Dizer que 2020 foi um ano difícil para o audiovisual soa como uma obviedade: as salas de cinema fecharam devido à pandemia de Covid-19, diversas produções se interromperam ou foram adiadas indefinidamente, e a doença gerou graves perdas de artistas queridos e pessoas próximas. Por isso, a tradicional lista de melhores filmes de 2020 reflete o período de crise – o que não implica na qualidade inferior dos títulos selecionados, e sim na noção de uma cinefilia dispersa.
Enquanto a temporada trouxe uma quantidade de estreias mais restrita do que nos anos anteriores, os lançamentos se dispersaram: algumas exibições ocorreram no cinema, até março de 2020, e outras se dividiram entre inúmeras plataformas de streaming. Assim, os colaboradores, redatores e editores do Papo de Cinema nem sempre assistiram aos mesmos títulos, visto que não havia um palco “central” de exibição para para nortear escolhas, como era o caso das salas de cinema até então.
Como resultado, nossos dez filmes preferidos trazem mais produções norte-americanas do que de costume – o cinema independente europeu e asiático foi mais diretamente afetado pela crise, e apesar de exibido em festivais, não ganhou lançamento comercial em mesma proporção dos títulos dos Estados Unidos. Nenhum documentário se posicionou no top 10, que pelo menos inclui duas obras brasileiras (ou três, se contarmos uma coprodução minoritária) e três filmes dirigidos por mulheres.
Estão presentes ficções científicas, filmes de guerra e filmes de terror na seleção variada em termos de tema e formatos. Diversos títulos refletem indiretamente o período de clausura: Robert Pattinson, ator contemplado em duas produções diferentes, está preso numa ilha em O Farol, e isolado no espaço em High Life: Uma Nova Vida. O ano pertence aos personagens solitários, que lutam contra um sistema opressor (Pacarrete, Uma Vida Oculta, Antologia da Cidade Fantasma) dentro de propostas radicais (o resgate do preto e branco, da película, da janela quadrada da imagem).
Há muito amor nestas histórias, embora se trate de um afeto desesperado, manifestando-se às vezes de maneira destrutiva (em High Life, A Despedida, Retrato de uma Jovem em Chamas). Abaixo, você descobre a lista completa, e ao final, descobre os vinte filmes preferidos de cada membro do Papo de Cinema. Segue o melhor do cinema neste período de crise – o retrato de um ano em chamas:
10º High Life: Uma Nova Vida (Claire Denis, 2018)
França / Reino Unido / França / Alemanha / Polônia
Talvez poucos cinéfilos esperassem de Claire Denis uma ficção científica sobre presidiários enviados ao espaço, envolvidos num experimento forçado de inseminação artificial. A cineasta francesa se dedica à fantasia misturada aos problemas típicos do realismo. Robert Pattinson lidera o grupo dos encarcerados, presos numa cápsula sob o controle rígido de uma cientista (Juliette Binoche). Neste espaço inóspito, um bebê dá seus primeiros passos. O resultado é perturbador, no melhor sentido do termo.
Segundo o crítico Marcelo Müller, “diferentemente de boa parte das experiências cinematográficas que chegam diariamente ao nosso circuito, nas quais ao espectador é dada uma noção o mais exata possível sobre quando e onde as histórias estão se passando, aqui esses suportes são deliberadamente retirados”. Leia o texto na íntegra.
9º A Despedida (Lulu Wang, 2019)
Estados Unidos / China
Após o filme de uma diretora conceituada como Claire Denis, a nona colocação pertence à jovem diretora Lulu Wang. A cineasta efetua uma combinação preciosa entre o drama familiar tradicional e as composições típicas do cinema “de arte”, pela história de uma jovem americana (Awkwafina) visitando os parentes na China quando descobre a doença grave da avó. Tios, primos e outros familiares se reúnem para um casamento organizado às pressas, para aproveitar a presença da matriarca. O drama cativou tanto a redação que dedicamos uma edição inteira de nosso podcast semanal ao filme.
“Wang conduz a narrativa de forma bastante sóbria: a câmera quase sempre é estática; a trilha sonora por vezes é recolhida, transmitindo (e potencializando) o respeito à dor alheia; as transições são suaves e pausadas, em uma edição sem qualquer arroubo. A diretora ainda aproveita a oportunidade para estabelecer um interessante paralelo entre as gerações”. Leia na íntegra o texto de Francisco Russo.
8º 1917 (Sam Mendes, 2019)
Reino Unido / Estados Unidos
Um dos maiores destaques da última cerimônia do Oscar, e principal concorrente de Parasita (2019) pelo reconhecimento da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, este drama de guerra impressiona tanto pela proeza técnica e estética (a simulação de um complexo plano-sequência ao longo de cerca de duas horas) quanto pelo retrato humano durante a Primeira Guerra Mundial. Se Parasita não conquistou uma posição no top 10 do site em 2019, 1917 chegou à sétima colocação entre as estreias de 2020.
“O filme resgata a expressividade dos trajetos dramáticos pelas trincheiras. Em meio a esse verdadeiro tour de force, Mendes sabe exatamente quando migrar do íntimo ao grandiloquente, com a maestria que lhe é contumaz, propondo bem mais que um mero espetáculo”. Leia na íntegra a crítica de Marcelo Müller.
7º Joias Brutas (Joshua Safdie e Ben Safdie, 2019)
Estados Unidos
O drama estrelado por Adam Sandler dividiu a redação do Papo de Cinema: enquanto alguns membros da equipe sequer o colocam entre os melhores do ano, outros o posicionam entre seus preferidos do ano. Os irmãos Safdie trabalham com um estilo bem peculiar: a câmera na mão, tremendo de um rosto ao outro, enquanto os personagens falam ao mesmo tempo e cada ação se mistura ao conflito seguinte. A rotina de Howard, vendedor de joias, se transforma num caos finamente orquestrado.
“Os realizadores deflagram diversas situações que comprovam a imensa estrela do personagem de Adam Sandler, com isso quebrando sutilmente expectativas, brincando incessantemente com lugares-comuns cinematográficos. Benny e Josh Safdie subvertem a lógica comum”. Leia na íntegra a crítica de Marcelo Müller.
6º Pacarrete (Allan Deberton, 2019)
Brasil
O primeiro longa-metragem dirigido por Allan Deberton tem despertado paixões através dos inúmeros festivais por onde passa. Depois de vencer o Festival de Gramado e se destacar no Cine Ceará, Festival de Vitória, FAM e Mostra de São Paulo, ele enfim estreou oficialmente no circuito comercial. Na trama, a grande Marcélia Cartaxo brilha no papel real da ex-bailarina que vive em Russas, interior do Ceará, sonhando com os dias de glória. Leia a nossa entrevista com o diretor e nossa matéria sobre a carreira da atriz.
Segundo a crítica de Robledo Milani, “Pacarrete não fala: projeta a própria voz sempre um tom acima. Ela não aparece, se manifesta. Não pede, ordena. O jeito particular de agir é na medida exata para criar um tipo como nenhum outro. Pacarrete é a nova Macabéa, uma Laurita envelhecida, a Querência que um dia ganhou a cidade. Marcélia Cartaxo, no papel da protagonista, mergulha de corpo e alma na pele de uma mulher sofrida”. Leia o texto completo.
5º Antologia da Cidade Fantasma (Denis Côté, 2019)
Canadá
Talvez o título mais inesperado da lista seja o projeto canadense, mistura de drama, suspense e terror. Embora seja um autor experiente, Denis Côté não é particularmente conhecido do meio cinéfilo, e este filme passou despercebido pelo circuito brasileiro. Mesmo assim, ficou muito bem posicionado pela redação do Papo de Cinema, graças à capacidade de brincar com medos imaginários: quando um jovem morre numa cidadezinha coberta de neve, acontecimentos estranhos passam a tomar conta do local.
Nas palavras de Marcelo Müller, “Antologia da Cidade Fantasma tem vida própria como metáfora do isolamento, seja ele físico – o interior, a neve -, emocional – as variadas reações ao luto – ou mesmo espiritual – a súbita aparição de tais seres -, seguindo sempre a cartilha do diretor de uma narrativa profundamente rígida, pelo lado estético”. Leia a crítica na íntegra.
4º Uma Vida Oculta (Terrence Malick, 2019)
Estados Unidos / Alemanha
Cineasta recluso, acostumado a poucos filmes ao longo da carreira, Malick encontrou novo ritmo de criação dos últimos anos, investindo em diversos projetos consecutivos. Em comum, eles sustentam a paixão pelas imagens grandiosas, a narração cristã e as histórias metafísicas do homem contra a natureza. O estilo se encaixa na história real de um alemão (August Diehl) que se recusou a apoiar Adolf Hitler durante a Segunda Guerra Mundial, sofrendo duras consequências por isso.
Segundo Francisco Russo, “além de relembrar o espectador sobre o quanto Hitler era idolatrado em sua época, provocando um contrassenso moral entre o que se vê e o que se sabe sobre o futuro próximo, Malick se apropria de tais imagens de forma a promover um contraste visual”. Leia a crítica na íntegra.
3º Sertânia (Geraldo Sarno, 2020)
Brasil
O filme brasileiro de melhor colocação na lista é o belíssimo drama em preto e branco, que conecta a memória do cangaço com o cinema contemporâneo. O drama acompanha a trajetória de um cangaceiro ferido (Vertin Moura), repensando sua trajetória enquanto se confronta com a morte iminente. Sarno abraça uma direção de fotografia “suja”, estourada, além de trechos dos bastidores e outros ruídos incorporados à montagem. Sertânia se tornou um sucesso nos festivais de cinema online, mas assim como no caso dos outros títulos citados, a experiência da tela grande seria insubstituível.
“O diretor resgata não apenas o filme de sertão, o cangaço e o western, mas também as vanguardas dos anos 1960, os delírios messiânicos de Glauber Rocha; um cinema que grita, que se repete em frases e imagens, fornecendo ao espectador uma vertigem equivalente àquela de seus personagens”. Leia na íntegra a crítica de Bruno Carmelo, e a descubra a entrevista com o cineasta.
2º Retrato de uma Jovem em Chamas (Céline Sciamma, 2019)
França
A história de amor entre duas mulheres no século XVIII conquistou dois prêmios no Festival de Cannes, antes de ser aclamado em seu país e pelos festivais de cinema mundo afora. Noémie Merlant vive uma pintora encarregada de fazer o retrato de uma mulher prestes a se casar (Adèle Haenel), porém sem avisar a noiva de suas reais intenções. A direção de fotografia, de arte e a simbologia do quadro unindo as duas mulheres conquistaram o Papo de Cinema, que colocou o filme na vice-liderança.
“O modo como Céline Sciamma entrelaça demandas pessoais, convenções sociais e o papel da arte à representação dos fenômenos subjetivos, embora estes soem como dinâmicas objetivas, é o que faz desse filme um dos melhores lançados por aqui”. Confira na íntegra a crítica de Marcelo Müller.
1º O Farol (Robert Eggers, 2019)
Estados Unidos / Canadá / Brasil
De acordo com a nossa redação, o melhor lançamento no circuito comercial em 2020 é este magnífico filme – o segundo em preto e branco na lista, o segundo de terror, e o segundo estrelado por Robert Pattinson, após High Life: Uma Nova Vida. Através de imagens potentes, o jovem diretor imagina dois homens presos numa minúscula ilha, sem poderem abandonar o trabalho ingrato de cuidadores de um farol. Aos poucos, as provocações entre ambos enveredam pela violência, a loucura e a fantasia.
Nas palavras de Robledo Milani, “entre fantasmas e sereias, seres místicos e alucinações, o que se manifesta como fruto desse conjunto é um horror maior do que qualquer possibilidade concreta, mas, sim, algo só capaz de existir nos mais angustiantes pesadelos. O medo, como se vê, é tão real quanto sonhado”. Leia na íntegra a crítica, e descubra nossa entrevista com Willem Dafoe.
Robledo Milani (editor-chefe)
Marcelo Müller (editor)
Bruno Carmelo (editor)
Victor Hugo Furtado (redator)
Leonardo Ribeiro (Colaborador)