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Um olhar sublime sobre Cópia Fiel e Um Lugar Qualquer

Publicado por
Alexandre Derlam
CopiaFiel1
Cópia Fiel

Pela primeira vez aqui no Papo de Cinema não escreverei sobre um documentário. Até então eles foram meus temas. Desta vez será diferente. Motivado por experiências pessoais e por uma tentativa despretensiosa de relativizar dois sentimentos atuais muito presentes, o vazio e a solidão, resolvi falar de Cópia Fiel  (2010) e de Um Lugar Qualquer (2010).Estimulado pelo nosso editor, Robledo Milani, resolvi aceitar o desafio de encarar uma crítica conjunta sobre os filmes de Abbas Kiarostami e Sofia Coppola.

Apenas solicitei uma condição que foi generosamente aceita. Fazê-la sob outro ponto de vista. O de abordar aspectos em comum nas duas obras, como a mensagem, as minhas percepções e principalmente os prazeres que senti ao assisti-los. Minha opinião é que ambos possuem sentimentos, capacidade de compreensão e análise muito significativas da sociedade contemporânea, onde os relacionamentos, afetos e comportamentos estão instáveis, frágeis e, porque não dizer, confusos. Talvez a humanidade até tenha sido assim quase que a existência inteira. Mas se temos a oportunidade de aprender e crescer com duas obras que se distinguem, por que não aproveitar a chance?

Longe de qualquer tipo de presunção (e que Deus me livre disso), preciso explicar que o sublime do título desta coluna não se refere ao adjetivo. Mas sim ao conceito de Belo e o Sublime criado por Immanuel Kant, um filósofo prussiano que viveu no séc. XVIII. Ele defendia que determinadas qualidades que uma obra possui, podem num primeiro momento, parecer estranhas. Mas a partir da compreensão despertada, transfere ao público uma admiração, um arroubo, e permitem que os seus pensamentos atinjam um plano mais elevado. Foi exatamente minha impressão ao final das sessões em questão. Tinha participado de alguma coisa especial. Talvez para toda a minha vida.

Feito isso, vamos aos filmes em questão. Cópia Fiel, do diretor iraniano Abbas Kiarostami, conta a história de um escritor, James Miller (William Shimell), que está na região da Toscana para apresentar seu novo livro. Ele defende o pensamento de que a qualidade de uma obra de arte depende do contexto e está nos olhos de quem a vê. Assim, uma falsificação pode ter a mesma validade do original. Antes de retornar à Inglaterra, ele aceita o convite de Elle (Juliette Binoche), uma francesa dona de galeria que há anos vive na Itália com o filho. Os dois saem para passear pelas ruazinhas da comuna de Lucignano, um lugar pra lá de charmoso e aconchegante, indicado para os ‘enamorados’. Até este ponto temos um filme com jeito ‘intelectual’. As conversas entre o casal são discussões temáticas fundamentais para pensar sobre o conceito da arte, verossimilhança e originalidade. Então, em um café, eles são confundidos como marido e mulher, e imagino eu, por brincadeira, passam a encenar esses papéis. Deste ponto em diante o filme ganha mais vigor, expressão e uma atuação impecável de Juliette Binoche.

Juliette Binoche em Cópia Fiel

Um Lugar Qualquer, o quarto filme de Sofia Coppola, simboliza a volta da diretora ao tema de “Encontros e Desencontros”: a solidão, o vazio, o estar perdido e não se reconhecer. A primeira cena de Um Lugar Qualquer apresenta as pistas para o caminho do filme. Vemos um homem, o ator Johnny Marco (vivido por Stephen Dorff), numa Ferrari preta, percorrendo diversas vezes um mesmo trajeto num trecho de estrada circular. A câmera está parada, o único som é o espetacular ronco do motor a cada aceleração e desaceleração. Algo que deve durar em torno de uns 4 ou 5 minutos. A platéia chegou a se ajeitar nas poltronas durante o transcorrer da sequência. Depois de várias voltas, ele pára, desce do veículo, olha ao seu redor, como que perguntando: ‘Onde estou? Para onde vou?’ Mais adiante, este mesmo personagem demonstra, em diversas situações, estar acompanhado pelo ócio e pelo tédio da fama. Não se inclinando para sair disso. Algo que só ocorre quando a companhia de sua filha oferece um senso de realidade e responsabilidade necessária.

Ao lado dela, Johnny passa alguns dias em Hollywood e na Itália. Quando ela parte para um acampamento (a mãe está ausente, se recuperando da separação com Johnny) ele desperta e percebe o quanto foi ausente. Descobre que é uma pessoa solitária, fútil e que os bens materiais e a fama não adiantam de nada quando se está vivendo com um vazio interior. Quando se está afastado e negligente a quem amamos e por quem somos amados. O vazio é usado no filme para falar da crise interna que atinge qualquer pessoa, em qualquer idade ou lugar neste mundo. Sofia constrói isso usando e abusando de imagens silenciosas. Explorando uma solidão opressiva de Johnny. Uma engraçada banalidade presente é o show de dançarinas gêmeas. Por vezes ele dorme em meio à apresentação. Ou seja, parece sempre desconectado, distante. E isso vai criando uma tristeza corrosiva que vai aumentando no decorrer da história. Ele nunca está presente de verdade. E cabe a sua filha dar o recado.

Um Lugar Qualquer

Johnny não comanda sua própria vida. São seus agentes e empresários que o acordam, organizam sua agenda e o mandam de um lugar para o outro. Ele apenas bebe, usufrui da sua fama, transa e se diverte com todas as mulheres que aparecem no seu caminho e não sabe o que responder quando um repórter indaga numa coletiva:

“Quem é Johnny Marco?”

A coletiva talvez seja um dos momentos-chave deste filme. Vamos trocar de lugar com Johnny e refletir. Quem somos nós? O que é realmente importante? Porque seguir as regras de consumo ditadas? Nosso grande amor, o que temos feito por ele? E aqueles que precisam de nós, oferecemos atenção suficiente? Parece tão simples, mas ao mesmo tempo é revelador. A conclusão que cheguei é que Johnny representa algo como um produto com defeito em um mundo aparentemente onisciente, um tanto impessoal, sem ideais nem valores.

Logo depois, quando o vazio se torna insuportável, Johnny chega ao extremo de abandonar sua Ferrari em plena estrada e sair caminhando. Como se deixasse para trás a vida que o tornou famoso e desejado, para seguir em busca da sua verdade. Daquilo que vai libertá-lo e indicar um caminho novo para sua vida.

Um Lugar Qualquer

Também percebi um vazio no filme de Kiarostami. Mesmo que não seja tão declarado e se apresente de maneira mais articulada. Está no casal cuja relação amorosa é distante, fria e impossibilita o público de entender qual é o relacionamento. O diretor nos brinda com uma Juliette Binoche linda, encantadora e extremamente vulnerável. É ela que vai dando um tom de autêntico melodrama à Cópia Fiel. E dos melhores e mais envolventes. Na medida em que se torna mais emocionante, o jogo conceitual vai sendo revelado. Não importa se os personagens fingem ou não ser um casal; o que de uma forma ou outra enxergamos ali é a crise entre um homem e uma mulher expressa na tela, e o material humano se tornando o eixo dramático do filme. Nos olhos, gestos e sentimentos expressos por Juliette, mergulhamos na sua carência e necessidade de ser amada. Ela é puro coração, é romântica e esperançosa. Ela admira e se emociona com os jovens noivos apaixonados e crê ainda poder resgatar o amor da sua vida, passados 15 longos e implacáveis anos, se enfeitando no banheiro de um restaurante com brincos e batom. Mesmo que seu amado não se importe mais com ela, e justamente na frente de uma mulher deslumbrante e pronta para amá-lo, prefira brigar com o garçom por causa da qualidade de um vinho. Chega a ser revoltante. Causa comoção vê-la tão indesejada pelo relapso esposo. Outro que nunca esteve presente, como Johnny Marco. Mas a vida a dois, sabemos, tantas vezes é assim. E também sabemos que pode não haver conserto.

Repetidas vezes eles discutem intensamente. Razão contra emoção. Uma batalha onde percebemos não haver chance de vitória. Apenas perdas. Kiarostami e Sofia Copolla conseguem com esses dois grandes filmes, o que muitos documentaristas (puxa, afirmei que não falaria de documentários!) sonham e pretendem. Serem ocultos filmando. Mesmo assim, seus olhares e suas mãos estão lá, o tempo todo, num olhar e pensamento imensamente maiores que sua capacidade de discrição, ou sua aparente invisibilidade. Olhares sublimes. Agora sim como adjetivo.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
é diretor de cena e roteirista. Graduado em Publicidade e Propaganda com especialização em Cinema (Unisinos /RS). Dirige para o mercado gaúcho há 20 anos. Produz publicidade, reportagem, documentário e ficção. No cinema é um realizador atuante. Dirigiu e roteirizou os documentários Papão de 54 e Mais uma Canção. E também dois curtas-metragens: Gildíssima e Rito Sumário. Seus filmes foram exibidos em vários festivais de cinema e na televisão. Foi diretor de cena nas produtora Estação Elétrica e Cubo Filmes. Atualmente é sócio-diretor na Prosa Filmes.

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