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Muito se fala em cinema queer. O termo, que vem da literatura acadêmica, parece querer identificar um gênero, um estilo, em filmes que flertam com a temática gay e o fazem carregando em cores, sexualidade, contra cultura e pastiche. Pedro Almodóvar seria uma espécie de mestre do tal cinema queer, por exemplo.

Porém, existe um detalhe interessante que parece escapar à definição: na mão de diretores verdadeiramente talentosos, os gêneros cinematográficos se tornam tão fluidos quanto os humanos. É o que torna Almodóvar tão interessante para plateias que nada tem a ver com os temas retratados, por exemplo. E é o trunfo de Um Estranho no Lago, longa do francês Alain Guiraudie que teve sua primeira exibição no Brasil durante o Festival do Rio 2013.

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A história é simples: acompanhamos as sucessivas idas de Franck (Pierre Deladonchamps, com uma carinha que não se sabe safada ou inocente) a um lago onde vários homens gays vão para se encontrar, fazer pegação. Um dia, ele vê Michel (Christophe Paou, perfeito), por quem se apaixona e com quem começa se envolver. Mas sobre quem sabe muito pouco.

Na verdade, todos nós sabemos muito pouco sobre tudo. E esse é um dos mais sagazes truques de “desconhecido”. O filme é inteiramente rodado no lago. Em nenhum momento será possível ver os personagens fora daquele ambiente: não se sabe o que fazem, do que vivem, o que comem, de suas famílias… nada. Toda a interação está restrita ao lago, o que coloca o espectador numa posição semelhante a dos personagens que observa.

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Em conversa com o público no 51st New York Film Festival, Guiraudie disse que decidiu rodar seu longa num único lugar porque isso permitiria um maior aprofundamento naqueles personagens. Mudar as locações implicaria em se concentrar na criação de novos lugares, novos ambientes. Filmar tudo num lugar só seria a melhor forma de mostrar apenas o que interessava: os personagens. É curioso, portanto, que, mesmo assim, restem arestas desconhecidas em cada um dos homens (não há mulheres no elenco) que passam pela tela, vários deles nus.

Aliás, a princípio Um Estranho no Lago se parece muito com um thriller erótico. O material gráfico do festival inclusive tinha um aviso muito claro sobre as cenas de sexo explícito, como a prevenir a plateia do que vinha pela frente. O próprio diretor fez piada, antes das luzes se apagarem: “Eu sei que vocês vieram pelos homens pelados, então vejam aí e depois conversamos“. Mas há (muito) mais do que homens pelados. Com uma única cena, de pouco mais de um minuto, Guiraudie transforma seu “filme erótico” num suspense com ares de terror. O lago, jamais abandonado pela câmera, se torna claustrofóbico. Os espaços escuros, antes convidativos para o sexo, se tornam aterrorizantes. E os sons, sem nenhuma trilha sonora, se convertem em ameaças. “Eu quis dar a tudo um ar de tragédia“, explica o diretor. Conseguiu.

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A relação entre desejo sexual e morte em Um Estranho no Lago vai muito, mas muito além do fato de que, por exemplo, os franceses chamam o orgasmo de “petite mort” (pequena morte). Guiraudie está lidando com algo muito maior do que sexualidades e suas implicações políticas, do que “ser gay” ou “ser hetero”: o diretor (que também assina o roteiro) está criando um conto avassalador sobre a natureza humana.

Essa oposição se dá, cinematograficamente, pela mescla de gêneros, artifício também usado por Almodóvar, por exemplo. Mas Guiraudie os justapõe, mais do que aglutina, o que causa uma positiva e assustadora surpresa no momento da transição. Por sinal, ambos parecem fãs de Hitchcock. E é por vias hitchcockianas que parece vir aquele que é o ponto mais seminal de “desconhecido”: o olhar. Ver é conhecer. E conhecimento, Adão e Eva sabiam bem, é fruto proibido. É pelo ato de olhar que o lago, éden na primeira metade do filme, se torna o inferno da segunda metade. Ao fazer isso no cinema, o filme termina por questionar a própria natureza de seu suporte. Uma conquista e tanto para algo que poderia ser apenas um thriller erótico.

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A trama traz ainda detalhes que aludem ao HIV (quão perigoso pode ser o sexo?), ao anonimato e a diversas épocas ao mesmo tempo. O diretor também foi questionado em que tempo o filme se passa. E respondeu: “Em algum lugar entre os anos 70, quando começou a liberação sexual, e hoje, ou até amanhã”. Sua alusão ao futuro provavelmente se deve ao fato de que “desconhecido” nos mostra muito mais do que aparenta. Não é cinema queer. É cinema puro.

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é jornalista, mestre em Estética, Redes e Tecnocultura e otaku de cinema. Deu um jeito de levar o audiovisual para a Comunicação Interna, sua ocupação principal, e se diverte enquanto apresenta a linguagem das telonas para o mundo corporativo. Adora tudo quanto é tipo de filme, mas nem todo tipo de diretor.
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