Lynndie England, oficial do exército americano acusada de abuso de prisioneiros em Abu Ghraib. Dr. David Kelly, inspetor de armas britânico que declarou para a BBC não haverem armas de destruição em massa no Iraque. Nehrjas al Saffarh, ativista iraquiana, membro do partido comunista. O que estas três pessoas tem em comum? As três são figuras simbólicas e verídicas que marcaram a guerra do Iraque e personagens de Palácio do Fim, peça da canadense Judith Thompson e que está atualmente em cartaz em São Paulo.
Palácio do Fim é dividido em monólogos que contam histórias marcantes dentre tantas no horror que foi a guerra do Iraque. Com tradução de João Gabriel Carneiro e direção de José Wilker, o texto é com certeza o mais forte que vi até hoje. Sem amenizar em nada, as histórias são contadas tal e qual aconteceram. Os sentimentos gerados são dos mais diversos tipos: nojo, raiva e uma absurda tristeza de saber que o que foi dito em cima do tablado foi a mais pura verdade. Muita gente não aguenta e deixa o espetáculo no meio por não conseguir ter tão horrível realidade esfregada na cara, mas quem fica e aguenta no osso esses relatos dantescos tem o privilégio de assistir a um dos melhores espetáculos já feitos de cabo a rabo, com texto, direção, trilha, iluminação, cenário e um trio de atores absurdamente talentosos, além do excelente texto, um misto de documentário e ficção.
Lynndie England ficou conhecida no mundo por ter divulgada uma foto em que obrigava prisioneiros nus a fazerem uma pirâmide enquanto ela os ameaçava com um fuzil. Arquiteta de torturas como carregar os prisioneiros na coleira como se fossem cachorros, obrigá-los a comer as necessidades fisiológicas uns dos outros e outras tantas atitudes grotescas, no monólogo ela questiona essas fotos e está apavorada com vídeos seus e de seu namorado transando que foram parar na internet. Camila Morgado faz uma de suas interpretações mais impressionantes, sem se ver um mínimo resquício da atriz. Aquela personagem toma conta dela e do espaço, chegando a dar medo e nojo, embrulhando o estômago de tão perfeita é o desempenho da intérprete.
Dr. David Kelly foi assassinado ou se suicidou? Enredado em uma trama política, o especialista em armamentos disse na BBC que não havia armas de destruição no Iraque. Diante disso é humilhado e descredenciado pelo Governo Britânico e se refugia num bosque à espera de sua morte. Nesse esconderijo ele tenta se redimir das falsas declarações e explica por que fez isso. Que ator é Antonio Petrin? Dificilmente lembrado quando alguém pergunta quem são os grandes atores do Brasil, esse mestre dos palcos – talvez por não ter feito da televisão a sua principal área – raramente é lembrado. Mas faz-se aí uma injustiça tremenda! Competente como poucos, Petrin deveria estar entre os dez mais. É bicho de teatro, que com um bom texto como esse e uma direção segura se torna um monstro. Aqui temos talento na sua mais pura concepção transbordando por todos os lados.
Nehrjas Al Saffarh é uma ativista política, mas antes de tudo é mãe de muitos filhos e vive às escondidas em meio a perseguição da polícia de Saddam Hussein. Depois de muito tempo, já na maturidade, ela conta como foi capturada grávida junto de um dos seus filhos e levada para a câmara de tortura. Lá vê esse filho ser torturado e morto. Relato chocante e verídico que leva o público as lágrimas de tão emocionante e cruel. Vera Holtz tem o papel de sua vida em um trabalho que vai adquirindo novas proporções. A atriz começa resignada e vai crescendo até tornar-se absoluta em cena, num desempenho vigoroso e emocionante, responsável pelos momentos mais tristes e difíceis do espetáculo.
Palácio do Fim era o nome dado ao local onde Saddam Hussein praticava os maiores atos de crueldade com seus inimigos. Palácio do Fim é agora o nome de uma peça de teatro das mais impactantes, cruel e ao mesmo tempo linda de se assistir. Esse palácio de agora está cheio de reis (José Wilker, Petrin, João Gabriel) e rainhas (Judith, Vera, Camila). Foi o espetáculo carioca com mais indicações ao Prêmio Shell, e deveria ganhar todos aos que foi e aos que não foi indicado! Cabe a nós, súditos, sentar, escutar e digerir essa realidade que se passa ao mesmo tempo tão distante geograficamente, mas se prestarmos atenção, também se passa muito perto de nós.
Cotação: Excelente (*****)