Crítica
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Crítica
O cinema noir cunhou no imaginário cinéfilo a figura do detetive torturado que revela as próprias fraquezas durante uma investigação pantanosa, na qual se percebe também um pouco vítima das circunstâncias. Um dos mais famosos deles é Philip Marlowe, criação de Raymond Chandler levada aos cinemas em diversos filmes – foi interpretado por inúmeros astros de Hollywood, entre eles Humphrey Bogart (À Beira do Abismo, 1946), Robert Mitchum (O Último dos Valentões, 1975), Dick Powell (Até A Vista, Querida, 1946) e, de modo menos ortodoxo, por Elliott Gould (O Perigoso Adeus, 1973). O longa-metragem turco 10 Dias de um Homem Bom bebe diretamente nessa tradição do gênero repleto de mentiras, mulheres fatais e passeios pelo submundo. Seu protagonista é Sadik (Nejat Isler), outrora advogado de relativo renome que entrou em desgraça ao assumir a culpa por um crime. Contratado por uma amiga de longa data para investigar o desaparecimento do filho de sua empregada doméstica, ele começa xeretando nas imediações e vai entrando numa realidade obscura cheia de desdobramentos supostamente inesperados. O que prevalece desde o início é a personalidade do protagonista, um homem sem atrativos aparentes (longe de ser o detetive charmoso que coleciona amores ao longo da trama), mas que ainda assim exerce influência sobre a vizinha de porta que trabalha como prostituta.
Sadik é simplesmente fanático pela interpretação de Elliott Gould de Philip Marlowe em O Perigoso Adeus, ao ponto de ter na parede da sala um pôster do longa-metragem norte-americano dirigido por Robert Altman e manter a imagem de seu protagonista na tela da televisão a fim de poder “conversar” com ele quando as coisas se complicam. Com base no roteiro assinado por Mehmet Eroglu e Damla Serim, o cineasta Uluç Bayraktar faz dessa característica algo pretensamente importante, mas o resultado fica aquém das expectativas geradas. O protagonista de 10 Dias de Um Homem Bom se dirige ao ídolo de maneira esporádica, num par de instantes em que nutre sérias dúvidas a respeito dos rumos a serem tomados. Nada mais do que isso. Portanto, essa idolatria é apenas um fetiche visual que serve, quando muito, para lembrar o espectador de que Sadik é um herdeiro dessa tradição de homens ora astutos, ora enganados pelos representantes de uma realidade barra pesada em que vigora a lei do mais forte. No filme de Altman, Marlowe é alguém aparentemente exausto de tanto transitar pelo submundo, um homem que experimenta os efeitos prolongados de uma espécie de cansaço existencial. Sadik carrega indícios desse comportamento abatido, mas nada que justifique os paralelos que a produção turca tenta traçar a partir disso com a obra-prima norte-americana.
10 Dias de Um Homem Bom apresenta perspectivas ultrapassadas das personagens femininas, mesmo tendo em vista a reutilização da tradição que remonta ao período clássico de Hollywood. Com poucas exceções, as mulheres em cena são manipuladoras inescrupulosas ou vítimas que precisam de uma atitude masculina para “serem salvas”. A ex-esposa de Sadik é uma dessas figuras capazes de tudo para evitar qualquer dano pessoal; já a vizinha prostituta se transforma na jovem a ser “salva” pelo amor repentino do protagonista – é meio desajeitada a cena do primeiro beijo entre eles, com Sadik se emocionando diante do presente inesperado do figurino semelhante ao do Marlowe de O Perigoso Adeus; e a filha adolescente da empregada acaba transitando por esses dois momentos (algoz e vítima), de certa forma condensando a dualidade geralmente associada às mulheres no filme. Outro elemento que pode ser enxergado como o reforço meio grosseiro de um estereótipo é a vilania dos gêmeos albinos, cujas presenças estão sempre associadas a circunstâncias negativas, inclusive no que diz respeito à exploração de fetiches sexuais atrelados a algo perverso e potencialmente violento. Por sua vez, Sadik às vezes é definido por sua bondade, pelo modo gentil e humano como aborda as situações, noutras tenta sobressair por sua capacidade dedutiva excepcional. Mas, nem uma coisa, nem a outra.
Quanto à trama que precisa ser desenrolada pelo protagonista, ela é fruto de uma reciclagem de vários expedientes notabilizados pelo noir. Pensando nisso, é bom Sadik ter um pé atrás diante do contratante, estar atento às facetas de personagens que parecem muito sólidos em sua caminhada e ainda guardar um espacinho para cenas tórridas de romance que atestam a máxima “os brutos também amam”. O mistério envolvendo o desaparecimento de um rapaz compreende um raio relativamente pequeno de contraventores, ou seja, parece que todas as pessoas potencialmente bandidas da cidade são conhecidas ou bem próximas do protagonista, o que causa um estranhamento improdutivo. Para que esse expediente funcionasse melhor, seria preciso desenhar um personagem principal mais indicativo de uma realidade, exatamente como é o Philip Marlowe em O Perigoso Adeus – um homem cuja fadiga existencial reflete a exacerbação do entorno, de uma realidade setentista repleta de exceções e saturações. No entanto, Sadik está mais para decalque sem muita personalidade, um personagem que surge do acúmulo referencial de outros tantos, mas que não demonstra algo que o torne único. Ele está mais para um detetive de bom coração, do tipo que se apaixona repentinamente e está sempre disposto a tomar a atitude mais correta diante de um mundo podre. Falta algo que o diferencie.
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Grade crítica
Crítico | Nota |
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Marcelo Müller | 5 |
Francisco Carbone | 7 |
MÉDIA | 6 |
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