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Sinopse

James Bond decide se aposentar, levando uma vida tranquila com Madeleine. No entanto, um incidente o obriga a retomar a vida de agente secreto, quando uma arma química coloca a humanidade em risco. Antes, ele precisa se confrontar ao fato que o codinome 007 passou a ser utilizado por uma nova agente, mais jovem do que ele. Neste percurso, Bond se confronta a novos e antigos vilões, enquanto descobre segredos do passado.

Crítica

Se os produtores não tivessem deixado claro que a saga 007 deve continuar, o espectador poderia ter a impressão que 007: Sem Tempo para Morrer (2021) representa o final da franquia. Pelo menos, ele foi concebido para encerrar a participação de Daniel Craig no papel principal, após cinco produções. Assim, vai além do status de “novo filme do James Bond”, assumindo a responsabilidade de amarrar todas as pontas soltas desde 007: Cassino Royale (2006). O roteiro resolve pendências contra vilões famosos e mulheres por quem o agente se apaixonou, além de apresentar novidades na trama, fornecer um desfecho digno ao intérprete principal e indicar um futuro possível. Trata-se do Vingadores: Ultimato (2019) ou Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012) do universo da espionagem, ou seja, uma tentativa de encerrar o ciclo de sucesso através de superprodução repleta de personagens, reviravoltas, revelações e catarses. Por isso, compreende-se que o resultado tenha custado quase US$ 300 milhões aos produtores, e o corte final chegue a 2h43 de duração. Seguindo a lógica tipicamente hollywoodiana, os criadores estimam que esta iniciativa necessita de um imenso espetáculo, até para os padrões megalomaníacos da saga. Embora o longa-metragem corra o risco da saturação, ele se leva a sério e encontra espaço para respiros e reflexões - há tantas cenas de ação quanto de momentos íntimos na vida do herói.

Neste período, a sociedade evoluiu, e as narrativas acompanharam esta tendência. A premissa do homem superpotente, irresistível às mulheres e sempre impecavelmente vestido se diluiu numa versão humanizada: James Bond chega a 2021 em aspecto frágil, cansado, com um joelho dolorido, sendo substituído por uma agente negra que ocupa o codinome 007 quando ele se aposenta. O homem sofre por amor, desiste de algumas causas importantes, enquanto suas companheiras deixam de ser meros troféus saindo do mar de biquíni, em câmera lenta. É mérito dos grupos feministas, negros e LGBTQ o fato de nenhuma figura feminina ser explorada por sua sensualidade em Sem Tempo para Morrer: elas enfrentam os inimigos por conta própria (vide a divertida sequência com Ana de Armas), dispensando o resgate por conta do protagonista, enquanto Q (Ben Whishaw) vive sua homossexualidade de modo natural, e o próprio Bond assumiu sua bissexualidade num episódio passado. O herói reduziu sua cota de assassinatos, deixou de matar por prazer ou instinto de vingança, e começou a agir fora de motivos patrióticos (ou seja, sem o aval da MI6), privilegiando a saúde mental quando necessário. Este é um protagonista que se ajoelha diante de adversários poderosos (cena fundamental deste filme), e se abaixa para buscar o coelhinho de pelúcia de uma criança. “Está difícil separar mocinhos de bandidos hoje em dia”, afirma um diálogo, com razão. Trata-se de uma construção menos idealizada do que homem imbatível da obra original.

Em contrapartida, resta um longo caminho a percorrer para a transformação desta história. Embora tenhamos superado os dias em que espectadores protestaram contra um James Bond loiro, porque isso “feriria a mitologia do personagem”, Sem Tempo para Morrer está distante de uma jornada progressista por completo - afinal, pelo valor investido, os criadores esperam conquistar tanto o público liberal nos costumes quanto aquele de viés conservador. Por isso, apesar da saudável presença de Nomi (Lashana Lynch) em cargo decisivo, ela mantém uma posição de coadjuvante, servindo de babá aos criminosos e às pessoas queridas do 007 enquanto este resolve os assuntos com os verdadeiros vilões. Ora, restringir a jovem altamente qualificada à postura materna se traduz em sinal de fraqueza (vide a resolução repentina do imbróglio com o número 007). Q espera um rapaz para um jantar romântico, mas o convidado nunca chega - assim como jamais tivemos indícios concretos da bissexualidade de Bond. Craig, ator de 53 anos, segue acompanhado de mulheres muito mais jovens, romanticamente relacionadas ao protagonista ou não: Léa Seydoux tem 36 anos; Lashana Lynch e Ana de Armas, 33 anos. Os inimigos preservam o estereótipo de homens com o corpo mutilado, a pele queimada, sem um olho (a deficiência equivalendo simbolicamente à maldade), vindos de países “exóticos" para os padrões norte-americanos: Rússia, no caso de Valdo Obruchev (David Dencik, com um sotaque carregadíssimo) e polonês, no caso de Enrst Blofeld (Christoph Waltz). A liderança cabe à aliança entre Estados Unidos, Reino Unido e França contra os perversos homens do leste. Com exceção de um vilão branco e ocidental, os demais reforçam a figura do estrangeiro perigoso. Em outras palavras, a saga progrediu, mas os avanços são modestos.

Enquanto exemplar de ação e aventura, o projeto se alia aos melhores momentos do bem-sucedido 007: Operação Skyfall (2012), em oposição ao confuso 007 Contra Spectre (2015). Cary Joji Fukunaga, diretor conhecido pelos maneirismos com a câmera, encontra um belo meio-termo entre as necessidades do cinema comercial e a potência de um plano-sequência. Ele tem a coragem de iniciar o projeto com uma longa cena em francês, repleta de imagens típicas do cinema de horror, passíveis de estranhamento aos fãs habituais de Bond. O registro do terror se mantém na descoberta de uma arma química em Cuba. Em paralelo, o diretor efetua uso impressionante dos planos aéreos, superando o estigma da imagem impessoal e turística. A sequência de abertura, na neve, ecoa a conclusão em forma cíclica; enquanto uma paisagem em plongée da Itália pegando fogo sugere um suspense silencioso, sem diálogos. Craig recebe como presente (ou desafio) uma longuíssima cena de luta em solitário contra vários homens em plano-sequência, lembrando o famoso episódio de True Detective (2014) dirigido por Fukunaga, e refletindo os novos padrões de ação desde o sucesso de John Wick (2014 - 2019). O humor pop que contaminou as produções de super-herói está ausente deste filme onde o absurdo procura a verossimilhança. É comum que extensas sagas de aventura se convertam em paródias de si mesmas (vide Velozes & Furiosos), porém James Bond ainda quer fazer o espectador acreditar em suas manobras com uma motocicleta, com um carro e pulando de uma ponte. O projeto sustenta a elegância do cinema de décadas atrás, ao invés da pasteurização multicolorida e fragmentada dos tempos de TikTok.

Talvez o principal mérito de Sem Tempo para Morrer venha de sua transformação em tragédia. O diretor atribui gravitas à narrativa, ou seja, um senso de pesar, enquanto fornece ao solteirão mulherengo a perspectiva de uma família estável. Era necessário certo malabarismo para efetuar tal guinada de modo orgânico, no entanto, os produtores tornam Bond um herói shakespeariano confrontado a um destino inevitável, lutando entre familiares em nome de honra e poder. As atuações estão sombrias, introspectivas, tanto por parte de Craig quanto de Léa Seydoux e Ralph Fiennes (que outro exemplar da saga 007 possui uma sequência tão sentimental quanto a despedida na estação de trem?). É certo que Rami Malek, como o adversário Lyutsifer Safin, se perde em maneirismos vilanescos, e a cena com Blofeld pretendia alcançar um impacto emocional muito maior do que obteve na versão final. Entretanto, paira um aspecto sombrio no projeto ao levar mocinhos e inimigos a uma gigantesca ilha isolada, sem vigilância (ao invés das grandes metrópoles internacionais), marcada por jardins envenenados, para executarem um plano clandestino. O agente secreto deixa de ser um instrumento da Coroa britânica para assumir a função de justiceiro afetuoso e solitário, encarando sozinho osperigos no mar e na floresta. “Eu não tenho raiva, sou um homem apaixonado”, responde Safin a certa altura do embate em moldes japoneses, próximo de um filme de samurais. Em outro momento, Bond declama seu amor ao melhor amigo. O longa-metragem proporciona o duelo secreto, compartilhado apenas com o espectador, entre homens enfrentando a impotência e a chegada de novas gerações para substitui-los. O roteiro, obcecado pela questão do legado, passa o bastão para representações diferentes da espionagem internacional. Este Bond sai de cena mais humano, sensível, e por isso mesmo, um personagem de maior complexidade do que aquele que conhecemos em 2006.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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