Quais são os mais marcantes personagens da história do cinema brasileiro? Essa foi a pergunta que fizemos a uma dezena de críticos de cinema, membros da equipe do Papo de Cinema e também amigos e colaboradores do site, que responderam listando os seus favoritos. Foram eles: Bruno Carmelo, Marcelo Müller e Robledo Milani, editores do Papo de Cinema, Victor Hugo Furtado e Leonardo Ribeiro, redator e colaborador do site, Alysson Oliveira, do Cineweb, Francisco Carbone, do Cenas de Cinema, e Lucas Salgado, do Confraria do Cinema. Figuras marcantes, como Mazzaropi, por exemplo, ficaram de fora, pois por mais que o tipo interpretado por Amácio Mazzaropi fosse sempre muito parecido, em cada filme ele recebia um nome diferente: o Isidoro Colepícola, Candinho, Chico Fumaça, Jeca Tatu, Pedro Malazartes, Sigismundo, Inácio Pororoca ou mesmo Gostoso, entre outros. Alguns recentes, como a Clara (Sonia Braga), de Aquarius (2016), ou o Capitão Nascimento (Wagner Moura), de Tropa de Elite (2007), ou mesmo clássicos, como Corisco (Othon Bastos) e Antônio das Mortes (Maurício do Valle), de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), ou ainda Sônia Silk (Helena Ignez), de Copacabana Mon Amour (1970), também foram lembrados, ainda que não tenham ficado nesse restrito Top 10! A lista dos que ficaram de fora, aliás, é quase tão notável quanto a desses honrosos finalistas. Tá curioso? Então, não aguarde mais e confira a seguir dez personagens tipicamente brasileiros que estão vivos nas nossas telas e nas nossas lembranças!
10. Dora (Fernanda Montenegro), de Central do Brasil (1998)
Mais uma das milhares de professoras maltratadas pelo sistema de ensino no Brasil, Dora encontrou outra forma de garantir sua sobrevivência: escrevendo cartas para pessoas analfabetas na Central do Brasil, uma das maiores estações rodoviárias do Rio de Janeiro. Ainda que de forma involuntária, acaba ficando responsável por uma criança, o pequeno Josué (Vinícius de Oliveira), e parte com ele pelo interior do país até encontrar o pai do menino. A atuação de Fernanda Montenegro, como Dora, lhe valeu uma indicação ao Oscar – feito inédito, e até então único, para uma artista brasileira – e o Urso de Prata de Melhor Atriz no Festival de Berlim, além de troféus nos festivais de Havana, Ft. Lauderdale, SESC Melhores Filmes, críticos de Los Angeles, National Board of Review, Associação Paulista de Críticos de Arte e no Prêmio Guarani de Cinema Brasileiro. Reconhecimentos não menos do que justos para a maior atriz do cinema nacional!
9. Zé Pequeno (Leandro Firmino), de Cidade de Deus (2002)
“Dadinho o caralh*, o meu nome é Zé Pequeno, porr*!” é, por si só, uma das frases mais emblemáticas do cinema nacional. E quem a diz é, obviamente, Zé Pequeno, que deixou de ser o menino da infância para se tornar um dos maiores bandidos da favela Cidade de Deus, no Rio de Janeiro. Essa apresentação bombástica é resultado da entrega e energia de Leandro Firmino – que, na época, assinava Leandro Firmino da Hora – rapaz daquela mesma comunidade que, interessado em seguir carreira artística, teve com o diretor Fernando Meirelles sua primeira oportunidade como ator (no curta Palace II, 2000). Desde então, Firmino já apareceu em mais de uma dezena de outros projetos no cinema, tendo trabalhado com diretores como Paulo Betti, Moacyr Góes e até o inglês Stephen Daldry! E Cidade de Deus, o filme, levou mais de 3 milhões de espectadores aos cinemas e somou 4 indicações ao Oscar, feito histórico para o cinema nacional, e que até hoje não foi superado.
8. Pixote (Fernando Ramos da Silva), de Pixote: A Lei do Mais Fraco (1981)
Quando Hector Babenco decidiu adaptar o livro de José Louzeiro sobre um garoto de rua envolvido em drogas e prostituição, chegou a conclusão que apenas alguém que tivesse passado por tudo isso poderia ser convincente na ficção. Essa busca o levou a entrevistar mais de 3 mil meninos até encontrar Fernando Ramos da Silva, de 11 anos. Segundo o diretor, o que o levou a escolhê-lo foram seus “olhos tristes”. Sem nunca ter atuado, virou protagonista de um dos maiores sucessos nacionais daquele ano, indicado ao Globo de Ouro, premiado nos festivais de Locarno e San Sebastian, no National Board of Review e pelos críticos de Los Angeles, Boston, Nova Iorque e Sociedade Nacional dos Críticos de Cinema dos EUA. Fernando, no entanto, não soube aproveitar essa fama, e logo voltava à vida de antes, tendo retornado ao vício e ao crime. No dia 25 de agosto de 1987, aos 19 anos, foi morto pela polícia dentro da própria casa, em Diadema, Grande São Paulo. Sua história foi contada no filme Quem Matou Pixote? (1996), de José Joffily, e a atuação de Cassiano Carneiro como Fernando lhe valeu prêmios de Melhor Ator nos festivais de Gramado, Havana e pela Associação Paulista de Críticos de Arte.
7. Dona Flor (Sonia Braga), de Dona Flor e seus Dois Maridos (1976)
Sonia Braga tem uma bela lista de personagens marcantes na tela grande. Ela foi a Moreninha e a Mulher-Aranha, a Dama do Lotação e a Clara do edifício Aquarius. Mas nenhuma tão emblemática quanto a Dona Flor do romance de Jorge Amado – personagem, aliás, também vivida por Giulia Gam (na televisão), Juliana Paes (na refilmagem de 2017) e até por Sally Field (no frustrante remake hollywoodiano de 1982, ainda que aqui tenha sido rebatizada de… Kay!). Mas foi a versão dirigida por Bruno Barreto nos anos 1970 que segue até hoje na memória do espectador brasileiro. Dona Florípedes, cozinheira de mão cheia, vive dividida entre o marido correto e respeitável, o Doutor Teodoro (Mauro Mendonça), e o fantasma do ex-companheiro, um farrista beberrão que morreu após um carnaval de muitos excessos (José Wilker). La Braga chegou a ser indicada ao Bafta – o ‘Oscar’ do cinema inglês – por sua atuação, e o filme foi a maior bilheteria do cinema nacional, com mais de dez milhões de espectadores, por mais de três décadas. Tá bom ou quer mais?
6. Didi (Renato Aragão), de Na Onda do Iê-Iê-Iê (1966)
Ao contrário de uma das suas maiores inspirações, o atrapalhado Mazzaropi, que em cada filme batizava seu personagem com um nome diferente, Renato Aragão percebeu logo que melhor seria criar uma identidade única. Ele até tentou fazer isso com Bonga, de Bonga: O Vagabundo (1971), mas foi só ao resgatar o ingênuo Didi, visto pela primeira vez em Na Onda do Iê-Iê-Iê (1966) – também a estreia do ator no cinema – que o sucesso, enfim, começou a lhe sorrir. Consagrado no humorístico televisivo Os Trapalhões (1969), Didi voltou em A Ilha dos Paqueras (1970), e a partir de Os Trapalhões na Guerra dos Planetas (1978), se tornou sua marca registrada. Ao todo foram mais de 40 aparições – a mais recente, em Os Saltimbancos Trapalhões: Rumo a Hollywood (2017) – entre filmes, telefilmes, especiais e programas de televisão. Didi Mocó Sonrizep Colesterol Novalgino Mufumbbo vai ser sempre lembrado por expressões como “Ô psit!” e “Ô da poltrona” pelos mais de 100 milhões de espectadores que acumulou ao longo de sua carreira (é o maior recordista de público do cinema brasileiro).
5. Jorge, o Bandido da Luz Vermelha (Paulo Villaça), de O Bandido da Luz Vermelha (1968)
Eleito em sexto lugar na lista dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos, em votação entre os membros da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (ABRACCINE) – é o mais bem colocado dessa lista – O Bandido da Luz Vermelha é o grande filme do diretor e roteirista Rogério Sganzerla. A história do famoso bandido serial, que usava uma lanterna de luz vermelha para invadir casas à noite, é dona de uma narrativa revolucionária que encantou o júri do Festival de Brasília, onde conquistou os candangos de Melhor Filme, Direção, Montagem e Figurino. Paulo Villaça, como Jorge, o protagonista, estava estreando no cinema com esse papel, e nunca mais chegou a ter uma presença de tamanho impacto, até falecer com apenas 59 anos, em 1992. Solitário e violento, o Bandido da Luz Vermelha contou com mulheres como as interpretadas por Helena Ignez e Sonia Braga entre as suas vítimas. Refilmagem do italiano Il Bandito Della Luce Rossa (1962), foi resgatado anos depois na pele de ninguém menos do que Ney Matogrosso em Luz nas Trevas: A Volta do Bandido da Luz Vermelha (2010).
4. Zé do Burro (Leonardo Villar), de O Pagador de Promessas (1962)
Primeiro filme brasileiro a ser indicado ao Oscar na categoria de Melhor Longa em Língua Estrangeira e única produção nacional a ganhar a Palma de Ouro no Festival de Cannes, O Pagador de Promessas conta a história justamente de Zé do Burro, um ingênuo camponês que, quando seu burro é salvo após uma promessa, quer apenas cumprir o compromisso assumido pela graça alcançada, mas é mal interpretado por aqueles os seu redor. A atuação de Leonardo Villar ainda ressoa, num filme premiado também nos festivais de Cartagena, na Colômbia, e de São Francisco, nos EUA. Baseado na peça de Dias Gomes, Zé do Burro foi interpretado primeiro por Reinaldo de Oliveira, nos palcos, em 1961, e depois por José Mayer, na minissérie que a Rede Globo levou ao ar em 1988. Com uma cruz gigante nas costas, marcou presença na tela grande ao lado de atrizes consagrados, como Gloria Menezes e Norma Bengell, e o longa dirigido por Anselmo Duarte derrotou em Cannes clássicos como Cléo das 5 às 7, de Agnès Varda, A Deusa, de Satyajit Ray, Longa Jornada Noite Adentro, de Sidney Lumet, O Anjo Exterminador, de Luis Buñuel, O Eclipse, de Michelangelo Antonioni, e O Processo de Joana d’Arc, de Robert Bresson, entre outros. No Oscar, no entanto, acabou perdendo para o francês Sempre aos Domingos, de Serge Bourguignon.
3. Macabéa (Marcélia Cartaxo), de A Hora da Estrela (1985)
Baseado no romance de Clarice Lispector, Macabéa é responsável por dois feitos: não apenas é o filme de estreia da diretora e roteirista Suzana Amaral, consagrada no Festival de Brasília, levando nada menos do que 6 candangos para casa, além de ter sido premiado ainda nos festivais de Berlim, Havana e SESC Melhores Filmes, como serviu para revelar ao mundo o talento da paraibana Marcelia Cartaxo, que por este trabalho ganhou o Urso de Prata de Melhor Atriz na Berlinale, o mesmo troféu conquistado depois por apenas mais duas artistas brasileiras: Ana Beatriz Nogueira, por Vera (1986), e pela também citada nessa lista Fernanda Montenegro, por Central do Brasil (1998). Macabéa recém chegou na cidade grande, nordestina e semianalfabeta, quer tentar a vida como datilógrafa, se apaixona por um homem que logo se cansa dela, e decide colocar toda a sua sorte nas mãos de uma cartomante. O sucesso do filme o levou a ser escolhido também para ser o representante brasileiro daquele ano na disputa por uma indicação ao Oscar.
2. Zé do Caixão (José Mojica Marins), de À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964)
Conhecido no Brasil e no mundo todo, Zé do Caixão (ou Coffin Joe, como o chamam nos Estados Unidos) talvez seja o personagem do cinema brasileiro mais facilmente reconhecível no exterior. Presente em cerca de uma dezena de filmes, teve sua primeira aparição em À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964). Com Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1966) e Encarnação do Demônio (2008), forma a trilogia principal dessa figura da noite, mas também pode ser visto em títulos como O Estranho Mundo de Zé do Caixão (1967) e A Praga do Cinema Brasileiro (2018), por exemplo. Amoral e niilista, o cruel e sádico Zé do Caixão é uma criação de José Mojica Marins, também diretor da maioria dos longas. Era um agente funerário que surgiu após um pesadelo do cineasta, dono de unhas grandes (como Nosferatu, 1922) e capa e roupas negras (como Drácula, 1931), cuja obsessão era a continuidade do sangue: quer ser pai da criança superior a partir da “mulher perfeita”. E na busca por essa companheira, está disposto a matar quem cruzar o seu caminho. Zé do Caixão teve sua história narrada também em uma minissérie de 2015, com Matheus Nachtergaele como protagonista. Já Mojica, falecido no início de 2020, aos 83 anos, foi consagrado por essa imagem, e pela sua trajetória foi reconhecido em festivais como Gramado, Fantasporto, Paulínia, São Paulo e Sitges, entre outros
1. Macunaíma (Grande Otelo / Paulo José), de Macunaíma (1969)
Criado pelo modernista Mário de Andrade, Macunaíma é “o herói sem nenhum caráter”. Adaptado para o cinema por Joaquim Pedro de Andrade, o personagem na tela grande ganhou não um, mais dois intérpretes: Grande Otelo, quando nasce, e depois Paulo José, quando se torna branco ao passar por baixo de uma fonte mágica. “Ai, que preguiça”, foram suas primeiras palavras. Eleito o décimo melhor filme brasileiro de todos os tempos pela ABRACCINE, Macunaíma foi premiado como Melhor Ator (Otelo) e Roteiro no Festival de Brasília de 1969, além de ter se consagrado em Mar Del Plata, na Argentina, no ano seguinte. A pesquisadora e ensaísta Heloísa Buarque de Holanda afirma que o personagem “festeja muito, mas acaba sendo comido pelo Brasil”. Um retrato do país, um ser amoral, e que, segundo o diretor, “não é o herói moderno nacional, pois a ele falta uma visão mais geral, mais ambiciosa e mais consciente”. É um alerta, mas também uma construção social. Triste, mas absolutamente verdadeiro.
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