Como na vida, nos filmes a relação entre irmãos nem sempre é fraternal. Considerado um dos grandes temas do cinema, exatamente porque suas engrenagens são determinantes, a família é matéria-prima constante de produções que buscam refletir profundamente sobre a diversidade delas, ou mesmo tirar graça de seu funcionamento truncado. Mais precisamente no que tange à dinâmica entre irmãos homens – como a de O Poderoso Chefinho (2017), uma das principais estreias da semana –, podemos ter exemplares que retratam a rivalidade, o amor incondicional ou ambos, não raro um disfarçado do outro. Resolvemos, então, fazer esta seleção com alguns dos principais filmes sobre irmãos, nos quais essa interação tão emblemática é imprescindível à trama, quando não o seu único motivo de ser. Confira e não deixe de comentar, especialmente se tiver irmãos.
O Caso dos Irmãos Naves (1967)
Lançado em 1967 – ou seja, ainda nos primeiros anos da Ditadura Civil-Militar – o segundo longa de Luis Sérgio Person refletia uma vontade do diretor de, ao mesmo tempo, exercer sua veia crítica e se comunicar com o grande público. Parte de um episódio real que se tornou notório no noticiário brasileiro: Benedito Pereira Caetano sumiu levando consigo a quantia de 90 contos de réis. O que teria lhe acontecido? A comunidade pressiona a polícia para que uma solução seja apresentada. E ela vem da pior forma: com a prisão de Joaquim (Raul Cortez) e Sebastião Naves (Juca de Oliveira), provavelmente os últimos a tê-lo visto. Sem uma única prova ou mesmo o corpo do dito falecido, os dois são expostos a degradantes formas de tortura para confessarem um crime que, obviamente, não cometeram. Cortez e Oliveira são os personagens-título em composições corretas, mas o show fica por conta das atuações de Anselmo Duarte, como o carrasco dos dois, e de John Herbert, como o advogado de defesa das vítimas de tamanha barbaridade. Premiada no Festival de Brasília, é uma obra que segue ecoando até hoje, exatos cinquenta anos após a sua estreia, como um importante discurso de denúncia e justiça. – por Robledo Milani
Trinity é Meu Nome (Lo chiamavano Trinità, 1970)
Personagens icônicos não faltam no western spaghetti, subgênero que alcançou tanto sucesso quanto seu antecessor, o western clássico norte-americano. Mas, no início dos anos 70, foi uma dupla que assumiu o reinado do faroeste europeu. Neste filme dirigido por Enzo Barboni, Terence Hill e Bud Spencer dão vida, respectivamente, aos irmãos Trinity e Bambino, com personalidades diferentes, mas a mesma habilidade para lidar com os vilões do velho-oeste que parecem brotar de trás dos balcões dos saloons. Juntos ou em performances solo, eles protagonizam duelos engraçadíssimos, com altas doses de humor físico, inaugurando a quarta e última fase do subgênero, conhecida por trocar a violência extrema pelo pastelão. O roteiro não é nem um pouco elaborado, mas permite que Trinity e Bambino executem suas estripulias à vontade, como na cena de um jantar em família nada elegante. Os irmãos ainda marcaram presença em outros longas-metragens, como Trinity Ainda é Meu Nome (1971), também sob a direção de Barboni, Dá-lhe Duro, Trinity! (1972), de Giuseppe Colizzi, e Par ou Ímpar (1978), de Sergio Corbucci. – por Bianca Zasso
Irmãos Gêmeos (Twins, 1988)
A ideia era completamente maluca. Em que universo Arnold Schwarzenegger poderia ser irmão gêmeo de Danny DeVito? Apenas neste filme hilariante, dirigido pelo então Midas da comédia Ivan Reitman. Na trama, Schwarzenegger interpreta Julius, homem culto e educado que descobre, depois de adulto, ter um irmão gêmeo, separado dele na maternidade. Esse laço fraternal que nunca conheceu leva o homenzarrão a procurar por Vincent (DeVito), baixo, careca, fora de forma e irrecuperavelmente malandro. Gêmeos? Como seria possível? Os dois foram o resultado de uma experiência científica um tanto equivocada, que gerou rebentos distintos. Não bastasse essa premissa louca, o longa-metragem foi uma verdadeira incógnita na época. Schwarzenegger era um astro de filmes de ação que nunca havia feito comédia. Saberia fazer rir o fisiculturista austríaco? A resposta é um sonoro sim. A química entre o astro e DeVito é formidável, com ambos fazendo escada para os momentos cômicos do outro. Depois de tentarem repetir a fórmula sem sucesso em Junior (1994), diretor e atores estão planejando há anos uma continuação, chamada Trigêmeos. E, desta vez, o outro irmão seria interpretado por Eddie Murphy. Com um bom roteiro, dá para ver essa sequência fazendo muito sucesso. – por Rodrigo de Oliveira
Gêmeos: Mórbida Semelhança (Dead Ringers, 1988)
Elliot e Bervely (Jeremy Irons) são irmãos gêmeos que, desde pequenos, nutrem curiosidade pelo corpo humano e pela fertilidade. Não à toa, crescem e se transformam em famosos ginecologistas. Dividem tudo: a clínica, o apartamento em que moram e, claro, as mulheres. Enquanto o primeiro é sem escrúpulos, objetivo e direto, o segundo é mais metódico, porém, muito mais inseguro em suas atitudes nas relações humanas. O que está prestes a cortar o cordão umbilical deles é uma paciente por quem nutrem mais que desejo. Bervely, então, se transfigura completamente a partir da experiência que leva a resultados catastróficos. David Cronenberg sempre utilizou a tecnologia como um acessório transformador do ser humano. Se até então a interferência externa modificava o corpo de seus personagens de forma muitas vezes bizarra, aqui a sutileza (ainda que até certo ponto) é quem tem a voz. A medicina ligada ao corpo feminino produz efeitos psicopáticos nesses homens brilhantemente interpretados por Irons. Dois personagens que descobrem na separação figurada e não menos realista do cordão umbilical o quão perigosa pode ser a independência e a química com uma terceira pessoa. Uma pequena obra-prima, relativamente esquecida pelo público geral, mas que revela toda a força psicológica do cineasta canadense. – por Matheus Bonez
Um Drink no Inferno (From Dusk Till Dawn, 1996)
Seth (George Clooney) é um charmoso fora-da-lei que só quer ganhar dinheiro fácil para aproveitar o pouco da vida instável que leva, mesmo mostrando desconforto por ser desonesto. Já seu irmão, Richard (Quentin Tarantino), é um reflexo distorcido do que pensa ser. Enquanto Seth mata apenas quando preciso, Rick tira vidas por prazer, com requintes de crueldade. Por força do destino, inacreditavelmente, esses dois indivíduos se tornam anti-heróis de uma incrível resistência a vampiras sexys, lideradas pela rainha do pandemonium, interpretada por Salma Hayek. Elas põem à prova as habilidades da dupla, bem como representam tentações, no pub Titty Twist, na fronteira entre os Estados Unidos e o México. Mais que um trash com a cara do cineasta Robert Rodriguez, o longa apresenta uma interessante relação de dependência entre irmãos problemáticos. Mesmo que Richard mostre um nítido distúrbio social, Seth faz o que pode para defendê-lo e, ao mesmo tempo, doutriná-lo. O timing cômico e familiar exposto na tela por Tarantino e Clooney conquista o espectador neste que é um dos cults mais lembrados dos anos 90. – por Victor Hugo Furtado
Os Donos da Noite (We Own the Night, 2007)
Os irmãos Bobby (Joaquin Phoenix) e Joseph (Mark Wahlberg), personagens deste excelente e subestimado filme de James Gray, estão em lados opostos da lei. Enquanto o primeiro gerencia uma boate frequentada pela máfia russa, o segundo, policial, comanda uma força-tarefa com o objetivo de prender justamente os criminosos que circulam pela tal boate. Gray elege Bobby como protagonista, por enxergar nele maiores conflitos, já que o sujeito, proveniente de uma família de policiais, resiste a seguir esse caminho, num movimento semelhante, ainda que invertido, ao de Michael Corleone no primeiro filme da trilogia O Poderoso Chefão (1972, 1974, 1990). E, se na obra-prima de Francis Ford Coppola era um atentado ao pai que arrastava Michael para os negócios da família Corleone, aqui é o brutal ataque sofrido pelo irmão que aproxima Bobby do ethos policial, não tão distante daquele compartilhado pela máfia italiana. É, portanto, o componente fraternal que guia a narrativa criada por Gray – que, não à toa, se conclui com uma declaração de amor (contida, como seria de se esperar de personagens brutos num meio predominantemente masculino, mas verdadeira) entre irmãos. – por Wallace Andriolli
Antes que o Diabo Saiba que Você Está Morto (Before the Devil Knows You’re Dead, 2007)
Os irmãos Andy (Philip Seymour Hoffman) e Hank (Ethan Hawke) precisam desesperadamente de dinheiro. O primeiro, além de sustentar seu vício, pretende fugir para encobrir os desfalques aplicados na empresa onde trabalha. Já o segundo está devendo três meses de pensão da filha à ex-esposa. Para sanar seus problemas, eles arquitetam um plano aparentemente perfeito: assaltar a joalheria de seus pais, sem violência ou prejuízo aos envolvidos. O golpe, no entanto, não sai como o esperado, levando a uma espiral de tragédias. Neste seu filme-testamento, o grande Sidney Lumet entrega uma obra crua e emocionalmente dilacerante sobre um núcleo familiar sufocado por conflitos passados e pela fatalidade do presente. Com uma narrativa fragmentada, de idas e vindas temporais, Lumet reafirma seu domínio pleno da linguagem e sua habilidade na condução do elenco, que conta ainda com Marisa Tomei (excepcional), Albert Finney, Amy Ryan e Michael Shannon. Mas é mesmo a dupla principal, que encarna a rivalidade fraternal – incluindo traições, ciúmes e mágoas – a força motriz do longa. Hawke emana a fragilidade e insegurança de Hank, enquanto Hoffman, numa de suas mais brilhantes atuações, carrega toda a amargura e ressentimento de Andy de modo doloroso, num trabalho tão magistralmente pessimista quanto humano. – por Leonardo Ribeiro
Viagem a Darjeeling (The Darjeeling Limited, 2007)
Tratando da incomunicabilidade, esta produção dirigida por Wes Anderson coloca Owen Wilson, Adrien Brody e Jason Schwartzman como irmãos numa trama que se desenrola após o falecimento do patriarca da família. Como forma de retomarem o contato, após anos sem se comunicar, eles decidem viajar rumo à Índia para, posteriormente, desbravar o país de trem. Assim, pretendem se reaproximar e conhecer a cultura local. Contando com interpretações inspiradas, não somente do trio principal, a produção ainda traz participações de atrizes como Anjelica Huston e Natalie Portman, além de Bill Murray. Numa narrativa repleta de grandes talentos, característica dos filmes de Wes Anderson, também há espaço para a apresentação das particularidades de cada um dos irmãos. Seus ressentimentos familiares são atrelados à necessidade do autoconhecimento, também muito presente em produções anteriores de Anderson, como Os Excêntricos Tenenbaums (2001) e A Vida Marinha com Steve Zissou (2004). Entre o funeral, rituais característicos da Índia, meditações e lanceiros, o grupo de irmãos tenta a todo custo se reconciliar, não sem conflitos. Vale destacar que, em entrevistas, Anderson informou ser sua principal inspiração para o filme o clássico Rio Sagrado (1951), dirigido por Jean Renoir, que trata da história de três garotas crescendo na Índia. – por Renato Cabral
Boa Noite, Mamãe! (Ich seh ich seh, 2014)
Escolhido pela Áustria para representar o país no Oscar, concorrendo, assim, na categoria de Melhor Filme Estrangeiro, o projeto dos estreantes em longas de ficção Severin Fiala e Veronika Franz acabou ficando fora do apanhado de finalistas, mas isso não representa demérito. É óbvio que, mesmo para uma categoria menos visada do prêmio da Academia, o filme tinha um tom sombrio demais. Girando em torno dos irmãos Lukas e Elias (vividos pelos gêmeos Lukas e Elias Schwarz), a trama mostra como a dupla lida com sua mãe (Susanne Wuest) numa mansão isolada. Recém-saída de uma drástica cirurgia plástica, a mulher anda pela casa com o rosto coberto de ataduras, o que desperta dúvida nos filhos: aquela “nova” pessoa convivendo com eles é mesmo a sua mãe? Tomados pela paranoia oriunda dessa pergunta, os dois tomam providências radicais para assegurarem a resposta. Força motriz da narrativa, a relação entre Lukas e Elias é obviamente beneficiada pela dinâmica entre os irmãos homônimos na vida real. E quando ambos se entretêm em conversas e maquinações, acreditamos mesmo em sua intimidade, o que é essencial para o plot twist final – que, mesmo podendo ser previsto, não deixa de ser chocante. – por Yuri Correa
Foxcatcher: Uma História que Chocou o Mundo (Foxcatcher, 2014)
O filme de Bennet Miller mostra a história verídica centralizada na figura de um campeão olímpico de luta greco-romana. Mark Schultz (Channing Tatum) chegou ao topo após ser preparado por seu irmão mais velho, David (Mark Ruffalo), um cara tratado no meio como uma verdadeira lenda viva, também portador de uma medalha de ouro das Olimpíadas. Todavia, eis que surge um milionário excêntrico, dominado totalmente pela figura materna, que resolve montar uma equipe para competir nos próximos jogos. A presença de John du Pont (Steve Carell) não altera drasticamente apenas a rotina de treinamento de Mark, atleta que agora tem as melhores condições que o dinheiro pode comprar, ainda que para isso escolha viver longe daquele que lhe ensinou tudo. A própria relação do protagonista com David é completamente alterada pela influência desse homem imprevisível, que vai de um sorriso fraterno de satisfação ao franzir do cenho que denota frustração em segundos. Miller captura muito bem a deterioração da dinâmica entre os irmãos, explorando a miserabilidade que vai tomando conta de suas vidas, quando influenciados por uma terceira pessoa que promete mundos e fundos, de um ponto em diante, a ambos. A tragédia começa com a renegação de Mark ao irmão mais velho. – por Marcelo Müller