeus de uma forma provocadora, mostrando pontos de vista e verdades, algo fundamental ao abordar uma questão tão polêmica como o conflito e a formação de Israel. Obviamente, isso desagradou seu país, visto que o filme, vencedor no Brasil e indicado em Cannes, ganhou apenas o prêmio de melhor figurino no “Oscar” de Israel. O fato, no entanto, não diminui – muito pelo contrário – a ótima obra, que se passa em maio de 1948, pouco antes da criação do Estado de Israel. Kedma é o nome do navio que levou alguns judeus sobreviventes dos campos de concentração à Palestina e o ponto de partida de tudo, tanto do filme quanto do próprio Estado de Israel. A obra é cheia de longos planos-sequências e se destaca também por ter pouquíssimos diálogos. As imagens fortes, que dão a dimensão do tamanho do sofrimento e do terror na região, são pontos fortes da película, mas os raros diálogos e, principalmente, os monólogos ao longo da obra, a tornam especial. O monólogo do imigrante que vira combatente, Janusz (Andrei Kashkar), fecha o filme e é belíssimo e emocionante. Aos gritos, babando, descontrolado e enérgico, o desabafo final é a melhor parte da obra e, assim como toda a película, traz uma reflexão muito interessante. – por Gabriel Pazini
Paradise Now (2005)
Em Paradise Now, de Hany Abu-Assad, acompanhamos 48 horas na vida de dois amigos de infância: Said e Khaled. Destacados como homens de confiança, ambos são recrutados para um trabalho que só pode ser feito uma vez: amarrar seus corpos em bombas e servir como detonador em alguma região de Tel Aviv. Khaled é o mais animado com a tarefa, certo de que encontrará Alá no outro lado. Said, no entanto, está apaixonado por uma garota e tendo dificuldades para entender o porquê de seu sacrifício. Hany Abu-Assad nos entrega um longa-metragem com um ritmo ágil, conseguindo transmitir tensão ao espectador. Também se mostra um bom diretor de elenco, tirando ótimas performances do duo principal: Kais Nashef (Said) e Ali Suliman (Khaled). A edição de Sander Vos ajuda bastante, tendo um tom nervoso principalmente no segundo ato. Indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e vencedor do Globo de Ouro na mesma categoria, Paradise Now sofreu à época com as polêmicas que sua temática gerou, principalmente pela leitura de alguns de que Assad seria a favor dos homens-bomba. Uma interpretação preguiçosa e superficial dado o desenrolar da história. O fato de o cineasta não demonizar aqueles homens não o coloca a favor da prática, de forma alguma. – por Rodrigo de Oliveira
O Caçador de Pipas (The Kite Runner, 2007)
O Caçador de Pipas, romance de Khaled Rosseini lançado em 20013, foi um dos maiores sucessos literários do milênio até agora. A adaptação para o cinema de Marc Forster teve uma recepção bem mais morna. Em parte, por causa da direção que ousou muito pouco e acabou tornando uma obra mais palatável, amenizando o peso dramático e a violência contida no livro. No entanto, merece ser conhecida a história de Amir e Hassan que, em meio a um Afeganistão condenado a perdição na década de 70, constroem uma amizade a despeito da diferença de classes sociais. Depois de um triste erro de um deles, acabam se separando por décadas, até que o destino faz com que Amir tenha de voltar ao país natal e reencontrar o amigo. O filme ganha contornos líricos ao ser embalado por uma tocante trilha de Alberto Iglesias, indicada ao Oscar. A produção foi marcada pela polêmica envolvendo os atores mirins, cujas famílias se incomodaram com as cenas de sugestão de estupro. A participação das crianças no filme acabou por lhes causar ameaças nas cidades onde viviam. – por Giordano Gio
Valsa com Bashir (Vals Im Bashir, 2008)
Um homem conta a seu amigo sobre um sonho recorrente, no qual é perseguido por 26 cães. Os dois chegam à conclusão de que essa cena tem a ver com os traumas sofridos no campo de batalha, numa época em que ambos defenderam o exército de Israel. Valsa com Bashir, escrito e dirigido por Ari Folman, ele próprio ex-combatente, é uma espécie de documentário animado que resgata as memórias do autor sobre o massacre de Sabra e Shatila, capítulo marcante da Guerra do Líbano, ocorrida de 1982. É um ótimo exemplo de como o cinema pode servir a causas humanistas, uma vez que além de dissecar os procedimentos de guerra, denuncia a selvageria da batalha e a desumanização gradual daqueles que precisam pegar em armas para atacar e defender. Ari Folman narra com uma dureza quase poética o horror do conflito, suas implicações, mostrando sequelas físicas e psicológicas. É o tipo de filme que, para além da excelência técnica e, neste caso, do inusitado formato animado, deve ser visto, também como alerta às futuras gerações. Pena que os conflitos entre israelenses e palestinos sejam ainda tão atuais e, ao que parece, longe de uma resolução pacífica. – por Marcelo Müller
Lemon Tree (Etz Limon, 2008)
O título de pequena obra-prima cinematográfica pode definir aquela produção modesta, sem muitos recursos financeiros, atores de renome internacional ou lançamento em incontáveis salas, que, independente de tudo isso, toca e modifica seu espectador por infindáveis qualidades. O drama Lemon Tree, do israelense Eran Riklis, contém tais méritos e tantos outros, porém destaca-se ainda mais por abordar soberbamente os conflitos entre Israel e Palestina a partir de um microcosmo metafórico e ácido como os limões de seu título. Os frutos fazem referência à plantação da viúva Salma, que vive solitária enquanto percebe os dias passarem por ela, sem grandes expectativas ou aflições – apesar da situação política de seu país. Tudo se altera quando o ministro de defesa israelense muda para a casa ao lado, e percebe nos limoeiros de Salma uma ameaça à sua segurança. A narrativa se desenvolve enquanto os personagens e suas histórias se entrelaçam em tramas que jamais poderão ser desfeitas. O roteiro de Suha Arraf e Riklis é certeiro em suas críticas e se torna ainda maior pela direção segura do cineasta. Hiam Abbass, que interpreta Salma, está irretocável e é a alma do filme que protagoniza – uma pequena grande pérola que deve ser (re)descoberta. – por Conrado Heoli
Zona Verde (Green Zone, 2010)
Existe uma linha de pensamento de que fazer filmes sobre guerras duradouras e polêmicas é perigoso. O cineasta Paul Greengrass, que começou a carreira como documentarista, ignorou solenemente essa ideia e fez uso de outra, o livro A Vida Imperial na Cidade Esmeralda, para produzir este longa. Famoso pela trilogia Bourne, chamou um “soldado” fiel e conhecido do público, Matt Damon, para liderar a empreitada nas telas, denunciando os desatinos americanos durante a Guerra do Iraque. Orçado na casa dos US$ 100 milhões, o título não foi bem de bilheteria, faturando quase US$ 95 milhões no mundo, mas está longe de ser ruim. Na história, o personagem do astro está em Bagdá, comandando uma equipe de buscas das famigeradas armas de destruição em massa, quando se depara com algo silencioso e igualmente destruidor: a mentira de seus compatriotas. Com o climão de conspiração instaurado, uma câmera nervosa, imagens granuladas e boa captura de sons, Greengrass mergulha você num intenso jogo de gato e rato, com direito a sequências de tirar o fôlego. Assim, se Zona Verde cometeu outro pecado que prejudicou o desempenho, um deles foi ser um tremendo cartão vermelho para a política americana de ocupação. – por Roberto Cunha
Incêndios (Incendies, 2010)
Baseado na peça de Wadji Mouawad – recentemente encenada no Brasil com Marieta Severo à frente do elenco – este poderoso drama colocou o cineasta canadense Denis Villeneuve no radar de Hollywood. Mas afinal, o que possui de tão especial? Muito, e o melhor é que essa resposta não é entregue de mãos beijadas, mas envolta em uma história de vários níveis de leitura e interpretação. Nawal Marwan está morta, e como herança deixou para o casal de filhos gêmeos um peso que aos poucos eles descobrirão ser difícil carregar, mas com o qual ela conviveu por quase toda a sua vida adulta. Nesse processo de resgate às origens, os dois herdeiros deverão seguir até o Oriente Médio atendendo às recomendações finais deixadas pela mãe, num processo doloroso e bastante sofrido que servirá para adquirirem uma nova consciência a respeito da própria família e quem foi, realmente, a mulher que os gerou. Um filme difícil de se assistir, mas tão bem feito que não abre espaço para nenhum tipo de arrependimento, em ambos os lados da tela. Merecidamente indicado ao Oscar como Filme Estrangeiro, constitui em uma narrativa essencial para entendermos esse sofrido novo mundo que estamos deixando aos nossos filhos. – por Robledo Milani
Cinco Câmeras Quebradas (Five Broken Cameras, 2011)
Indicado ao Oscar de Melhor Documentário em 2013, este é um filme feito na base da coragem. Em 2005, o agricultor palestino Emad Burnat compra uma câmera para filmar o nascimento de seu filho. No entanto, ao mesmo tempo, um muro separatista começa a ser construído pelo governo israelense no vilarejo de Bil’in, onde ele mora. É então que ele decide filmar a resistência da população local contra isso, em protestos pacíficos que são recebidos com hostilidade pelo exército israelense. Como o próprio título indica, a câmera utilizada por Burnat não é a mesma que chega ao final do filme. No total, cinco câmeras captaram o material que vemos ao longo do documentário, já que o equipamento ora cai, ora é esmagado, ora recebe um tiro. Se isso já é responsável por dar certo peso ao filme, as imagens que Burnat grava (e que se tornaram uma narrativa com a ajuda do cineasta Guy Davidi) conseguem retratar de maneira visceral e melancólica os embates entre exército e população. Cinco Câmeras Quebradas acaba sendo um documentário relevante, até por mostrar um ponto de vista interessante sobre uma parte específica de um conflito arrasador. – por Thomás Boeira
Argo (2012)
Argo é um trabalho consistente de Ben Affleck como diretor, nos transportando para os anos 70, durante a famosa crise de reféns na embaixada americana no Irã. Revolucionários iranianos mantiveram em cativeiro boa parte dos trabalhadores estadunidenses, demandando que o governo de Jimmy Carter devolvesse ao país o Xá Mohammed Reza Pahlavi, que se encontrava nos Estados Unidos, recebendo tratamento médico. Durante a investida dos manifestantes, seis americanos conseguem escapar da embaixada e buscam asilo na casa de um diplomata canadense. Cabe ao agente especial da CIA Tony Mendez (Affleck) criar um plano arrojad: se passar por um produtor de cinema buscando paisagens exóticas para um filme de ficção científica chamado, justamente, Argo, entrando desta forma no Irã e retirando seus compatriotas do esconderijo. O longa é corajoso o suficiente ao não retirar toda a culpa da situação dos reféns do governo norte-americano (afinal de contas, foram eles quem bancaram o Xá por tantos anos governando o Irã) e mostrar o descontentamento do próprio povo iraniano, além de ser correto o bastante para conseguir passar toda a angústia e periculosidade daqueles anos intensos. – por Rodrigo de Oliveira
Além da Fronteira (Out in the Dark, 2012)
Este Romeu e Julieta versão gay traça um panorama muito interessante dos conflitos no Oriente Médio que vão muito além do romance homossexual dos protagonistas. O debut do diretor isralense Michael Mayer conta a história de amor de Joy (Michael Aloni), jovem advogado israelense, e Nimr (Nicholas Jacob), estudante palestino, após se conhecerem em um bar gay de Tel Aviv. O longa capta um perfil interessante dos conflitos políticos da região ao mostrar que o irmão de Nimr pode estar envolvido com rebeldes armados e ganha proporções ainda maiores quando toca no assunto “sair do armário”. A família do protagonista é compreensível, mas como se assumir com a intolerância religiosa e cultural? Traçando um paralelo entre o pano de fundo trágico do terrorismo com a paixão crescente e sem soluções à vista para o casal, Além da Fronteira retrata não apenas a sexualidade, mas sim as diferenças culturais que, se o mundo fosse perfeito, não atrapalhariam o amor, independente de sua forma. É uma visão macro de um conflito de gerações realizada através de um nicho muito específico. O que já torna a produção um grande filme. – por Matheus Bonez