Pela primeira vez aqui no Papo de Cinema não escreverei sobre um documentário. Até então eles foram meus temas. Desta vez será diferente. Motivado por experiências pessoais e por uma tentativa despretensiosa de relativizar dois sentimentos atuais muito presentes, o vazio e a solidão, resolvi falar de Cópia Fiel (2010) e de Um Lugar Qualquer (2010).Estimulado pelo nosso editor, Robledo Milani, resolvi aceitar o desafio de encarar uma crítica conjunta sobre os filmes de Abbas Kiarostami e Sofia Coppola.
Apenas solicitei uma condição que foi generosamente aceita. Fazê-la sob outro ponto de vista. O de abordar aspectos em comum nas duas obras, como a mensagem, as minhas percepções e principalmente os prazeres que senti ao assisti-los. Minha opinião é que ambos possuem sentimentos, capacidade de compreensão e análise muito significativas da sociedade contemporânea, onde os relacionamentos, afetos e comportamentos estão instáveis, frágeis e, porque não dizer, confusos. Talvez a humanidade até tenha sido assim quase que a existência inteira. Mas se temos a oportunidade de aprender e crescer com duas obras que se distinguem, por que não aproveitar a chance?
Longe de qualquer tipo de presunção (e que Deus me livre disso), preciso explicar que o sublime do título desta coluna não se refere ao adjetivo. Mas sim ao conceito de Belo e o Sublime criado por Immanuel Kant, um filósofo prussiano que viveu no séc. XVIII. Ele defendia que determinadas qualidades que uma obra possui, podem num primeiro momento, parecer estranhas. Mas a partir da compreensão despertada, transfere ao público uma admiração, um arroubo, e permitem que os seus pensamentos atinjam um plano mais elevado. Foi exatamente minha impressão ao final das sessões em questão. Tinha participado de alguma coisa especial. Talvez para toda a minha vida.
Feito isso, vamos aos filmes em questão. Cópia Fiel, do diretor iraniano Abbas Kiarostami, conta a história de um escritor, James Miller (William Shimell), que está na região da Toscana para apresentar seu novo livro. Ele defende o pensamento de que a qualidade de uma obra de arte depende do contexto e está nos olhos de quem a vê. Assim, uma falsificação pode ter a mesma validade do original. Antes de retornar à Inglaterra, ele aceita o convite de Elle (Juliette Binoche), uma francesa dona de galeria que há anos vive na Itália com o filho. Os dois saem para passear pelas ruazinhas da comuna de Lucignano, um lugar pra lá de charmoso e aconchegante, indicado para os ‘enamorados’. Até este ponto temos um filme com jeito ‘intelectual’. As conversas entre o casal são discussões temáticas fundamentais para pensar sobre o conceito da arte, verossimilhança e originalidade. Então, em um café, eles são confundidos como marido e mulher, e imagino eu, por brincadeira, passam a encenar esses papéis. Deste ponto em diante o filme ganha mais vigor, expressão e uma atuação impecável de Juliette Binoche.
Já Um Lugar Qualquer, o quarto filme de Sofia Coppola, simboliza a volta da diretora ao tema de “Encontros e Desencontros”: a solidão, o vazio, o estar perdido e não se reconhecer. A primeira cena de Um Lugar Qualquer apresenta as pistas para o caminho do filme. Vemos um homem, o ator Johnny Marco (vivido por Stephen Dorff), numa Ferrari preta, percorrendo diversas vezes um mesmo trajeto num trecho de estrada circular. A câmera está parada, o único som é o espetacular ronco do motor a cada aceleração e desaceleração. Algo que deve durar em torno de uns 4 ou 5 minutos. A platéia chegou a se ajeitar nas poltronas durante o transcorrer da sequência. Depois de várias voltas, ele pára, desce do veículo, olha ao seu redor, como que perguntando: ‘Onde estou? Para onde vou?’ Mais adiante, este mesmo personagem demonstra, em diversas situações, estar acompanhado pelo ócio e pelo tédio da fama. Não se inclinando para sair disso. Algo que só ocorre quando a companhia de sua filha oferece um senso de realidade e responsabilidade necessária.
Ao lado dela, Johnny passa alguns dias em Hollywood e na Itália. Quando ela parte para um acampamento (a mãe está ausente, se recuperando da separação com Johnny) ele desperta e percebe o quanto foi ausente. Descobre que é uma pessoa solitária, fútil e que os bens materiais e a fama não adiantam de nada quando se está vivendo com um vazio interior. Quando se está afastado e negligente a quem amamos e por quem somos amados. O vazio é usado no filme para falar da crise interna que atinge qualquer pessoa, em qualquer idade ou lugar neste mundo. Sofia constrói isso usando e abusando de imagens silenciosas. Explorando uma solidão opressiva de Johnny. Uma engraçada banalidade presente é o show de dançarinas gêmeas. Por vezes ele dorme em meio à apresentação. Ou seja, parece sempre desconectado, distante. E isso vai criando uma tristeza corrosiva que vai aumentando no decorrer da história. Ele nunca está presente de verdade. E cabe a sua filha dar o recado.
Johnny não comanda sua própria vida. São seus agentes e empresários que o acordam, organizam sua agenda e o mandam de um lugar para o outro. Ele apenas bebe, usufrui da sua fama, transa e se diverte com todas as mulheres que aparecem no seu caminho e não sabe o que responder quando um repórter indaga numa coletiva:
“Quem é Johnny Marco?”
A coletiva talvez seja um dos momentos-chave deste filme. Vamos trocar de lugar com Johnny e refletir. Quem somos nós? O que é realmente importante? Porque seguir as regras de consumo ditadas? Nosso grande amor, o que temos feito por ele? E aqueles que precisam de nós, oferecemos atenção suficiente? Parece tão simples, mas ao mesmo tempo é revelador. A conclusão que cheguei é que Johnny representa algo como um produto com defeito em um mundo aparentemente onisciente, um tanto impessoal, sem ideais nem valores.
Logo depois, quando o vazio se torna insuportável, Johnny chega ao extremo de abandonar sua Ferrari em plena estrada e sair caminhando. Como se deixasse para trás a vida que o tornou famoso e desejado, para seguir em busca da sua verdade. Daquilo que vai libertá-lo e indicar um caminho novo para sua vida.
Também percebi um vazio no filme de Kiarostami. Mesmo que não seja tão declarado e se apresente de maneira mais articulada. Está no casal cuja relação amorosa é distante, fria e impossibilita o público de entender qual é o relacionamento. O diretor nos brinda com uma Juliette Binoche linda, encantadora e extremamente vulnerável. É ela que vai dando um tom de autêntico melodrama à Cópia Fiel. E dos melhores e mais envolventes. Na medida em que se torna mais emocionante, o jogo conceitual vai sendo revelado. Não importa se os personagens fingem ou não ser um casal; o que de uma forma ou outra enxergamos ali é a crise entre um homem e uma mulher expressa na tela, e o material humano se tornando o eixo dramático do filme. Nos olhos, gestos e sentimentos expressos por Juliette, mergulhamos na sua carência e necessidade de ser amada. Ela é puro coração, é romântica e esperançosa. Ela admira e se emociona com os jovens noivos apaixonados e crê ainda poder resgatar o amor da sua vida, passados 15 longos e implacáveis anos, se enfeitando no banheiro de um restaurante com brincos e batom. Mesmo que seu amado não se importe mais com ela, e justamente na frente de uma mulher deslumbrante e pronta para amá-lo, prefira brigar com o garçom por causa da qualidade de um vinho. Chega a ser revoltante. Causa comoção vê-la tão indesejada pelo relapso esposo. Outro que nunca esteve presente, como Johnny Marco. Mas a vida a dois, sabemos, tantas vezes é assim. E também sabemos que pode não haver conserto.
Repetidas vezes eles discutem intensamente. Razão contra emoção. Uma batalha onde percebemos não haver chance de vitória. Apenas perdas. Kiarostami e Sofia Copolla conseguem com esses dois grandes filmes, o que muitos documentaristas (puxa, afirmei que não falaria de documentários!) sonham e pretendem. Serem ocultos filmando. Mesmo assim, seus olhares e suas mãos estão lá, o tempo todo, num olhar e pensamento imensamente maiores que sua capacidade de discrição, ou sua aparente invisibilidade. Olhares sublimes. Agora sim como adjetivo.
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